Nº 2579 - Dezembro de 2016
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Lisboa, Novembro de 1807: uma carta e as suas personagens
Prof.
Eduardo Romano de Arantes e Oliveira

1. Introdução

Uma parente já falecida, D. Eugénia Cecília de Carvalho[1], última proprietária (na Família Carvalho) da Quinta da Figoeira[2], ofereceu-me cópia de uma carta escrita em Lisboa, em Novembro de 1807, nos dias que antecederam a chegada à Capital portuguesa dos invasores franceses sob o comando do General Junot[3] e a transferência da Corte para o Brasil.

O original há muito saíra das suas mãos para as de alguém que por ele se interessara. Escrita por um oficial do Exército, uma das razões do interesse que despertou foi o facto de dar ideia dos estados de espírito nos meios militares e na própria Cidade, então uma das maiores da Europa.

Não me foi difícil confirmar a identidade do destinatário que a minha prima conhecia por tradição familiar: o Dr. José Manuel Dias de Carvalho, meu tetravô e tio-bisavô dela. Constituiu um interessante desafio de carácter genealógico descobrir a identidade de Bartolomeu e Francisco, dois dos primos do destinatário referidos na carta, e, finalmente, a de Filipe, o signatário propriamente dito.

O Capítulo XVI (da autoria do Prof. Lopes de Almeida) da “História de Portugal”, dita de Barcelos, forneceu as referências necessárias ao enquadramento histórico do texto.

 

2. Novembro de 1807

A 21 de Novembro de 1805, Napoleão proclamou o “Bloqueio Continental”. Meses mais tarde, tendo derrotado os russos em Friedland e assinado com o Czar, duas semanas depois dessa jornada, o Tratado de Tilsit[4], o Imperador dos Franceses parecia ter conseguido quase tudo o que pretendia. Uma sombra no quadro: Portugal. Dependente, quase em absoluto, do comércio com o Reino Unido, o Governo do Reino fazia-se surdo às exigências do Bloqueio.

Por isso, a 29 de Julho, o chamado “Exército da Gironda” começou a concentrar-se em Bayonne até que, forte de 30 mil homens, foi colocado sob o comando do General Junot que antes fora embaixador em Lisboa e conhecia pois o reino recalcitrante.

Em Outubro, Junot recebeu de Napoleão, que entretanto perdera a paciência, a ordem de invadir Portugal. Cruzada, em 18 de Outubro, a fronteira franco-espanhola, Junot atingiu Castelo Branco, a 20 de Novembro, e Abrantes, quatro dias depois. Não encontrando resistência, convenceu-se, e os fatos lhe deram razão, de que, na sua marcha sobre Lisboa, nenhuma oposição séria se lhe depararia. Com a audácia que o seu chefe sempre recomendava, decidiu pois dirigir-se a marchas forçadas para a capital portuguesa, à frente de uma pequena força de um milhar e meio de homens, destacados dos restantes.

Para Napoleão, era vital que Junot chegasse a Lisboa tão rapidamente quanto possível, o que lhe permitiria capturar a Família Real e a Armada de guerra portuguesa cuja importância estava longe de ser despicienda[5]. Acrescia que, da sua chegada à Capital, podia depender também a sorte de 13 naus russas (parte da esquadra do Almirante Siniavine que derrotara os turcos nas batalhas navais dos Dardanelos e Athos), entradas no Tejo, a 30 de Outubro, no seu caminho para bases navais no Norte da Rússia. Siniavine, cuja inclinação pró-inglesa sobrevivera ao Tratado de Tilsit, e que lamentava que o Czar não o tivesse deixado prosseguir na sua bem conduzida guerra contra os otomanos, acompanhara essa esquadra. Temia Napoleão que a anglofilia do Almirante russo favorecesse a apropriação dela por parte dos britânicos.

Estes últimos não estavam inactivos. A 17 de Novembro, uma poderosa frota de 15 naus de guerra[6] e 10 corvetas, comandada pelo Almirante Sidney Smith, aparecera na embocadura do Tejo. A ela se acolheu, logo no dia seguinte, abandonando simbolicamente o posto, o ministro britânico em Lisboa, Lord Strangford. Sublinha-se o advérbio simbolicamente, porque Strangford continuou em comunicação com o Governo português.

Por essa altura, ainda este, abstendo-se de qualquer ato hostil aos ingleses que pusesse em risco o Império luso, acreditava no êxito de uma solução negociada com os franceses, susceptível de garantir sem guerra a integridade do território nacional. Tal convicção explica as medidas tomadas para evitar que a esquadra inglesa forçasse a entrada no Tejo, medidas cuja descrição constitui um dos motivos de interesse da carta que é matéria do presente artigo.

No mesmo dia 22, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, António de Araújo de Azevedo (o “Araújo”[7] a que a carta refere), enviou a Junot um último intermediário que o encontraria cinco dias mais tarde nas margens do Zêzere sob uma chuva enervante que não cessava de cair. A 24, porém, isto é, no próprio dia em que a carta foi escrita, já as esperanças numa paz negociada estavam completamente perdidas. O Conselho de Estado, convocado para a Ajuda, assentou pois definitivamente na retirada da Corte para o Brasil, solução de que o próprio Araújo se tornou o principal defensor.

Na mesma reunião, foram aprovados dois textos: um decreto, que confiava a governação do Reino a um conselho de regência, e uma proclamação que informava a população das decisões tomadas, textos que só depois do embarque da Corte deveriam ser tornados públicos.

Na reunião do Conselho de Estado, pesaram especialmente, como argumentos a favor da partida, a necessidade de impedir que o Príncipe Regente e a Família Real fossem capturados pelos franceses (assim evitando que se passasse em Portugal o que, poucos meses depois, se passaria em Espanha) e que o Império, de longe a principal fonte da riqueza e prestígio do Reino, caísse nas mãos dos ingleses.

O Conselho não podia desconhecer que contra a decisão da transferência da Corte para o Brasil estariam, não só a grande maioria dos que sempre pensam que “se nada se fizer, nada acontecerá” como a pequena minoria dos que, seduzidos pelos ideais da Revolução Francesa, lamentariam a opção pró-britânica que a transferência necessariamente representava.

Antecipando a deliberação, os preparativos da partida tinham-se iniciado logo no princípio de Novembro. Foram nomeadamente transferidos para os navios, assim os protegendo de um possível saque dos invasores, o tesouro real e quantos objectos preciosos se encontravam por igrejas e capelas. Fazendo fé na missiva, mandou-se armar a toda a pressa, no próprio dia 25, “as duas únicas naus que o não estavam”. Segundo ela, o pessimismo reinava: “cada hum anda fazendo mil combinações sobre os sucessos futuros e a crise actual das coisas. Quanto ao povo inculto, “não se via nele grande consternação mas um simples receio”.

 

3. A carta[8]

Lisboa, 24 de Novembro de 1807

Na Rua da Alegria Nº8

Meu primo, e amigo desejo muito que tenha uma perfeita saúde e poucos incómodos: eu aqui fico com o mano Francisco, e ambos nos recomendamos muito a sua Pessoa.

A última carta que lhe escrevi com data de 11 de Novembro não teve ainda resposta ainda que o mais interessante era saber da sua saúde, o que sempre me interessa muito, e por isso o acuso agora de omisso pois já irá tempo e eu fui ao Correio Geral e não achei carta sua. Presumo que gostará de algumas novidades desta terra, e por isso lhas darei – posto que tenho para mim que não há presentemente cousa mais arriscada do que dar e abonar huma novidade por certa – devendo saber que foi falso aquele boato que correu em Mafra quando lhe escrevi que se tinha aberto a barra aos Ingleses e mandado sair os Hespanhoes.

Vamos pois às novidades: acham-se aqui neste porto actualmente 13 naus Russas, e dizem que se esperam mais 4 ou 5 que faz a força completa da Esquadra que os Russos tinham no Mediterrâneo e com que baterão a Esquadra Turca. Alguns dizem que esta esquadra vem aqui de propósito, outros que por acaso, e que demorarão atá poderem navegar no Báltico, e outros que isto he efeito dos tratados de Tilsit quid quid lit concorre para a segurança do porto e deve consumir-nos os vinhos de que gostão muito bem. Fora da barra tem-se avistado huma esquadra Inglesa forte dizem de 14 velas, o nosso porto vai-se fortificando com actividade com baterias junto das praças de uma e outra parte do cais de Belém se está acabando huma de força de 15 canhões de 24 que se cruza com outra da banda d’alem em Porto Brandão de 13 canhões 10 de 36 cal e 3 de 12 cal depois disto o forte da Areia e a Torre de Belém se correspondem com a Torre Velha, mais para baixo estão as baterias da Trafaria que ficão correspondendo ainda que mais ao longe a huma grande bateria ao pé de Paço de Arcos todas elas estão bem municiadas e em todas há fornalhas para fazer as balas vermelhas, e no rio estão armadas as naus e 6 barcas canhoneiras, e huma flutuante e dizem que se mandam hir para aí mais barcos velhos para se prepararem com materiais combustíveis para se lançarem sobre um inimigo que queria entrar com huma esquadra, mas por ora ainda não está reunido inteiramente este sistema de defezas de que tenho dado uma idea mais circunstanciadas por que ontem fui eu ver todas essas baterias lá e tive a honra de ser conduzido pelo Inspector Geral das da outra banda o Senhor Brigadeiro Rosa que tudo me mostrou e que confia muito no bom efeito no caso de serem necessárias, o Brigadeiro Estokler das da Torre de Belém até Paço de Arcos e daí para diante o Brigadeiro Teixeira eis aqui quanto posso dizer-lhe do estado deste porto e das medidas que a ele relativamente se tem tomado do que se alcança e também em Tomar dizem estão 3 Regimentos em Torres Novas outro de cavalaria de Chaves e de Bragança e em Coimbra hum dos do Porto, e estes tem sido os movimentos de tropas que tem havido até ao presente fora dos primeiros que sabe. D. Lourenço de Lima partiu para França no Domingo dia 22 do corrente e o Marquez de Marialva já tinha partido para a Vestfália (a criação do Reino da Vestfália resultou do Tratado de Tilsit) a dar os parabéns ao novo Rei e levou muitos e bons presentes mas parece-me que partiu a 16 do corrente e não quando tinham dito. O Conde de Ega aqui se acha também há 12 dias e disseram hoje que chegou D. Domingos de Souza Coutinho que estava na Inglaterra mas isto não sei decerto como tudo que até aqui tenho dito. Agora de notícias populares e avulsas isso há um sem número delas cada dia que a cada hora se desmentem e deste número lá vão algumas para que não ignore. 1º. dizem aqui que Sydney Smith vem General da Esquadra Inglesa contra Portugal e que esta esquadra é já de 30 velas que se tem descoberto aqui e ali. 2º. Dizem que o general Hespanhol está em Alcantara de Hespanha para entrar com um exercito neste Reino quando for tempo e que os corsários hespanhois já tem feito algums presas em alguns hiates nossos o que certamente é falso porque a guerra não está declarada, e hoje também se afirmava por certo que os Ingleses nos tomaram trez navios nossos e que hum era do Loureiro mas ainda não há 8 dias que entraram 2 hum de Pernambuco e outro do Pará que sendo revistados pelos Ingleses não lhes fizeram mal e dizem que o Junot vem aqui com brevidade e que está em Madrid aplanando as diferenças entre o Príncipe das Asturias e o Rei e a esse respeito o que é certo he o Príncipe Herdeiro ter sido prezo por hum decreto e solto por outro e que com estas novidades as tropas que estavam nas nossas fronteiras recolherão mais para o interior e as cartas de Paris dizem que as guardas daquela cidade formarão huma divisão que se dirigiu para Baiona para d’ali marcharem para Madrid e he provavel que haja um destino mais particular e basta de novidades publicas vamos às particulares eu por aqui estou sem saber para quê pois até ao presente ainda não recebi ordem alguma mas porque a posso receber a cada instante aqui estou sempre pronto, o mano Francisco está também a cada dia esperando o seu despacho para a artilharia segundo lhe prometeu dizendo-se que tinha sido um equivocação comigo de que hei de ser reparado.

Como o portador deste he um meu camarada o Senhor José António Cibrão que me fez o favor de se oferecer se quisesse eu alguma coisa estou com os meus remorsos já de o ser por talvez roubar o tempo necessário a hum juiz para melhor conhecer da justiça em alguma coisa em que esteja posta a felicidade de alguma parte, ora pois se isto houver de suceder seja antes por me escrever que a ler as minhas que serão para o futuro mais breves e adeus meu Primo e amigo? Que eu lhe faça algum recado!

Sou seu muito amigo Filipe

P.S.:

Seu primo Bartolomeu sahiu coronel de Milicias para Soure anunciavão assim na gazeta de hoje.

Seguiu-se o seguinte suplemento datado de 25 de Novembro:

Hoje 15 do corrente à noite:

Aparecerão aqui hoje muitas novidades de que o portador he capaz de dar noticia mas repetirei o mesmo: huma foi a participação que Sydney Smith fez aos cônsules das Potencias declarando que o porto de Lisboa ficava em rigoroso bloqueio até que o objecto que está em questão seja decidido amigavelmente, e dizem ser este ou entregar o Príncipe a nossa Esquadra ou retirar-se para a America, ou principiarem as hostilidades e verifica-se a tomada de 2 navios e espera mais de 20 ao todo que vem de diferentes portos. Diz-se que os Francezes estão já em terras nossas e muito perto de Abrantes, ou Vila Velha e que o Marquez d’Alorna mandara dar parte que o exercito Hespanhol estava cada dia a aumentar-se e que pretende entrar naquela Provincia e que pergunta como se há de portar visto não ter armas para lhes embaraçar o passo, o oficial d’ordens que mo… já voltou hoje com os despachos d’Araujo e á vista destas coisas todas eficientes os efeitos que se tem visto são mandar-se hoje armar com toda a pressa duas únicas naus que o não estavam e meter-se a bordo (dizem) muitas coisas relativas à Ocharia Real e os comandantes de todas as naus têm ordem para irem àmanhã receber ordens ao Visconde d’Anadia: e o cambio subiu hoje de 16 a 30 por cento, e cada hum anda fazendo mil combinações sobre os sucessos futuros e a crise actual das coisas, eu também ando estudando com os mais mas noto não ver grande consternação no Povo mas um simples receio meu amigo ahi só lhe hão-de chegar as notícias dos males que por aqui nos ameação, eu aqui presenciarei as scenas que houverem e a Deus que se acaba o papel e a paciencia d’ouvir e dar mais noticias.

 

4. As personagens

a) O destinatário

O Dr. José Manuel Dias de Carvalho, senhor da Quinta da Figoeira, na freguesia de S. Pedro dos Grilhões da Azueira, termo de Torres Vedras, era filho do Sargento-mor da Ordenança de Torres Vedras Elisiário Manuel de Carvalho e de sua mulher D. Joaquina Clara da Silva, neto paterno de Manuel Dias de Carvalho, igualmente Sargento-mor de Torres Vedras, e de D. Rita Severa Correia Salgado, e materno do Mestre de Campo da Baía, José Álvares da Silva, e de D. Águeda Maria do Sacramento.

Fora baptizado na freguesia, a 30/VI/1780, sendo padrinhos um tio materno, Conselheiro Francisco Álvares da Silva, e uma prima co-irmã da mãe, Dona Inácia da Cunha Sobral[9], mulher do riquíssimo Joaquim Inácio da Cruz Sobral e Senhora da Quinta do Ramalhão, em Sintra. Foi ela quem a emprestou a William Beckford para que nela se instalasse durante a sua primeira estadia em Portugal e, mais tarde, a vendeu ao Príncipe Regente que a integrou na Casa do Infantado[10].

Nascido em 1744, cavaleiro-fidalgo da Casa Real em 1759, cavaleiro da Ordem de Cristo em 1773, Juiz de Fora de Torres Vedras em 1774, fidalgo de cota de armas em 1778, desembargador ordinário da Relação e Casa do Porto com o exercício de Primeiro Deputado da Junta de Administração das Fábricas do Reino e Obra das Águas Livres, casara com D. Ana Rosa da Silva, irmã de D. Joaquina Clara, sendo pois concunhado de Elisiário. José Manuel Dias de Carvalho era pois seu sobrinho.

Bacharelado em leis pela Universidade de Coimbra (carta datada de 14/VII/1803), foi o dito Dr. José Manuel Dias de Carvalho, conforme registado na Chancelaria de D. Maria I, nomeado Juiz de Fora de Peniche em Agosto de 1806, o que confirma a tradição familiar de que era ele o Juiz de Fora a quem a carta se destinava.

O Sargento-mor Elisiário tinha um irmão, Joaquim Manuel de Carvalho, que não casou e de quem se ignora ter tido filhos, e uma irmã, D. Ana Gertrudes Rita de Carvalho, que casou com o Dr. José António de Barros Gorjão, da Quinta dos Chãos, da freguesia de Santo Isidoro do Concelho de Mafra. Estes tiveram filhos, mas não se encontraram os respectivos assentos de baptismo por terem desaparecido os registos dos baptizados da freguesia realizados entre 1640 e 1801.

Os assentos de baptismo posteriores a 1801 indicam porém, não só os nomes dos pais como dos avós dos baptizados, entre as quais figuram António (b. a 6/IV/1815), Maria (b. a 27/V/1816), José (b. a 14/VI/1818) e Maria Emília (b. a 6/I/1821), todos filhos de um José Francisco d’Assis de Barros Gorjão de Carvalho, Tenente-coronel, morador na Quinta dos Chãos, e netos maternos do Dr. José António de Barros Gorjão e de D. Ana Gertrudes Rita de Carvalho.

Foi assim possível concluir que estes últimos foram pais do Tenente-coronel do Regimento de Milícias de Torres Vedras José Francisco de Assis de Barros Gorjão de Carvalho, nascido na Quinta dos Chãos, cavaleiro da Ordem de Cristo, fidalgo de cota de armas por carta de 24/VI/1811 (um escudo partido em pala; na Primeira as armas dos Barros, na Segunda as dos Carvalhos), casado com D. Antónia Desidéria de Noronha Cabral de Resende e Unhão, filha do Capitão-mor António Rufino Monteiro de Resende Cabral Baracho d’Unhão e Noronha e de D. Francisca Joana Gualberta do Carmo, da Quinta de Almisquer, freguesia de S. Martinho de Sintra.

Do processo do Desembargo do Paço M.341, N.1 (Corte, Estremadura e Ilhas), posto a D. Antónia Desidéria pelo irmão e cunhados, consta que o marido, Tenente-coronel José Francisco de Assis de Barros Gorjão de Carvalho, falecido a 1/III/1826, “conhecido como um dos melhores cultivadores do Distrito”, conclui-se que os bens do casal eram de grande importância, compreendendo quatro vínculos, um dos quais o do marido, e três prazos. A viúva era acusada de se ter deixado dominar por um criado a quem confiara a administração desses bens e com quem mantinha relações de lamentável intimidade.

Acharam-se, porém, porque os registos de casamentos de Santo Isidoro não apresentam falhas, os assentos de casamento de duas filhas: D. Maria Nazaré de Barros Gorjão e D. Rita Gertrudes de Carvalho Gorjão.

Dos dois restantes filhos varões do casal, filhos estes que nunca casaram, teve-se notícia, não só por aparecerem como padrinhos de alguns sobrinhos (por exemplo, o assento de baptismo de Maria Emília indica como padrinho o tio paterno Capitão Francisco Manuel Caetano Gorjão), mas por figurarem no já referido processo do Desembargo do Paço em que D. Antónia Desidéria de Noronha Cabral de Resende e Unhão foi ré, e autores um seu irmão (o Desembargador aposentado da Casa da Suplicação José Monteiro de Resende Cabral), e dois irmãos do defunto marido (o Coronel Quartel-mestre General do Exército Filipe Neri Gorjão e o Capitão de Artilharia Francisco Manuel Caetano Gorjão). Sendo militares estes dois últimos, foi possível dispor das informações constantes dos respectivos processos individuais arquivados no Arquivo Histórico Militar.

Assim se identificaram todos os netos do Sargento-mor Manuel Dias de Carvalho e de D. Rita Severa Correia Salgado, avós paternos do Dr. José Manuel Dias de Carvalho (isto é, de todos os primos co-irmãos deste pelo lado paterno). Quanto ao lado materno, não se apresentaram dificuldades especiais.

 

b) A família do destinatário do lado paterno

§1

Quinta da Figoeira

N 1 – MANUEL DIAS DE CARVALHO, Sargento-mor da Ordenança de Torres Vedras, Senhor da Quinta da Figoeira, n. na mesma Quinta, a 12/IX/1712, b. na freguesia de S. Pedro dos Grilhões da Azueira, a 11/X/1712, falecido na Figoeira, a 3/IX/1774, e sepultado na Ermida de Santa Cristina onde os Senhores da Figoeira enterravam seus mortos; casado, a 2/VIII/1742, na Igreja de Santa Maria de Loures, com D. Rita Severa Correia Salgado.

  2 – Elisiário Manuel de Carvalho, c. c. D. Joaquina Clara da Silva, §2.

  2 – Joaquim Manuel de Carvalho, s. g..

  2 – D. Ana Gertrudes Rita de Carvalho, casada com o Dr. José António de Barros Gorjão, §3.

 

§2

N 2 – ELISIÁRIO MANUEL DE CARVALHO, Sargento-mor da Ordenança de Torres Vedras, Senhor da Quinta da Figoeira, c. a 30/XI/1786, na Capela da Quinta do Ramalhão, freguesia de S. Pedro de Penaferrim, de Sintra, com D. Joaquina Clara da Silva que lhe levou de dote oito contos de ouro. Ampliou o património da família adquirindo várias propriedades e introduzindo, na Figoeira, importantes melhoramentos. Consta da matrícula de bacharel de seu filho que os Senhores da Figoeira “tinham sege, lacaios e cavalos, sendo uma das melhores casas do termo desta Vila (Torres Vedras) e nunca tiveram ofício algum mecânico”.

  3 – Dr. José Manuel Dias de Carvalho, Senhor da Quinta da Figoeira, b. na freguesia da Azueira, a 30/VI/1780, falecido na Figoeira, a 18/VI/1848, Juiz de Fora em Peniche durante as Invasões Francesas, sem geração.

  3 – D. Ana José de Carvalho e Silva, b. na freguesia da Azueira, a 8/XI/1781, casada na freguesia da Pena, de Lisboa, a 17/IV/1812, com o Dr. João Anastácio de Carvalhosa Henriques, Senhor da Quinta do Rossio, no termo de Alenquer (tetravós do autor).

 

§3

Quinta dos Chãos

N 2 – D. Maria Gertrudes Rita de Carvalho, casada com o Dr. José António de Barros Gorjão, da Quinta dos Chãos, freguesia de Santo Isidro, Mafra.

  3 – Tenente-coronel do Regimento de Milícias de Torres Vedras José Francisco de Assis de Barros Gorjão de Carvalho (Barros Jordão, da Quinta dos Chãos).

  3 – D. Maria da Nazaré de Carvalho Gorjão, casada com Sebastião José Ferreira Brunete, filho do Brigadeiro Francisco Brunete e de D. Joaquina Teresa Leonor Bárbara (Brunetes Gorjão, da Bandalhoeira).

  3 – Filipe Neri Gorjão (ou Filipe Neri Vital Jordão, ou Filipe Neri Gorjão d’Assis), professo na Ordem de Avis, 2º tenente do Real Corpo de Engenheiros, a 30/I/1806, seis anos de serviço na Guerra Peninsular, oito na Divisão dos Voluntários Reais em Montevideu (era major de engenharia em 1815), de onde regressou com as tropas fiéis, em 1824, na qualidade de Quartel Mestre General das mesmas), Quartel Mestre General do Exército, a 26/V/1828, reformado no posto de Brigadeiro, a 14/II/1831, com a graduação de Marechal de Campo, ficando adiado à Torre de S. Vicente, em Belém, falecido na freguesia de Santo Isidoro, a 12/IX/1856.

  3 – D. Rita Gertrudes de Carvalho Gorjão, b. na freguesia de Santo Isidoro, a 23/XI/1784, c. em Mafra, a 25/X/1806, com o Tenente-coronel Joaquim Inocêncio de Carvalho Pinto, b. a 28/XII/1782 (irmão de D. Maria da Nazareth de Carvalho Pinto, mulher do Marquês de Paranaguá, Grande do Império do Brasil, que empunhou o estoque quando da coroação do Imperador D. Pedro II. Carvalhos Gorjão, de Mafra.

  3 – Francisco Manuel Caetano Gorjão, 2º tenente agregado ao 1º Regimento de Artilharia a 2/XI/1807, major do Regimento de Artilharia, a 23/XII/1831.

Do lado paterno, eram pois primos co-irmãos de José Manuel Dias de Carvalho: Filipe Neri Gorjão e Francisco Manuel Caetano Gorjão.

 

c) A família do destinatário pelo lado materno

§1

Cachoeira e Baía

N 1 – JOSÉ ÁLVARES (ou ALVES) DA SILVA, Mestre de Campo da Baía, b. na freguesia de Santa Maria Maior, de Viana do Minho, a 26/XI/1701, c. na Vila da Cachoeira, a 13/I/1744, com D. Águeda Maria do Sacramento, irmã de D. Luzia da Conceição que foi Abadessa do Convento de Odivelas, e de D. Maria da Encarnação Correia de Magalhães, sogra de Joaquim Inácio da Cruz Sobral.

  2 – Dr. Francisco Álvares da Silva, b. a 26/X/1744, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia da Arquidiocese da Baía, como todos os seus irmãos, fidalgo de cota de armas por carta de 29/X/1771 em simultaneidade com os seus irmãos Lourenço, José e Simão (um escudo esquartelado; no primeiro quartel as armas dos Carvalhos, no segundo as dos Silvas, no quarto as dos Magalhães), casado na Vila da Arruda, a 27/VIII/1800, com D. Ana Teodora de Gamboa e Liz, sem geração.

  2 – D. Joaquina Clara da Silva, mulher de Elisiário Manuel de Carvalho e mãe do Dr. José Manuel Dias de Carvalho, baptizada a 3 ou 5/X/1745, falecida sem testamento na Quinta da Figoeira, a 9/V/1807.

  2 – Lourenço Correia da Silva, baptizado a 20/III/1747, cavaleiro da Ordem de Cristo, s.g..

  2 – D. Maria, baptizada a 6/IV/1748.

  2 – D. Ana Rosa da Silva (ver no §2).

  2 – Dr. José Álvares da Silva, baptizado a 28/X/1750, cavaleiro da Ordem de Cristo, desembargador na Baía, s.g..

  2 – Simão Álvares da Silva, Capitão-mor da Baía, Senhor do Paço do Saldanha, na Cidade da Baía, e do famoso Engenho de Sergipe do Conde, no Recôncavo da Baía, falecido em 1811, casado com D. Maria de Andrade e Silva, de quem teve, única filha e herdeira, D. Águeda Zeferina da Silva, casada com José Joaquim de Carvalho e Albuquerque, 2º Barão de Pirajá, grande do Império do Brasil.

  2 – Gaspar Álvares da Silva, gémeo de Simão, s.g..

 

§2

Barões da Arruda

N 2 – D. Ana Rosa da Silva, baptizada a 19/VII/1749, c. na Capela do Palácio Sobral, na freguesia das Mercês de Lisboa, a 23/I/1776, com o Dr. Domingos de Gamboa e Liz.

  3 – D. Maria Joaquina de Gamboa e Liz, b. na freguesia das Mercês, a 21/VIII/1777, casada na Arruda, a 9/IX/1798, com seu primo, o Capitão-mor da Arruda Bartolomeu de Gamboa e Liz (b. na Arruda, a 26/III/1870), que veio a ser par do Reino, a 1/IX/1834, e Barão da Arruda por carta de 27/VII/1845. Do lado materno, o único primo co-irmão do Dr. José Manuel Dias de Carvalho era, pois, por afinidade, o genro de D. Ana Rosa da Silva, marido de D. Maria Joaquina de Gamboa e Liz, Bartolomeu de Gamboa e Liz.

 

d) Bartolomeu

Reza a carta: “Seu primo Bartolomeu sahiu Coronel de Milícias para Soure anunciavam assim na gazeta de hoje”. A notícia foi publicada na gazeta com algum atraso.

Ora, do “Catálogo dos Decretos do Extinto Conselho da Guerra”, da autoria do Coronel Madureira dos Santos (VI volume, 1966), separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar, consta que, a 29/X/1807, foi mandado para o regimento de milícias de Soure, como coronel agregado, o Capitão-mor da Arruda Bartolomeu de Gamboa e Liz.

 

e) Francisco

O mano Francisco está também a cada dia esperando o seu despacho para a artilharia”.

Segundo a fonte acima mencionada, vários foram os Franciscos que por aqueles dias foram despachados para a artilharia. Porém, a 3/XI/1807, foi mandado promover ao posto da tropa de linha, para segundo tenente agregado ao primeiro regimento, um Francisco muito especial: Francisco Manuel Caetano Gorjão.

Conclusão:

Filipe, o signatário, não poderia ser senão Filipe Neri Gorjão, o futuro marechal do campo, irmão de Francisco, até porque José Manuel Dias de Carvalho não tinha qualquer outro primo chamado Filipe.

 

5. Os dias seguintes

A 27 de Novembro, pelas 11 da manhã, a Família Real portuguesa acompanhada do Governo e das figuras mais gradas da Corte, embarcou. Foi já a bordo que se tomaram as últimas decisões. O embarque de mais de 10 mil cortesãos, clérigos, oficiais régios, letrados e militares, com as respectivas famílias[11], fez-se durante todo esse dia e no dia 28, no meio da inquietação dos que ficavam e dos que partiam. A tempestade que desabara sobre Lisboa dificultou a operação. No dia 28, não foi possível levantar ferros porque o vento soprava do Sul. Mas, a 29, o vento começou a soprar do Nordeste e o Príncipe Regente ordenou a partida.

A armada levantou ferros, pairando em frente da barra até às 7 da manhã do dia 30. Só então zarpou para o Brasil, passando através da armada britânica que abrira alas para a deixar passar. Reconhecendo o pavilhão real arvorado na nau capitânia “Príncipe Real”, onde seguiam a Rainha Fidelíssima e o Príncipe Regente, e com eles os Infantes D. Pedro e D. Miguel[12], a frota britânica saudou-o solenemente, salvando com todo os seus canhões.

Muitos portugueses estavam certamente longe de comungar dos sentimentos dos aliados. No momento da partida, ter-se-ia mesmo esbatido nos espíritos a força dos argumentos que a favor dela haviam militado. E inquietavam-se os mais responsáveis por ver confiado ao caprichoso Oceano uma fracção tão significativa das elites e recursos materiais da Nação. Poucos teriam a noção de que não se tratava de uma fuga, mas de um transcendente acto político que assegurava a sobrevivência do Império e do próprio Reino.

Seguiam-se à capitânia sete naus de guerra: “Afonso de Albuquerque” (levando a Princesa Dona Carlota Joaquina e as Infantas de Portugal), “D. João de Castro”, “Rainha de Portugal”, “Medusa” (onde embarcou o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra), “Príncipe do Brasil”, “Conde D. Henrique” e “Martim de Freitas”, acompanhadas de três fragatas, “Minerva”, “Golfinho” e “Urânia”, três brigues, “Lebre”, “Voador” e “Vingança”, e duas escunas, “Furacão” e “Curiosa”. Com estes navios de guerra, iam cerca de 31 navios mercantes, em comboio cuja segurança à Armada competia assegurar.

Uma divisão naval britânica, comandada por Sidney Smith, escoltou a frota portuguesa até cerca de metade do caminho entre Lisboa e a Madeira. Nesse ponto, as duas Armadas separaram-se, mas quatro navios de guerra britânicos[13] (Marlbourough, London, Bedford e Monarch) foram destacados para acompanharem até ao Brasil a frota lusitana, reforçando-a nessa parte da viagem. Embora inicialmente essa paragem não estivesse prevista, o Príncipe Regente entendeu aportar a S. Salvador da Baía, perante o espanto da população e das próprias autoridades (entre as quais o Governador da Baía, D. João de Saldanha da Gama de Melo e Torres Guedes de Brito, 6º Conde da Ponte[14]) que de nada tinham conhecimento, pelo que a visita real foi, também para elas, um acontecimento inesperado.

 

6. Epílogo

Como se de tragédia antiga se tratasse, foi à hora matinal da partida da partida da Família Real que Junot entrou finalmente em Lisboa. As salvas dos navios ingleses que ainda pôde ouvir não lhe deixaram dúvidas sobre que a Família Real e a Armada que lhe incumbia capturar, lhe tinham escapado. Ocultou a sua frustração na carta que escreveu ao Imperador e que este recebeu em Itália, a 17/XII/1807. Nessa lhe comunicou, com fingido entusiasmo, a queda de Lisboa, afirmando que podia ser considerada “a cidade mais rica do Mundo”. Acrescentou que “as tropas portuguesas constituiriam, para o Exército francês, preciosos auxiliares”.

Lúcido, Napoleão não comungou do entusiasmo do seu general. Repreendendo-o, respondeu-lhe: “a miséria, a fome, os ingleses que desembarcarão, as intrigas que agitam o País, o próprio fantasma do Príncipe Regente… Todo o povo que tem na frente é seu inimigo”.

Mais tarde, em Santa Helena, referindo-se ao Príncipe Regente D. João, diria: “foi ele o único que conseguiu enganar-me”.

 


[1] Leia-se o último parágrafo do artigo do autor intitulado “Sobre os Carvalhos da Quinta da Figoeira, no termo de Torres Vedras”, publicado na série DisLivro Histórica, 2/2009.

[2]  Na Tourinha, freguesia de S. Pedro dos Grilhões da Azueira, termo de Torres Vedras.

[3]  Quando da 1ª Invasão Francesa.

[4]  Do qual resultou, nomeadamente a elevação da Vestefália a Reino e a criação do Grão-Ducado de Varsóvia.

[5]  A Armada britânica era a mais poderosa de todas, respeitando o princípio fixado pelo Almirantado de ser mais poderosa que as duas seguintes somadas. A francesa e a espanhola, que já tinham sido as que imediatamente se seguiam à britânica, foram em grande parte destruídas nas batalhas em que com esta ultimamente se tinham defrontado. Era pois vital para Napoleão reforçar o poder marítimo francês à custa do de outras potências, como Portugal e a Rússia.

[6]  Em inglês, battleships, o tipo de navios de Guerra mais bem protegidos e equipados com a mais poderosa artilharia.

[7]  Futuro 1º Conde da Barca.

[8]  Em cuja transcrição se manteve a ortografia e pontuação da época em que foi escrita.

[9]  Que se fez representar pelo Dr. Domingos de Gamboa e Liz.

[10]  Lá residiu pois a Princesa D. Carlota Joaquina, sua mulher, e lá nasceu o Infante D. Miguel que seria Rei.

[11]  Sem contar os tripulantes dos navios e os particulares que, viajando nos navios mercantes, entenderam seguir o exemplo da Corte.

[12]  Bem como um dos Infantes de Espanha, D. Pedro Carlos, sobrinho da Princesa Dona Carlota-Joaquina, que residia em Lisboa.

[13]  Refere-se, em quase todas as descrições do acontecimento, que os navios portugueses seguiram para o Brasil “escoltados” pela Armada Britânica, o que constitui um evidente exagero.

[14]  Senhor do famoso “Morgado dos Guedes de Brito”, o mais importante da Baía e do Brasil. Daí a razão do apelido “Guedes de Brito” que estava obrigado a usar por imposição da última verdadeira Guedes de Brito que, morrendo sem filhos, deixara toda sua riqueza ao marido, que era da família dos Condes da Ponte, impondo a condição de tanto ele como os seus sucessores continuarem a usar o apelido dela.

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2017-09-25
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Prof.

Eduardo Romano de Arantes e Oliveira

Membro Honorário da Associação Portuguesa da Construção Metálica. Administrador da Fundação Cidade de Lisboa. Sócio da Academia das Ciências de Lisboa. Membro Emérito da Academia de Engenharia. Sócio Efetivo, de número, do Instituto Português de Heráldica. Doutor honoris-causa pelas Universidades de Liége (Bélgica), Ásia Oriental (Macau), Federal do Rio de Janeiro (Brasil) e Macau (China).

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by COM Armando Dias Correia