O fornecimento privado de segurança e de serviços de cariz militar é um dos fenómenos mais interessantes da conflitualidade contemporânea, que desafia as ideias convencionais sobre o papel do Estado-nação enquanto principal protagonista na “arte da guerra” e na garantia de protecção aos cidadãos. Nas últimas décadas, tem-se assistido à emergência e consolidação de uma poderosa indústria global de segurança privada, que conta hoje com mais de uma centena de empresas a operar em diversos palcos.
Na ausência de estruturas legais de regulação da actividade de tais empresas, levanta-se a questão da sua legitimidade e accountability[1] na esfera das políticas de segurança, sobretudo se considerarmos os incidentes que têm vindo a público e que remetem para uma associação entre a contratação privada no quadro das intervenções militares contemporâneas, e a imagem clássica dos soldados mercenários ou “senhores da guerra”.
O presente artigo examina o impacto da privatização da segurança em vários contextos, mas com enfoque no sector militar, procurando concluir da sua eficiência em termos de estratégia nacional de segurança e defesa; do seu efeito sobre a opinião pública; bem como da sua pertinência enquanto abordagem liberal à política e às relações internacionais.
Como bibliografia de base recorreu-se ao trabalho de Peter Singer, em particular “Corporate Warriors: The Rise of the Privatized Military Industry” (2003) e “The Private military Industry and Iraq: What have we learned and where to next?” (2004), um dos primeiros a reflectir amplamente acerca da tendência para o outsourcing militar no pós-Guerra Fria, sobretudo por parte dos Estados Unidos, e cuja taxonomia de classificação de empresas militares privadas aqui se adopta. Foi também explorado o livro de Jeremy Scahill “Blackwater: The Rise of the World’s Most Powerful Mercenary Army” (2007), bem como o não muito extenso corpo jurídico existente sobre o tema: o Protocolo I das Convenções de Genebra (1977) e as duas Convenções sobre o Mercenarismo (1977; 1989). Para atingir os objectivos traçados, utilizou-se uma metodologia baseada na revisão da literatura especializada, em matérias como as Teorias de Estado, as Teorias de Relações Internacionais e a resolução de conflitos.
Para Max Weber, o monopólio legítimo da violência, de modo a fornecer segurança aos cidadãos, era o símbolo da soberania e a própria razão para a existência de um Estado. No entanto, ao longo da História, isto tem sido a excepção e não a regra, tendo em conta que só muito recentemente o Estado se tornou o detentor por excelência do monopólio da força armada (antes da Paz de Vestefália qualquer pessoa com recursos suficientes podia criar um exército).
A partir de 1648, desenvolveu-se o conceito de exércitos compostos de cidadãos leais a um Estado-nação. A passagem do mercenarismo aos exércitos de cidadãos foi fruto da emergência do Estado-nação enquanto modelo de organização política e do desenvolvimento tecnológico, sobretudo a introdução da arma de fogo. Além disso, tornou-se claro que manter um exército nacional permanente era menos oneroso do que mobilizar e reformar tropas sempre que necessário (DUNNING, s.d.: 3). Ainda assim, o costume de suplementar um exército com soldados contratados manteve-se no sistema internacional moderno (SCHEIMER, 2009: 615).
O pós-Guerra Fria marca, de alguma forma, o começo do fim da concepção weberiana de Estado-nação. À confrontação tradicional entre blocos ou entre Estados vieram juntar-se novas tendências resultantes da proliferação de actores sub-estatais com poder para exercer violência sobre outros actores (como os grupos terroristas, os cartéis de narcotráfico ou mesmo, em última análise, os hackers informáticos). Não sendo uma novidade, outro aspecto que povoa a paisagem dos conflictos contemporâneos é, como veremos, a privatização da segurança militar e civil, nunca como hoje tão importante e controversa.
2.1 O outsourcing no sector da segurança
A Guerra Fria aumentou a procura de fornecedores militares privados (quer legais quer ilegais), essencialmente por dois motivos. Em primeiro lugar, a actividade mercenária floresceu internacionalmente nas décadas de 1960 e 1970, em virtude do apoio das duas superpotências a movimentos ideologicamente alinhados com os seus. Foi o caso da Rodésia (actual Zimbabué), do Vietname, de Moçambique, entre outros, cujas guerras civis foram largamente alimentadas, quer pelo Ocidente quer pela URSS. Outro factor que contribuiu para o aumento do outsourcing no sector da segurança foi nada menos do que a própria tendência para a privatização[2] (GAINER, 2010: 19-22).
O termo privatização refere-se à transferência de propriedade ou controlo dos bens, empresas e operações governamentais ou estatais para investidores privados (OCDE, s.d.: 150). Os primeiros passos explícitos neste sentido deram-se com a emergência do neoliberalismo, enquanto princípio orientador da política durante a era Reagan e Thatcher (ETTINGER, 2011: 5). A mudança geral no pensamento económico e político que se deu na altura traduziu-
-se numa absorção pela esfera privada de actividades que tradicionalmente cabiam ao governo, entre elas a defesa. Agravada pela redução drástica dos orçamentos militares resultante do final da Guerra Fria, esta tendência continuou o seu trajecto de expansão até hoje (SINGER, 2007: VII).
Estas mudanças profundas representam um desafio às perspectivas convencionais sobre o Estado e as Relações Internacionais. As Teorias de Relações Internacionais resultam pois insuficientes para analisar a natureza em mudança do Estado, sendo que o paradigma amplo da Economia Política Internacional permite um enquadramento teórico mais sofisticado. Isto porque a privatização militar é apenas um dos eixos de um fenómeno mais alargado – o condicionamento do Estado moderno pela moldura do mercado neoliberal que enquadra a globalização no século XXI (ETTINGER, 2011: 3).
2.1.1 A indústria de segurança privada
Na última década assistiu-se ao crescimento de uma poderosa indústria de segurança (militar e civil) privada. Este universo é constituído por empresas que comercializam serviços ligados à guerra – do mero apoio logístico, ao combate físico – e que têm demonstrado cada vez maior capacidade e vontade em cooperar na resolução de conflitos (MAGALHÃES, 2005: 155). Como referido anteriormente, para compreender a génese deste fenómeno importa notar que este se inscreve num contexto de alguma erosão do papel do Estado-nação, de redução generalizada dos orçamentos nacionais para a segurança e defesa, e de crescimento normativo da privatização.
Desde as companhias bem estabelecidas no mercado, como a Halliburton-KBR, a Academi (antiga Blackwater), a DynCorp, ou às start-ups, como a sul africana Erinys International, um grande conjunto de empresas tem desempenhado um papel fundamental em conflitos e intervenções contemporâneos, com destaque para o Iraque e o Afeganistão. Frequentemente descritas apenas como “empresas de segurança”, estas empresas ou firmas militares privadas desempenham um vasto conjunto de tarefas de cariz militar, estando muito longe de ser um simples fornecedor de escolta pessoal (SINGER, 2007: 3).
2.1.2 Definição, taxonomia e estatuto das empresas de segurança privadas: um desafio conceptual
A definição tradicional de mercenário aplica-se àquele/a que aceita dinheiro ou outro tipo de benefício em troca de um serviço militar. Contudo, e embora tanto indivíduos como empresas privadas tenham estado, durante séculos, envolvidos na condução da guerra, não há definição universalmente aceite de mercenarismo. Três critérios fundamentais têm, porém, sido usados para definir um mercenário: 1 – é um actor exterior ao conflito; 2 – é motivado exclusivamente pelo desejo de lucro privado; 3 – participa directamente no combate (CG – P. I, 1977: ARTº 47.2)[3].
Não é pois possível retirar daqui a conclusão determinante de que todos os funcionários de empresas de segurança privadas são mercenários, sob a alçada, quer das Convenções sobre Mercenarismo quer do direito internacional humanitário[4]. Para todos estes documentos legais a definição de mercenário requer uma determinação individual, caso a caso (CAMERON, 2006: 578). Além disso, as empresas de segurança privada contemporâneas apresentam também um conjunto de características que as distinguem das suas predecessoras: uma imagem empresarial distinta; uma promoção e defesa públicas da sua utilidade e profissionalismo; um uso de instrumentos legais e financeiros internacionalmente aceites para garantir o seu negócio; e um apoio dado apenas a governos soberanos, reconhecidos pela comunidade internacional (BURES, 2008: 2).
O Documento Montreaux[5], redigido por iniciativa do Comité Internacional da Cruz Vermelha, define-as da seguinte forma:
“[…] entidades privadas que proporcionam serviços militares e/ou de segurança, independentemente da forma como se descrevem. Os serviços militares e de segurança incluem, em particular, a protecção armada de pessoas e objectos […]; a manutenção e operação de armas; e o aconselhamento ou formação de forças locais e de profissionais de segurança” (CICV, 2008: 6).
Importa esclarecer que o termo não existe no âmbito de nenhuma lesgislação internacional e os diferentes autores referem-se as estas empresas de maneiras diferentes. Peter Singer, por exemplo, emprega a expressão firma militar privatizada para aquilo que entende como “organizações movidas pelo lucro que comercializam serviços profissionais intrincadamente relacionados com a condução da guerra” (SINGER, 2002: 186).
É possível classificar estas empresas mediante diferentes critérios, desde o tipo de clientes à localização da sua sede[6]. Para cumprir os propósitos deste artigo, entendeu-se ser mais útil classificá-las quanto ao tipo de serviços que fornecem. Uma taxonomia muito utilizada é a que Singer apresenta na obra seminal sobre este tema, “Corporate Warriors” (2003). Singer classifica a indústria em três categorias de serviços: firmas aprovisionadoras; firmas de consultadoria; e firmas de logística. Naturalmente, para muitas empresas, estas designações sobrepõem-se.
As firmas aprovisionadoras, oferecem assistência militar táctica directa aos seus clientes, o que pode incluir servir na frente de combate. Alguns contemplam mesmo a entrega de futuras missões de peacekeeping das Nações Unidas a estas empresas, sob o argumento de maior eficiência em relação aos “capacetes azuis”. As firmas de consultadoria utilizam oficiais seniores ou não-destacados para fornecer aconselhamento estratégico e treino a clientes que procurem transformar as suas organizações e melhorar drasticamente as suas capacidades militares. Por fim, as firmas de logística fornecem serviços de apoio militar às forças armadas, em áreas como logística, intelligence e manutenção. Estas empresas permitem ainda aos soldados concentrar as suas energias no combate e reduzir mobilizações (sempre politicamente sensíveis) para certas funções de apoio (SINGER, 2004: 3).
2.1.3 (Des)enquadramento legal e accountability
Algumas empresas cometeram crimes e abusos[7] no decurso das suas operações e foram contratadas por ditaduras, exércitos rebeldes, grupos terroristas ou cartéis de droga (SINGER, 2004: 523), e não exclusivamente por governos legítimos. Porém, acontece que as empresas de segurança privadas gozam de um autêntico não-estatuto, de uma zona legal cinzenta, em virtude das suas características híbridas que não permitem classificá-las nem como entidades militares nem como civis.
Isto cria uma situação preocupante de dois pontos de vista: o do contratado e o do público em geral. No primeiro caso, porque há uma falta de clareza quanto ao que acontece ao funcionário de uma empresa deste tipo no caso de ser capturado. Uma vez que não se encontra em princípio abrangido pelo estatuto de POW (“prisioneiro de guerra”), sob as Convenções de Genebra, cabe ao adversário definir o seu estatuto. No segundo, porque, aos olhos do público, e particularmente do contribuinte, a situação destas empresas é muitíssimo duvidosa.
Depois, em termos de responsabilização legal, não é claro como, quando, onde e a que autoridades cabe investigar, imputar e julgar os crimes cometidos por estas empresas ou pelos seus empregados (SINGER, 2004: 12; CAMERON, 2006: 587). Ainda que alguns estados tenham entretanto tomado algumas providências, essencialmente com resposta a escândalos envolvendo empresas sediadas na sua jurisdição ou cujos serviços contrataram, chamar os responsáveis à justiça permanece uma tarefa difícil. Segundo Singer (2004: 14), a indústria militar privada constitui, hoje, um sector cujo comportamento é ditado não pelo direito, mas simplesmente pela economia.
O Direito Internacional carece, pois – à parte do Tribunal Penal Internacional, que julga somente a título individual –, de meios reais para ser aplicado sem a intervenção dos estados. Isto coloca o problema ao nível estatal e das leis nacionais, mas uma vez que as empresas de segurança privada operam tipicamente em estados ditos falhados (SINGER, 2004: 11-12), isto é, em zonas onde a estabilidade política e o estado de direito colapsaram, encontramo-nos perante uma verdadeira “jurisdição de ninguém”.
Por todos estes motivos, é comum ouvir chamar mercenários aos funcionários de empresas de segurança privada – um termo que provoca fortes recções emocionais. Mas, como vimos, estas empresas não cabem na definição internacional de mercenarismo nem o conceito é particularmente útil para resolver o dilema da sua regulação (CAMERON, 2006: 577).
3.1 (Mais) Uma guerra privatizada
Como já referido, o fenómeno das empresas de segurança privada não é novo, nem tão pouco um exclusivo da estratégia de economia militar americana. Porém, talvez em virtude do elevado número de funcionários em serviço no terreno – estima-se que, em 2006, seriam cerca de 48000 (SOLIS, 2006: 2) –, a guerra do Iraque é frequentemente mencionada como a “primeira grande guerra privatizada”[8]. Dificilmente outro conflito ilustra tão bem a actividade crescente desta indústria.
Outra particularidade no Iraque é o grande número de empregados de países terceiros (nem iraquianos nem provenientes dos países membros da coligação liderada pelos Estados Unidos, mas originários de África, Ásia e América Latina, num cenário que relembra – embora em moldes distintos – os tempos da Guerra Fria). Estes empregados “estranhos ao conflito” são hoje mais de metade dos contratados no Iraque. Treinados pelos seus exércitos nacionais, estão dispostos a trabalhar por salários muito mais baixos, em ambientes de alto risco. Os resultados desta prática são em tudo perversos, desde a opacidade relativamente às baixas reais do conflito, aos sucessivos escândalos de abuso de direitos humanos.
3.2 Blackwater: a mesma empresa, várias faces
A empresa Academi (que já deu pelo nome de Xe Services LLC e se popularizou enquanto Blackwater) apresenta-se oficialmente na sua página na internet como uma entidade privada “inovadora” que oferece “formação e soluções de segurança” em diversos pontos do globo. Definindo três áreas de expertise dentro do espectro da segurança – a avaliação, o treino e a protecção – podemos encontrar na sua oferta, desde serviços de consultadoria e gestão de risco; cursos de protecção individual e diversas formações para civis; sessões de treino em contra-terrorismo para organizações; ao, especialmente controverso, apoio a missões de segurança internacional.
O negócio da Blackwater sofreu um autêntico boom a partir do 11 de Setembro. A empresa cresceu exponencialmente durante a administração Bush, particularmente desde o começo da guerra no Iraque. Em 2000, a empresa encaixava apenas cerca de $200.000 em contratos, em comparação com $25 milhões, em 2003, e $1 bilião, no final de 2007. Em 2007, o fundador, Erik Prince, afirmou que 90% das receitas da Blackwater eram resultantes de contratos governamentais, um terço dos quais sem licitação (IPS, 2013) – uma modalidade contratual a que o direito da União Europeia, por exemplo, nem sequer reconhece legalidade.
As ligações entre a Blackwater e a CIA, conhecidas pelo menos desde 2002, particularmente o seu papel no programa de assassínio de líderes da Al-Qaeda, promovido pela agência, em 2004 (BAER, 2009), e entretanto cancelado pela Administração Obama, desde logo geraram controvérsia. Mas foi no Iraque que a empresa foi verdadeiramente posta à prova, o que levaria a uma reconfiguração da sua imagem, então completamente danificada, na tentativa de manutenção de um perfil de seriedade e compromisso rigoroso com princípios éticos.
3.3 O episódio Nisour
A 6 de Setembro de 2007, um grupo de seguranças da Blackwater, que escoltavam um veículo do Departamento de Estado norte-americano onde seguiam diplomatas, entrou numa praça movimentada de Bagdade. É a partir daqui que as descrições do que se passou divergem. Os empregados da Blackwater afirmam ter sido sido alvo de uma emboscada e ter respondido em legítima defesa, tentando fugir do local. Pelo contrário, a polícia iraquiana e outras testemunhas relatam que os empregados abriram fogo primeiro, disparando aleatoriamente contra um carro que passava (o que um posterior relatório do exército americano parece corroborar). Aquilo sobre o que não há dúvidas é o desfecho deste episódio: vinte baixas civis iraquianas (incluíndo os passageiros do carro que acabaria por se incendiar, um casal e uma criança) e a consequente fúria do governo e população iraquianos (SINGER, 2007: 1; REUTERS, 2007).
O Primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki não poupou a empresa de acusações, naquilo que descreveu como um “massacre”. Imediatamente, o governo iraquiano cancelou a licença da Blackwater para operar no país e exigiu o julgamento dos empregados envolvidos no incidente da Praça Nisour, de preferência no Iraque, bem como a remoção da empresa e uma indemnização pelos danos causados, no valor de 8 milhões de euros, às famílias das vítimas. Também foi proposta a substituição das restantes empresas de segurança privada estrangeiras por empresas iraquianas (CNN, 2008).
Os Estados Unidos, verdade seja dita, responderam prontamente à raiva iraquiana e, logo em outubro de 2007, o Congresso americano aprovou com 389 votos (contra 30) uma lei[9] que torna possível a acusação de funcionários de empresas contratadas pelo Departamento de Estado, por abusos de direitos humanos ou incumprimento de normas de conduta, tanto em tribunais militares como civis. Até aqui, estas empresas e os seus respectivos funcionários encontravam-se em situação de impunidade, de ausência de estatuto legal claro, visto escaparem tanto à jurisdição americana como iraquiana. Este foi certamente um primeiro passo decisivo no longo caminho para a regulação das empresas de segurança privada, mas o debate sobre qual a melhor solução mantem-se em aberto.
Em termos de impactos na resolução de conflitos e construção da paz, as empresas de segurança privada são diabolizadas por uns e tidas como o futuro do peacekeeping por outros. Se, por um lado, permitem garantir proteção quando as forças convencionais não podem fazê-lo, aliviando o esforço militar dos estados e reduzindo os custos de uma intervenção; por outro lado, este tipo de configuração cria distorções no panorama interno da segurança, como os chamados “bolsões de segurança” – áreas altamente securitizadas em ambientes de grande violência (PAOLIELLO, 2011) –, com graves consequências para os estados frágeis, em particular, e no plano internacional, em geral. O debate em torno do papel das empresas de segurança privada em contextos de conflito e pós-conflito, nomeadamente em operações de peacekeeping, ainda está longe de ser concluído.
Na opinião de Luís da Vinha, professor na Valley City State University, embora se possa vislumbrar algum papel para o sector privado, designadamente em situações já estabilizadas e em funções operacionais secundárias, o seu contributo não parece capaz de servir mais do que uma paz negativa pontual. A construção de uma paz positiva sustentável não se coaduna com lógicas de promoção comerciais, nem com a desresponsabilização dos estados e da comunidade internacional (DA VINHA, s.d. : 53).
No Kosovo, por exemplo, estudos mostraram que as empresas de segurança privada são percepcionadas como uma mais-valia, contribuindo para um ambiente mais seguro na região, mas apresentando grande necessidade de melhoria da sua transparência e accountability (KCSS, 2009). No caso do Iraque, contrariamente, e embora as empresas privadas não sejam o único causador de problemas, parece que o outsourcing massivo de forças militares não foi muito útil para a estratégia de contra-insurgência americana, sobretudo quando relacionado com episódios como os da Praça Nisour (SINGER, 2007: 15), nem para a estabilização do país.
O fenómeno da privatização coloca muitas questões prementes que se adensam à medida que surgem intervenções externas em estados frágeis ou falhados, e se entrelaçam naquele que é um dos temas mais sensíveis e controversos do atual paradigma de segurança internacional. Uma das características mais evidentes deste paradigma é, talvez, a tendência para uma certa desresponsabilização do estado das suas funções de defesa e protecção civil/militar, com uma quantidade crescente de empresas de segurança a operar em teatros de guerra (só no Iraque, o número de contratados americanos excede o número de militares dos restantes países membros da “Coligação de Vontade” juntos). A perspetiva de organizações como a ONU virem a recorrer a estes serviços, quando as suas forças não possam responder eficazmente aos desafios da conflitualidade contemporânea, é a prova que faltava de que este modelo de privatização veio para ficar.
A maior vantagem do recurso à indústria privada em relação às forças convencionais é, no entanto, e contrariamente ao que a doutrina liberal pode fazer supor, muito mais de caráter político, do que propriamente económico (SINGER, 2004: 10), ou não estivessem estas empresas geralmente associadas a contratos milionários. O outsourcing permite reduzir os custos políticos das mobilizações, ao mesmo tempo que apazigua, de certo modo, a opinião pública, já que os dados relativos a estas empresas não entram na contabilização do país que intervém, e a verdade é que o destacamento ou mesmo a perda de um funcionário não é sentido da mesma forma do que tratando-se de um militar ou agente de segurança ao serviço do estado. Além disso, muitas destas empresas recrutam mão-de-obra barata em países terceiros, o que conduz a um afastamento emocional ainda maior perante as baixas.
Muitas são as questões por resolver. Não parecendo haver vontade política para tal, uma nova convenção internacional sobre esta matéria é improvável, pelo que alguns autores defendem que se devem considerar opções alternativas para a regulação da indústria de segurança privada, como é o caso de Lindsey Cameron. Para Cameron (2006: 597), uma possível solução poderia ser a criação de um grupo de trabalho que definisse um standard mínimo de direitos humanos que as empresas deveriam respeitar e, mais importante, encorajar-se os estados a regular as empresas registadas ou com sede na sua jurisdição. Os estados que se encontram vinculados às Convenções de Genebra, deveriam estar obrigados também a garantir que estas empresas e os seus funcionários tenham conhecimento do direito internacional humanitário. Segundo Tiefer (2009), a oportunidade de reforma do estatuto legal destas empresas, a partir de ferramentas de regulação dos seus contratos, deverá ser cuidadosamente pensada nos próximos anos.
Em conclusão, combinar as necessidades de segurança com os serviços fornecidos pela indústria privada não tem de ser necessariamente uma solução terrível. Como todas as experiências de privatização, e não obstante as especificidades do sector, a privatização da segurança traz vantagens e acarreta implicações (de ordem política, legal, social, cultural, económica, ética...) que devem ser constantemente ponderadas e avaliadas através de medidas eficientes e de um sentido de negócio apurado, inteligente (SINGER, 2004: 22-23) e, acima de tudo, sensato. Importa ter presente que, no fim de contas, se trata de gerir a segurança e a integridade de vidas humanas.
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TIEFER, Charles (2009) “No More Nisour Squares: Legal Control of Private Security Contractors in Iraq and After”, Oregon Law Review, Vol. 88, https://scholarsbank.uoregon.edu/xmlui/bitstream/handle/1794/10805/tiefer.pdf?sequence=1 [consultado a 20 de maio de 2013].
1 Optou-se por manter a expressão inglesa, sem tradução exacta, mas que corresponde em termos gerais à noção de responsabilização. Accountability remete para a obrigação dos membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias controladoras ou aos seus representados, uma obrigação que é tanto maior quanto mais relevante é a função, e sobretudo (mas não só) quando se trata de uma função pública.
[2] Os primeiros indícios do processo de privatização de algumas partes do esforço de guerra norte-americano datam da Guerra do Vietname. Mas só em 1985, durante o governo republicano de Ronald Reagan, foram claramente celebrados contratos com empresas particulares para substituir a estrutura militar fixa dos Estados Unidos. Porém, é interessante notar que a Guerra nos Balcãs ocorreu sob uma liderança democrata, a de Bill Clinton. Daqui se depreende que o movimento pela privatização da segurança por parte dos Estados Unidos, fortemente associado às intervenções pós-11 de Setembro, não é um exclusivo das administrações republicanas nem da era Bush – embora aí se tenha registado um grande aumento do emprego destes serviços, com destaque para o Iraque –, mas algo que se tem vindo a afirmar como linha de força da política de segurança e defesa norte-americana.
[3] Uma definição assente nestes três pilares deixa, por si só, um espaço de indefinição muito grande para se poder identificar inequivocamente uma empresa de segurança privada como mercenária, o que se traduz na falta de consenso relativamente ao seu estatuto legal no âmbito do direito internacional humanitário. Isto, porque a maioria das empresas apresenta os dois primeiros critérios, mas nem sempre o ultimo.
[4] Embora diversas leis nacionais e internacionais regulem o uso de exércitos privados, a legislação existente não prevê o estatuto das empresas de segurança privada. Quer o Protocolo Adicional (I) às Convenções de Genebra (1977) quer a Convenção das Nações Unidas contra o Recrutamento, Uso, Financiamento e Treino de Mercenários (1989) não são de especial utilidade para endereçar o problema, uma vez que os conceitos de mercenarismo que apresentam são datados e não se aplicam à realidade da indústria militar privada. O mesmo se passa com a Convenção da Organização da União Africana para a Eliminiação do Mercenarismo em África (1977), cuja definição de mercenário também não é trabalhável à luz do contexto actual.
[5] Este documento é o mais recente esforço internacional para regular a indústria de segurança privada, estabelecendo “obrigações legais internacionais pertinentes e boas práticas para os Estados, relacionadas com operações de exércitos privados e empresas de segurança em conflitos armados” (CICV, 2009). Mas embora mais robusto que as tentativas anteriores, o seu carácter não vinculativo significa que, na prática, as partes não têm qualquer obrigação de seguir os princípios por ele definidos.
[6] Existem outras taxonomias: Doug Brooks (2002), por exemplo, distingue entre empresas fornecedoras de serviços não-letais, empresas militares privadas (activas ou passivas) e empresas de segurança (civil) privada. Embora semelhante à de Singer, a taxonomia de Brooks implica que as empresas tenham de ser classificadas com base num único contrato. Mas como se torna evidente ao observar a actividade destas empresas, é possível que sejam “activas” em certos domínios, e “passivas” noutros, que forneçam tanto serviços “letais” como “não-letais”, dependendo dos contratos. Assim, a taxonomia de Singer, aqui empregue, oferece maior flexibilidade e torna-se analiticamente mais interessante, ao permitir colocar as empresas em várias categorias descritivas ao mesmo tempo (GAINER, 2010: 34).
[7] Um exemplo gritante é o caso dos abusos de direitos humanos na prisão iraquiana de Abu Ghraib. O exército norte-americano descobriu que 36% dos casos ocorridos envolviam contratados e identificou como culpados seis funcionários de empresas de segurança privadas, em particular. Contudo, nenhum destes indivíduos foi ainda acusado, julgado ou punido, ainda que os membros das forças armadas convencionais também envolvidos nos abusos o tenham sido (SINGER, 2004: 13). Além disto, o relacionamento da Blackwater com a CIA, conhecido, pelo menos, desde 2002, levanta muitas questões, particularmente a respeito do seu papel no programa de assassínio de líderes da Al-Qaeda promovido pela Agência – e entretanto cancelado pela administração Obama, em 2009 (MACASKILL, 2009).
[8] No entanto, a guerra nos Balcãs registou valores de privatização militar equivalentes aos da guerra no Iraque. Tanto na Bósnia como no Kosovo, Estados em reconstrução e onde o mercado era fraco e desregulado, as empresas de segurança privada emergiram, e com elas também, ocasionalmente, os registo de abusos de direitos humanos. Eric Hobsbawm, nomeadamente, fala dos Balcãs como o marco do fim de uma era, e como exemplo disso a nova tendência para a presença crescente para a privatização.
[9] A nova emenda à Defense Bill coloca os empregados e outros acompanhantes das forças armadas no terreno sob o Uniform Code of Military Justice (definindo que este abrange civis não só em situações de guerra declarada mas também em operações de contingência). Por outras palavras, de repente cerca 100 000 funcionários de empresas privadas passaram a encontrar-se perante o mesmo conjunto de leis militares que regem as forças armadas (SINGER, 2007). Mas se os tribunais militares já têm dificuldade em supervisionar as suas próprias forças, é particamente impossível fazerem-no com os funcionários das empresas privadas, cujos números não são sequer capazes de precisar.
Mestre em Estudos do Médio Oriente, na Universidade de Lund (Suécia). Assistente no Raoul Wallenberg Institute of Human Rights and Humanitarian Law de Lund.