Os exercícios de previsão são sempre difíceis de realizar.
São-no ainda mais em tempos de profundas alterações operadas em vários âmbitos, e regiões ou variações tecnológicas ou organizativas, que em determinadas circunstâncias poderão até produzir roturas.
Lidar hoje com o futuro é quase lidar com o “desconhecido”, pelo que, uma análise centrada num cálculo de probabilidades revela-se de menor eficácia se realizada em períodos de gestação mais contínuos e lineares.
A essa luz, o exercício solicitado conduzirá inevitavelmente a quebras de expectativa e até de alguma desilusão.
Se a interpretação do presente já evidencia ambiguidades, contradições, dificuldades de percepção e de encontro de instrumentos para a acção, a visão para o futuro é determinada não só por tudo isso, como também pelas interacções que se vão produzir e cujo sentido e direcção são em muitos casos aleatórios ou de difícil apreensão.
Obviamente que a análise do presente contexto será sempre mais rigorosa e perceptível que qualquer visão prospectiva, apesar das inúmeras questões que no plano metodológico aquela pode colocar.
Ao se procurar entender a natureza das relações entre a União Europeia e o “Mundo Árabe” está-se a partir da hipotética homogeneidade e coerência de cada um destes espaços políticos, o que, por razões diversas, não corresponde à realidade.
No âmbito da União Europeia, as possíveis explicações radicam-se em várias ordens de factores, o primeiro, respeitante às diversas visões de relacionamento com o “Mundo Árabe” que se exprimem no seu seio e potenciadas ao longo do período que teve o seu início com a criação do Estado de Israel e que atingiu maior intensidade nos períodos de elevada litigância ou de expressão de uma quase impossibilidade de estabilizar a relação israelo-palestiniana na base de dois estados.
A segunda, mais perceptível em tempos recentes, reflecte a profunda clivagem legitimada pela questão dos refugiados, não só entre regiões europeias – Leste e Oeste, como também, no interior de alguns estados, mormente a França, Reino Unido Holanda e Alemanha.
As consequências não têm sido traduzidas apenas nos planos da expressão de afetos ou relacionais (islamofobia, xenofobia em geral), mas também em edificações físicas – designadas por muros, erigindo novas fronteiras físicas, quebrando a continuidade dos movimentos dos refugiados, reintroduzindo hostilidades culturais e civilizacionais, para além do desprezo manifestado por quem sofre, e quer sobreviver à dor, à guerra ou à morte.
É então manifesta a debilidade de um dos pilares institutivos da União Europeia – a União Política, legitimadora e enformadora das políticas de Defesa, Segurança e Externa, daí resultando expressões limitadoras ou ambíguas das suas políticas e acções operacionais, o que se reflecte na relação entre os espaços em análise, que evidencia comportamentos assimétricos, diferenciados por áreas ou países, não se consolidando uma perspectiva mais homogénea e amadurecida.
É óbvio que neste âmbito relacional configuram-se diferenças e nuances, potenciadoras de concretizações também variáveis, mas tal não corresponde a uma visão global – a qual está praticamente ausente, o que não é salutar, pois a “variedade” não deveria nunca anular ou subalternizar a natural “unidade”.
Se as principais características percepcionadas no espaço europeu são as anteriormente apontadas, análise homóloga operada para o ”Mundo Árabe” configura-se como ainda mais complexa.
A unidade linguística e o mesmo “livro sagrado” poderiam pressupor uma elevada coerência identitária, geradora de possíveis consensos, sobretudo na política externa e na relação convivencial no seu seio.
A realidade é contudo diversa.
Este espaço tem sido cruzado por uma miríade de tensões, algumas profundas, geradas endogenamente, ou fruto de interacções com o exterior, mormente o designado “Mundo Ocidental”.
As mais antigas e talvez por isso mais traumatizantes, porque permanentes, relevam da divisão entre as obediências sunita e xiita, que perdura há mais de treze séculos e se manifesta nas orientações oficiais dos Estados que perfilham cada uma delas, situação que projecta no político a divergência religiosa, com o rol de disputas, guerras e conflitos que daí advêm.
Para além dessa permanente circunstância, não controlável e porventura insuperável, as diferentes interacções culturais com o espaço exterior ao Islão e o mosaico das várias condições sociais e até culturais ao longo do espaço físico árabe, denotam posturas tão diferenciadas que, em certos casos, legitimam perfis políticos também eles distintos.
Por exemplo, o Magrebe onde se plasmou uma forte influência europeia, sobretudo francesa e italiana, olha para a União Europeia de modo bastante diferente do que a Península Arábica.
A Turquia, em decadência acelerada no século XIX e derrotada na I Guerra Mundial, assumiu através do “Kemalismo” de Ataturk uma acelerada ocidentalização, para, no século XXI, iniciar um regresso a aspectos simbólicos mas relevantes do Islamismo.
A zona da Península Arábica espelha, desde a última década do século passado, uma influência anglo-americana, interpretada por sectores locais minoritários, mas extremamente activos nos planos cultural e político, como um retorno dos “cruzados”, explicando assim e em larga medida o “regresso” a velhas concepções religiosas islâmicas, geradoras de movimentos salafitas e jihadistas, e atores interventores num clima de violência terrorista até recentemente desconhecido, e cujos efeitos não só se manifestam regionalmente, como extravasam as suas fronteiras e se projectam em várias áreas dos continentes europeu e americano.
Algumas operações militares conduzidas na Península abriram uma “caixa de Pandora”, cujas consequências têm sido trágicas e de que não se prevê ainda um fim.
Por tudo isso, elementos de identidade e por conseguinte da unidade no espaço civilizacional árabe coexistem com ondas de diferenciação, não lhe sendo permitida uma abordagem analítica global, antes segmentada, quer ao nível das políticas a prosseguir quer dos subespaços onde as operacionalizar.
É paradoxal que, sendo Doha a capital de um país árabe – Qatar, onde se formalizou o acordo final sobre a liberalização do comércio mundial, não se tenham feito sentir no espaço onde este se insere alguns princípios essenciais que animam e sustentam a globalização, enquadramento básico que integra aquela política.
É certo que o crescimento global das trocas comerciais tem sido notório, mas é manifesta a não tradução na generalidade do “Mundo Árabe” dos restantes princípios, nomeadamente o desenvolvimento e manutenção de um espaço concorrencial aberto e sem restrições significativas; uma acentuada liberdade de circulação de pessoas e capitais; a criação de mercado com elevado grau de transparência, acessibilidade e movimentação; uma redução do papel do Estado como proprietário e gestor de activos de entidades económicas.
Paralelamente, a globalização carece de sentido se não se manifestar uma relativa sincronia entre a abertura do comércio externo, uma desregulamentação e liberalização dos mercados e os naturais desenvolvimentos dos direitos individuais dos cidadãos.
Os desideratos antes mencionados não se encontram suficientemente disponíveis, porque não realizados em muitos Estados Árabes, quer pela inércia de um passado recente herdeiro de modelos socializantes quer pela desconfiança que a lógica do “mercado livre” impõe ou suscita, quer ainda pelo temor de mimetismos relativamente a versões “ocidentalizadas”, circunstância conduzida por sectores minoritários, mas altamente politizados e protagonistas das visões mais ultraconservadoras e retrógradas do islamismo.
Tal questão não é apenas reportável à relação com o designado “Ocidente”, mas também em alguns casos sobretudo inscrito no diálogo interior ao “espaço árabe”, basta interpretar e constatar as dificuldades e o tempo requerido para o estabelecimento do “mercado unificado árabe” ainda em construção e com sensíveis lacunas e limitações.
O “Mundo Árabe” ainda está distante da visão globalizadora que outras áreas do planeta já adoptaram, nomeadamente o Ocidente.
Dir-se-ia que receia tal inserção, que não partilha alguns dos princípios que o enformam, que duvida das construções exclusivamente reportáveis à natureza humana, sem intervenção no Poder Divino.
É óbvio que a constatação desta profunda diferença entre as duas civilizações esconde evoluções e graus de empenhamento diversos por parte dos distintos estados, evidenciando que os factores de aproximação a um modelo de interacção mais adequado e frutífero podem em alguns deles dar lugar a um cenário de maior optimismo.
Discorrer sobre o futuro das relações entre UE e o Mundo Árabe depende, por isso, de muitas variáveis, previsíveis algumas, outras dependentes de circunstâncias que não antecipamos ou dominamos.
Vivemos tempos de enorme turbulência e incerteza, que tornam as análises prospectivas de difícil concepção e elaboração.
Na UE, multiplicam-se os sintomas de substantivas dessintonias, lideranças equívocas, incapacidade de se dotar de políticas de crescimento e coesão, o que não contribui para uma tendencial visão e orientação unificadoras, antes se configurando crescentes clivagens no seu seio entre o Norte e o Sul ou o Leste e o Oeste.
Estes e outros sintomas negativos não parecem poder ser ultrapassados no curto/médio prazo, indiciando uma relativa paralisia na construção de uma União Política na qual deveriam estar espelhados conteúdos de políticas de Defesa, Segurança e Externa.
O Mundo Árabe é, por seu turno, retalhado por conflitos onde o afrontamento é frequentemente tão grave como as omissões exibidas.
O encontro de fortes e suficientes “âncoras” alicerçadas em “interesses e valores comummente partilhados” não é vislumbrável, pelo que é previsível a percepção continuada de um espaço não homogéneo, não podendo por isso aspirar a papel mais relevante e em sintonia com o seu poder demográfico e a importância das matérias-primas e recursos financeiros de que dispõe.
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As vulnerabilidades expostas não deverão fazer abortar as intenções e tentativas de definição e reforço de políticas de relação entre os dois espaços, apenas deslocarão a sua aplicação para subespaços que se destacam no seu seio.
Esta probabilidade parece operacionalmente mais consistente com a realidade com que nos defrontamos, devendo, a essa luz serem diagnosticados os principais eixos de relação a serem firmados entre aqueles.
Contudo, quer a realidade quer a necessidade, têm justificado a adopção de determinadas políticas consideradas e aplicadas globalmente, as quais pela sua natureza têm um profundo efeito estruturante.
Reportamo-nos às políticas do comércio, indústria e energia, por um lado, e securitária, por outro, e traduzem uma visão responsável abrangendo transversalmente todos os espaços considerados.
A primeira, respeita entre outras à cooperação nos domínios dos transportes, energia, industria de refinação de petróleo e seus derivados, química orgânica pesada, dessalinização de águas, engenharia e ambiente, telecomunicações e informática, que têm sido as mais relevantes em termos de implantação na Península Arábica, nelas intervindo vários países europeus, sobretudo Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Espanha e países escandinavos.
A articulação subjacente a essa cooperação envolve a capacidade tecnológica de empresas destes países e as necessidades de desenvolvimento, criação de emprego e disponibilidade de matérias-primas do lado árabe.
Em geral, são projetos capital – intensivos e que legitimam o estabelecimento de relações perduráveis a longo prazo e se estendem da área da manutenção e assistência técnica, à financeira e logística.
A crescente confiança que os sectores económicos e financeiros europeus e norte americanos foram granjeando junto dos poderes político e empresarial do mundo árabe permitiu ainda o desenvolvimento de um conjunto de movimentos de natureza financeira nele originado e aplicado ou sob a forma de Investimento Directo em diversos sectores ou em “Produtos Financeiros” geridos por entidades adequadas a esses fins. A disponibilização de elevados montantes de “petro dólares” permitiu assim a aquisição, por parte de capital árabe, de fracções substanciais de activos, nomeadamente a banca, seguradoras, empresas de energia, companhias de navegação, aérea e marítima, para além de uma imensidade de patrimónios imobiliários onde naturalmente se inscreve o domínio do turismo, e que determinaram um forte impulso, entre outras, às economias inglesa, alemã, francesa, italiana, espanhola e norte americana.
Aqueles movimentos foram iniciados na década de 1960, tendo exibido uma quebra no séc. XXI, por razões que se prendem com as necessidades adicionais de capital para o desenvolvimento endógeno árabe, os tempos de guerra que se sentiram no médio oriente e, por último, a descida global do preço do crude.
O âmbito securitário tem uma amplitude tal, que permitirá desdobramentos vários caracterizadores das diversas formas que assume.
Creio que, tendo em conta a natureza deste colóquio, poderíamos centrá-lo em dois domínios, o primeiro dos quais respeita à segurança global da Península Arábica, operada em termos de presença e utilização de Forças Armadas que apoiem a garantia de inviolabilidade dos espaços nacionais existentes, a dissuasão de ameaças de origem externa, o apoio ao treino, formação e adestramento da suas Forças Armadas.
Obviamente que contribuir para a realização desses objectivos significa a adopção de posturas tendentes a reforçar o status quo e a segurança interna de cada Estado aí presente.
Distinguir, por isso, a segurança externa da interna pode constituir um exercício intelectual mas não a realidade.
A presença de forças aéreas, navais e terrestres, em bases localizadas em territórios dos seus países aí ou nas suas costas, para além da vigilância aérea, incluindo satélites, traduz essa política, exercida sobretudo pelos EUA, e complementarmente pelo Reino Unido ou França.
O segundo domínio de cooperação reside na cooperação estabelecida relativamente ao terrorismo.
Passada que foi a fase correspondente às lógicas ideológica e nacionalista observáveis nas décadas de 70 e 80 do século passado, o epicentro encontra-se hoje no que é designado por “terrorismo islâmico”.
A designação “islâmica” não permite nem articulação entre os traços gerais dessa religião e a fonte inspiradora e mobilizadora de qualquer ato terrorista praticado, nem os seus fiéis e seguidores como apoiantes ou cúmplices daqueles actos.
O islamismo na generalidade das suas concepções não é uma doutrina de terror nem de apelo à prática de violência extrema.
Contudo, é aquele adjectivo utilizado como enquadramento e justificação associado à sua perpetração.
Ao longo da história do Islão desenvolveram-se no seu seio tensões internas que legitimaram dois movimentos decisivos para a compreensão do problema em apreço.
O primeiro teve lugar nos seus primórdios, mais concretamente na sequência da escolha do quarto califa e levou a uma cisão entre duas obediências religiosas (sunita e xiita), cuja agressividade recíproca deu origem à designada FITNA (Grande Discórdia).
Ainda hoje, em várias regiões do Mundo Árabe – Iraque ou Yemen, por exemplo –, o terrorismo é utilizado como resposta a essa questão, não esquecendo a própria acção que alguns Estados levaram a cabo, promovendo atentados da mesma natureza, basta relembrar a campanha que, depois da operação “Tempestade no Deserto” (1991), o regime de Saddam Hussein praticou contra os xiitas no seu próprio país.
A génese e o espaço físico onde se desenvolve este processo são praticamente circunscritos ao Mundo Árabe, traduzindo um problema, que em algumas circunstâncias assume formas de tensão máxima, com alvos de violência visíveis, sobretudo nas suas cidades e habitantes.
Por isso, e numa primeira análise não traduz área de relação com a UE e Estados seus integrantes, a não ser por efeitos de eventual colateralidade que possam emergir.
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Em determinados momentos históricos, o Mundo Árabe foi atravessado por algumas convulsões geradas do exterior, e cujas consequências levaram ao desabrochar de um “revisionismo” islâmico que não se tornando corrente dominante no seu seio, assumiu contudo um papel orientador de alguns sectores minoritários que, em seu nome, levaram a cabo práticas e comportamentos que se espalharam no seu interior.
A invasão no Impéro Abassida pelos mongóis no século XIII fez surgir Ibn Taymyyiah e a versão “salafista” do Islão.
O fim da I Guerra Mundial, a decomposição do Império Otomano, o novo poder colonial britânico e em menor escala o francês, revelaram-nos Hassan Al-Banna e Sayyd Qutb, pais da “Irmandade Muçulmana”, organização que penetraria o Mundo Árabe e o influenciaria sob o ponto de vista doutrinário ao invocar uma visão política do Islão orientado contra as influências do Ocidente.
A invasão do Afeganistão pela URSS, na década de 1980, e do Iraque, nos primórdios do século XXI, tornariam conhecidos Abdullah Azzamm e Al-Maqdisi através do reforço das orientações salafista e da Jihad, pensadas como vocacionadas para objectivos de natureza “takfirista” legitimando e incentivando assim comportamentos inquisitoriais, persecutórios e punitivos máximos no seio do Islão.
A Al-Qaeda e o Daesh são pois pensados e organizados por militantes imbuídos desta visão, aplicável a todos os que, sendo islâmicos, violam preceitos essenciais – de acordo com os critérios do Salafismo, e, bem assim, aos que o não sendo, influenciam, estimulam ou apoiam acções “heréticas” tais como governação corrupta, ocupação do “solo sagrado islâmico” pelos “cruzados” ou perseguição dos “crentes”.
Infelizmente, os “mobiles” legitimadores do terrorismo à escala global e os instrumentos requeridos para a sua concretização são hoje conhecidos pelo número e natureza dos correspondentes atos praticados em tantos lugares e países, pelo que os seus próceres se tornaram tão temidos como procurados ou perseguidos.
Tornou-se então inevitável e imprescindível estreita cooperação entre serviços de Intelligence e de Segurança Interna europeus e norte-americanos com os homólogos dos países árabes.
Desde o início deste século, constata-se que vários dos elementos praticantes do terrorismo não se situam apenas naqueles últimos, antes circulam por e para onde desejam, para além das migrações para a Europa e EUA terem contribuído para alimentar os “ghettos” de todos os que nelas se inscrevendo não se integram nas Comunidades de destino, fazendo com que o seu desenraizamento, frustração ou desencanto os tenha encaminhado para a marginalidade e daí para a exclusão e o ingresso nas hostes dos apoiantes e “braços armados” daquelas organizações.
Hoje, não são apenas Bagdad, Cairo, Nairobi, Aden, mas New York, Londres, Paris ou Madrid os teatros de operações desta nova guerra.
Os poderes políticos dos países potencialmente envolvidos nessa questão sentem-se por isso convocados a partilhar dados, informações, experiências ou outras formas de cooperação, de modo a tornar o mundo mais seguro e fiável.
Não sendo esta uma das áreas onde se espelham grandes volumes financeiros, ou quantidades de bens transaccionados, não deixa contudo de ser altamente relevante e sensível, pois toca num dos valores mais sensíveis de uma comunidade: a sua segurança.
Porventura, não são suficientes e até conhecidos os acordos que legitimam aquela cooperação, todavia, ela opera-se através dos patamares mais significativamente íntimos dos Estados.
Creio estarmos no centro de uma das maiores preocupações comuns a europeus e árabes, e que, no futuro, se traduzirá num reforço permanente das acções e meios que sedimentarão as políticas de cooperação estabelecidas.
Precisar as formas organizativas que as traduzirão não conduzirá naturalmente a quadros globais de cooperação, antes existirá maior tendência para “cooperações reforçadas” entre determinados países, mais especificamente os mais envolvidos nessa problemática.
Considerar a França, o Reino Unido ou a Alemanha de um lado, Marrocos, Argélia, Egipto, Jordânia ou Arábia Saudita do outro, parece-nos sensato e adequado, mas tal não excluirá nunca uma visão integradora de toda a Europa nesse contexto, enquadramento e operacionalização.
De acordo com a visão relativamente discricionária – mas que julgamos consistente, que se explicitará em seguida e tendo em conta os factores anteriormente descritos caracterizadores não só das sub-regiões dos dois espaços trazidos à colacção, mas também das potenciais relações entre algumas delas, entendemos o Mediterrâneo Central e Ocidental e a Península Arábica, como as sub-regiões do mundo árabe a considerar, pois expressam razoável consistência através da identificação adequada e critérios de relacionamento e estabilização internos suficientemente consolidados, permitindo assim considerá-las como entidades dotadas de relativa homogeneidade na produção e recepção de fluxos relacionais.
Integrando a Mauritânia, Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia, é sem dúvida a área do espaço árabe onde a evolução política para regimes de protecção dos Direitos Humanos e de natureza democrática mais se tem feito sentir.
Em alguns deles, a “Primavera Árabe” provocou tensões e roturas sensíveis que, com excepção da Líbia, foram superadas, encontrando-se por isso numa posição de maior afinidade com os países europeus.
Dispõem na generalidade de várias potencialidades perceptíveis designadamente:
• Uma relação entre a religião islâmica e o poder político em que este assume uma relativa predominância sobre aquela;
• Forças Armadas e de Segurança bem organizadas, treinadas e competentes;
• Uma assinalável evolução empresarial no sector privado, nomeadamente nos serviços e alguns domínios industriais;
• Uma economia agrária em modernização e com potencial de exportação;
• Uma Administração Pública com uma constatável organização, sobretudo na educação e saúde.
Tendo, durante os séculos XIX e XX, estado fortemente ligada à Europa do Sul, mormente à França, e em menor escala à Itália e Espanha, o processo de independência dos seus Estados revelou-se muitas vezes tensional, contudo, a relação estabelecida permitiu o crescimento sensível do comércio externo, a criação de movimentos migratórios para aqueles países europeus que fortaleceram a presença de importantes comunidades magrebinas aí sediadas, um intenso relacionamento político formal com a União Europeia, traduzido na celebração de vários acordos e programas nomeadamente os que decorreram da Plataforma de Barcelona, a relação 5 + 5, não devendo olvidar o seu papel de importante fonte de abastecimento de combustíveis líquidos e gasosos.
Tal permite considerar a zona Ocidental e Central do Mediterrâneo como um “espaço geopolítico” de relevância, mas ainda não um “espaço geoestratégico”, sendo então legítimo constatar que a proliferação dos contactos e o estabelecimento de interesses comuns e múltiplos, já produziram abordagens tendencionalmente mais uniformes e concatenadas em alguns domínios específicos.
É de uma evidência meridiana que no seio da UE e Mundo Árabe serão o sul da Europa e o Magrebe, – Mediterrâneo Central e Ocidental – as áreas que não só interagirão com maior profundidade, com também onde os efeitos produzidos se poderão vir a considerar como mutuamente benéficos para a estabilidade e o progresso conjunto.
Aliás, as relativas clivagens que se observam na UE apoiam esta perspectiva.
A influência inglesa na Turquia e Egipto, durante o séc. XIX, acrescida das consequências do acordo Sykes/Picot permitiu pensar que ela seria duradoura e estabilizadora.
Contudo, o reconhecimento do Estado de Israel pela ONU, nos finais da década de 1940 e o modo de relacionamento entre este e o espaço palestiniano que lhe era contíguo, para além das relações que estabeleceu com a comunidade dos países árabes, induziram tensões de tal modo profundas que rapidamente se projectaram para além desse espaço nomeadamente no seio das comunidades islâmicas existentes em qualquer parte do Mundo.
A identificação dos EUA como aliado priveligiado de Israel, associada à imagem do acordo celebrado em finais da II Guerra Mundial entre o Presidente dos EUA e o rei Saudita, a bordo de um vaso de guerra fundeado em pleno Mediterrâneo, colocou aquele país no epicentro das questões mais relevantes do futuro da Península Arábica e do próprio Médio Oriente.
As intervenções militares que empreendeu ou dirigiu – 1991, no Koweit, após a invasão iraquiana, e 2003, derrubando o regime baathista do Iraque –, consagram o papel liderante norte-americano, com os proveitos e prejuízos que daí advieram.
Os interesses estratégicos que foi consolidando no âmbito da protecção securitária regional, na tutela de liberdade de circulação marítima no Golfo, na prestação de serviços financeiros por parte de Wall Street às monarquias locais, e na colaboração no âmbito do Intelligence, são de tal modo relevantes, que nenhuma outra potência se poderá considerar em pé de igualdade com o poder norte-americano na região.
Tal não significa que a Rússia não continue a deter assinaláveis graus de influência no Irão e na Síria de Bashar Al Asaad, que a China não procure, pela economia, financiamentos e aquisição de hidrocarbonetos, ampliar a sua ainda limitada influência local e, sobretudo a UE – sem clara e inequívoca política para a região, apesar da importância que para ela têm os seus mercados nunca alcançou nos últimos anos o nível de influência que os EUA manifestam.
Na medida em que a vertente securitária assume papel primordial na hierarquia dos interesses e preocupações dos Estados da Região, o “Poder Externo” quer prestar maiores garantias e fornecer os correspondentes e adequados sistemas de apoio e resposta a qualquer ameaça que se manifeste, assumirá natural e obviamente a supremacia sobre todos os outros, funcionando como o “garante regional”.
Há muito que os EUA asseguram não só a protecção do “Mundo Sunita” na Península Arábica, como procuram conter qualquer pretensão expansionista do “Mundo Xiita”, exercendo um magistério de promoção de equilíbrios que formalmente correspondem sobretudo aos interesses sauditas, e que abarcam a liberdade de circulação do Golfo Pérsico (Arábico) e Mar Vermelho, a protecção das fronteiras e áreas sensíveis dos Estados do Golfo, o apoio ao Intelligence e à sua segurança interna, procurando assim interditar a consecução de medidas subversivas contra elas, o treino a formação de forças militares, enfim, uma panóplia de acções centradas nos domínios securitários, militar, económico e financeiro.
Obviamente que os Estados da Península estão abertos a uma multiplicidade de cooperações e entendimentos com muitos Estados e Povos, onde o Reino Unido, França e Alemanha desempenham um papel muito sensível.
Nos domínios do armamento, equipamentos para a produção de energia, telecomunicações, agroindústria, material de transporte, serviços financeiros ou de saúde, a presença europeia é assinalável, mas é eminentemente pontuada pelos seus estados individualmente considerados.
É, pois, natural, que dada a natureza do projecto europeu – ainda em construção, e os sintomas que o acompanham –, os países europeus rivalizem entre si nos mercados da Península.
As áreas mais importantes da interacção entre estes e aqueles, terão como “pano de fundo” um clima extremamente concorrencial, que exibirá as várias capacidades competitivas em presença, mas que até agora tem assegurado “quotas” bastante elevadas aos bens e serviços europeus.
A qualidade, o cumprimento dos prazos de entrega e a capacidade comercial, tecnológica e financeira dos seus atores têm-no justificado, devendo tal tendência continuar a médio/longo prazo.
Não é, contudo, expectável análogo desempenho na área “securitária/militar” onde a subalternidade europeia será manifesta face ao hegemonismo dos EUA.
As tensões no seio do espaço arabo/islâmico – obviamente mais amplo que o árabe, onde se manifestam obediências religiosas maioritariamente as sunita e xiita, permitiram e consagraram disputas pela hegemonia regional entre a Arábia Saudita e a República Islâmica do Irão.
Desde há cerca de doze séculos não é possível ignorar esta questão, reacendida com um vigor inusitado desde 1979 – chegada de Khomeny ao poder, o que legitimou um reposicionamento dos EUA na região, e, a tal ponto, que, no início do século XXI, passou a considerar o Irão como integrante do “Eixo do Mal”, acelerando em contrapartida a cooperação militar com o Reino Saudita.
Paradoxalmente, a recente celebração do acordo relativo ao “Programa Nuclear Iraniano” está progressivamente a posicionar aquela potência num patamar que a aproxima da “normalização”, permitindo-se assim a médio/longo prazo uma distensão da sua relação com os EUA e a UE.
Esse momento parece ainda distante, devendo recordar-se as críticas que o maior aliado dos norte-americanos na região – Israel, bem como a Arábia Saudita, expressara relativamente ao acordo referido, que, apesar de insuficiente para o travar, mostra as profundas clivagens em presença e as desconfianças expressas de modos diversos sobre o seu conteúdo e consequências.
O “Programa Nuclear Iraniano” constitui a “pedra de toque” que tanto poderá reforçar o actual status quo como colocar as duas potências regionais num plano de quase paridade relacional com os EUA.
A manutenção do regime de Bashar Al Assad, na Síria, após a previsível derrota do Daesh constituirá um indício.
A evolução política do Líbano, mormente a percepção do “poder militar” do “Partido de Deus” confirmará ou não a tendência.
Uma sucessão pacífica e estabilizadora do actual “Protetor das duas Mesquitas Sagradas” acrescentará algo.
Um eventual início de negociação – obviamente ultradiscreta –, entre Israel e o Irão representará outro sinal.
O modo como as comunidades xiitas residentes no Bahrein e Arábia Saudita aí forem tratadas e a sua integração processada, indicar-nos-á um clima de distensão ou de revivalismo das clivagens tradicionais.
A forma como os futuros governos centrais iraquianos, maioritariamente xiitas, promoverem a integração das comunidades sunitas constituirá o aspecto mais relevante e decisivo na avaliação do desencadear ou refrear das tensões na Península.
São por isso muitas e variadas as razões que poderão determinar uma eventual variação das relações de poder na região e consequentes alterações no perfil relacional dos EUA com essas duas potências.
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Ao se procurar evidenciar o papel preponderante dos EUA na região sem ele se constituir como exclusivo, é normal que a UE tenda a acompanhar as suas orientações, já que a assumpção de alternativas dissonantes não só constituiria um ato hostil como não lhe traria qualquer vantagem.
E se assim fosse, sê-lo-ia temporariamente, o que não asseguraria perdurabilidade e consistência, características decisivas a expressar na região e em matérias dessa natureza.
Nos próximos anos, não creio que a UE se perfile com autonomia excessiva face aos EUA, desempenhando por isso papéis complementares na área securitária ou relevantes e essenciais, caso a política norte-americana não se pretenda exercer em determinadas áreas com propósitos liderantes.
Aliás, tem sido evidente que uma potência só afirma uma política externa afirmativa e credível, se os meios militares e securitários se adequem às pretensões expressas.
Caso aqueles não existam ou sejam disponibilizados, a capacidade de desempenho em momentos cruciais e específicos não será exequível.
Em termos de “real politique” existe um entendimento que só existe poder de afirmação externo em momentos particulares e relevantes, se se manifestar uma sincronia entre os objectivos que se pretende atingir, e um “Poder Militar” que pode ser chamado a intervir.
Há muito que a UE abdicou de uma componente militar adequada correspondente aos seus interesses e desejos na cena internacional, e a futura saída do Reino Unido deixa a França como quase único membro que dispõe de meios nessa área de soberania, com a particularidade de ela ser obrigada a dispersá-los por várias partes do Mundo, mormente África.
Sem poder militar adequado a influência europeia na Península Arábica será sempre subalterna à dos EUA.
Do exposto resultam possíveis conclusões sustentáveis à luz dos pressupostos referidos.
Assim, e tendo em conta a segmentação dos espaços respeitantes à UE e Mundo Árabe considerados, é provável que a relação entre eles se continue a estabelecer preferencialmente através daqueles, em detrimento de uma relação global.
Tal, também decorre de insuficiente coesão interna que o Mundo Árabe que reflecte e fruto:
– Das tensões politico religiosas já descritas e que não parecem poder ser mitigadas;
– Da falta de substantividade que a cooperação securitária interna exibe;
– Da escassez de trocas comerciais e investimento realizados no interior desse espaço. Com efeito:
• É-lhe exterior a aquisição de equipamento de capital – intensivos;
• É-lhe exterior grande parte dos bens alimentares requeridos;
• A principal exportação comum a esse espaço é de hidrocarbonetos;
• A solidariedade política reflecte as divergências de orientação religiosa;
• As movimentações financeiras são mais relevantes para o exterior desse espaço que no seu interior.
Este acervo de razões não permite encarar com optimismo um reforço político, militar, diplomático económico ou financeiro do Mundo Árabe, sendo por isso natural que a análise privilegie os seus sub-espaços.
A essa luz, as relações na área do Mediterrâneo Ocidental e Central, nele se considerando o Sul e Sudeste da UE e o Magrebe, oferecem perspectivas relevantes, obviamente condicionadas pelo grau de estabilidade que neste último for possível obter.
Poder-se-ão então constatar:
– Um progressivo incremento das relações comerciais de bens e serviços traduzindo um aumento do potencial agrícola e industrial do Norte de África;
– Acréscimo dos serviços de turismo, naturalmente bastante relacionado com a progressiva extinção de acções terroristas;
– Acrescida cooperação nas áreas securitária, incluindo a militar e Intelligence, de modo a se criarem redes de relação fundadas na confiança institucional que beneficie os povos das duas margens do Mediterrâneo;
– Na exacta medida em que aquele último domínio progrida favoravelmente, é natural e desejável um reforço das relações políticas e outras delas decorrentes, que poderão levar à celebração de acordos específicos que se julguem requeridos para o reforço da paz, estabilidade e progressos económico e social.
No tocante à Península Arábica e reconhecendo-se que a questão mais sensível e determinante reside na vertente securitária, é expectável uma supremacia norte-americana na sua concretização, o que, não afastando a UE, coloca-a num papel subalterno nessa matéria.
O mesmo não se poderá dizer da cooperação económica e financeira onde o intercâmbio de bens e serviços tem expressado dimensão consideráveis e consistentes.
O factor mais relevante na evolução política desta zona dependerá da “correlação de forças” entre o Irão e a Arábia Saudita, de modo a se constatar qual deles se assumirá como líder regional.
Pressente-se uma acomodação dos EUA à actual liderança saudita, mas não é facilmente previsível a correspondente reacção caso tal situação se altere e/ou Teerão aceda a um patamar de poder que lhe tem sido desconhecido, ou se observar um equilíbrio entre eles.
É por isso aparentemente mais fácil prever a evolução no espaço Mediterrânico do que na Península Arábica.
Doutorado em Estudos Estratégicos pelo ISCSP (Universidade de Lisboa).