A Guerra nos Balcãs.
Jihadismo, Geopolítica e Desinformação
Vivências de um Oficial do Exército Português ao Serviço da ONU
Carlos Branco[1]
O livro com o título supra representa a concretização de uma ideia com mais de 20 anos. É, de certa forma, feito em memória das nações que constituíram a antiga Jugoslávia, vítimas da intolerância das suas elites e do cálculo geoestratégico das grandes potências. É, também, dedicado aos Observadores Militares das Nações Unidas, que deram o seu melhor sem restrições à causa da paz, e que, perante a adversidade e as privações, souberam resistir e cumprir a missão. Mas é também dedicado a todos os Observadores Militares Portugueses ao serviço das Nações Unidas, que, apesar de esquecidos e pouco considerados pelas instâncias nacionais, souberam levantar bem alto a bandeira nacional; que souberam dignificar o seu país colocando muitas vezes a vida em perigo, e que deram o melhor de si.
Muitos dos nossos concidadãos não sabem ou não se recordam que havia portugueses nos Balcãs antes da paz de Dayton. Espero que este livro possa humildemente contribuir para colmatar esse esquecimento ou desconhecimento. A visibilidade dada à participação das forças nacionais na Bósnia, no período pós-Dayton, obscureceu e votou por completo ao esquecimento aqueles que estiveram na guerra (antes de Dayton), os quais viveram, nalguns casos, situações dramáticas.
Este livro é um testemunho pessoal, tanto de acontecimentos vividos em primeira mão, como de ocorrências em que o autor esteve indiretamente envolvido. É uma compilação de estórias vividas e por que passou, organizadas cronologicamente (tanto quanto possível). Nenhum dos factos relatados é ficção. É um livro onde não há heróis, nem histórias de amor. Não é um exercício académico sobre o conflito jugoslavo. São apenas algumas estórias da história. Contudo, cheias de cheiros e cores intensas. O autor pretendeu apenas proporcionar ao leitor ângulos de análise alternativos aos ditos oficiais.
O título foi escolhido com uma precisão milimétrica. Jihadismo, Geopolítica e Desinformação. Enquanto o tema do Jihadismo é apresentado apenas num capítulo, os outros dois – Geopolítica e Desinformação – vão sendo apresentados ao longo do texto, refletidos nos diferentes casos apresentados.
Abordaremos nesta síntese três tópicos: o jihadismo, os Direitos Humanos na Krajina e a queda de Srebrenica.
O conflito na Bósnia é talvez um dos conflitos dos tempos modernos sobre o qual mais se escreveu e que foi pior explicado. O projeto político de Alijas Izetbegović era autoritário. Conforme é patente no seu manifesto político “Islamjia Declaracjia”, Izetbegović via a coexistência multiétnica, a democracia parlamentar e o pluralismo político com muita suspeição. Situava-se ideologicamente bem longe da explicação que era servida no Ocidente: secular e democrático. O seu pensamento religioso e filosófico situava-se, sem qualquer margem para dúvidas, no campo do islamismo.
Preocupava-me o facto de muitos no ocidente apresentarem o seu projeto político e religioso como moderado, quando era mais do que evidente que não era o caso. A ideologia da Jihad estava no centro do seu pensamento. Isto explica o convite que fez, logo no início da guerra, aos “guerreiros de Deus” para passaram a integrar o Exército muçulmano.
Ao contrário do que muitos possam pensar, a jihad global não teve origem no Afeganistão, mas sim na Bósnia. Poucos analistas ocidentais consideraram a Bósnia uma frente da jihad global promovida pela Al-Qaeda. O envolvimento dos mujahideen na guerra da Bósnia não foi um movimento espontâneo. Pelo contrário, foi um plano gizado e executado pelos dirigentes da Al-Qaeda que queriam manter a jihad viva, e transportar a sua luta para o Ocidente.
A guerra na Bósnia vinha mesmo a calhar. Era a altura ideal para alargar a sua atuação a outras áreas geográficas. Dava-lhes a narrativa que buscavam ao apresentá-la como uma guerra entre o Ocidente e o Islão, como um conflito civilizacional com fundamento religioso. A propaganda de Sarajevo visava não só atingir todo o mundo muçulmano, e obter o seu apoio, como também ampliar os preconceitos relativamente ao Ocidente.
Se a intervenção no Afeganistão criou os mujahideen, a guerra na Bósnia contribuiu para a sua globalização. O seu impacto no mundo Islâmico foi tremendo, tendo sido agravado pela cobertura mediática ocidental, um facto frequentemente desprezado. Não consegui deixar de ficar perplexo perante a recusa dos políticos, académicos e jornalistas ocidentais em considerar a abundante evidência sobre o envolvimento de jihadistas ao lado dos muçulmanos e da ideologia prevalecente no seio do partido de Izetbegović.
É absolutamente indesculpável a complacência, ou se quisermos a distração, tida com o facto de a Bósnia se ter tornado durante a guerra numa frente da jihad global promovida pela Al-Qaeda. Mais grave ainda é alguns considerarem essa assistência benigna por apoiar a fação alegadamente mais fraca.
A ausência informativa aplicou-se igualmente na Krajina, após a operação militar, conhecida por Operação Storm, que permitiu a Zagreb retomar o controlo daquelas regiões. O autor chama à atenção do leitor para o facto da Krajina se ter tornado, em matéria de Direitos Humanos, um buraco negro. O registo das violações dos Direitos Humanos passou a ser uma das tarefas prioritárias dos observadores militares.
O comportamento das autoridades croatas nesta matéria foi de um cinismo atroz. A segurança e a sobrevivência da população sérvia das Krajinas, da pouca que restou, não foi certamente uma das suas prioridades. As pilhagens, as ameaças e a política do terror mantiveram-se por meses, apesar do Exército croata exercer um controlo total e completo sobre a região, numa altura em que já não havia ameaça militar.
Os esforços para parar com as violações dos Direitos Humanos nas Krajinas foram ineficazes. Faltou o empenho e a determinação dos líderes políticos mundiais. As organizações internacionais no terreno, nomeadamente a ONU, foram impotentes para obrigar as autoridades locais a parar o genocídio. Por não existir um plano superior, os Observadores Militares atuaram por sua própria iniciativa. Fizeram o que era possível fazer.
A dramática situação em que se vivia na Krajina era sobejamente conhecida de todos. Os funcionários do Tribunal Criminal Internacional para a antiga Jugoslávia e os oficiais políticos da ONU tiveram acesso aos relatórios que descreviam pormenorizadamente alguns dos casos mencionados. É indesculpável o comportamento de quem tinha a responsabilidade e a capacidade para mandar parar a mortandade e não o fez.
No chamado setor sul, onde em 1991 habitavam cerca de 142 mil almas, em finais de outubro de 1995, as equipas de Observadores Militares após visitarem 414 aldeias, registaram 1.734 pessoas. Dá para perceber a dimensão do problema.
A informação coligida e publicada nos mais de 20 anos que nos separam dos acontecimentos ocorridos na Krajina, em 1995, demonstraram a existência de um apoio tácito às ações do Estado croata por parte de alguns atores externos extremamente influentes.
Não só podiam ter impedido o ataque – as autoridades sérvias da Krajina tinham cedido a todas as exigências que lhe eram feitas; tinham capitulado – como permitiram a tragédia que se seguiu, a qual era mais do que expectável. Preferiu-se fingir que não se sabia. Continuo a interrogar-me onde estava a Comunicação Social internacional tão lesta noutras ocasiões?
Outro episódio dramático prende-se com a queda de Srebrenica. Passados mais de 20 anos, os eventos de julho de 1995, em Srebrenica, ainda conseguem arrebatar paixões e inflamar ódios insanáveis.
Srebrenica era apresentada – e continua a ser – como um massacre premeditado de inocentes civis muçulmanos. Um genocídio! Mas terá sido mesmo assim?! Esta é a pergunta que se levanta no livro e sobre a qual o autor elabora. Defende que uma reflexão mais cuidadosa e informada sobre os acontecimentos faz questionar essa tese.
A primeira questão que não foi ainda respondida é porque é os muçulmanos não combateram, não montaram uma defesa quando tinham a vantagem numérica e o conhecimento do terreno que, por sinal, era favorável à defesa? Se a vantagem militar se encontrava do lado dos defensores, porque é que o Exército muçulmano não ofereceu uma resistência organizada às forças sérvias? Porque é que as forças muçulmanas do enclave não mexeram um dedo para se apoderarem do seu armamento pesado, que se encontrava sob controlo das forças das Nações Unidas?
Registe-se o facto, de logo no dia 6 de julho pela manhã, quando se iniciou o ataque sérvio, o comandante do batalhão holandês teve a iniciativa de informar a liderança militar muçulmana de que se o Exército sérvio bósnio cruzasse a “fronteira” do enclave, a ONU não colocaria quaisquer obstáculos ao levantamento das armas pesadas que se encontravam no local de recolha.
Porque é que o comandante das unidades muçulmanas em Srebrenica se escapuliu do enclave para nunca mais voltar? Porque é que os dignatários locais do partido no poder em Sarajevo não só se recusaram a ajudar a ONU na evacuação de Srebrenica, como também os impediram de fugir para Potočari?
Porque é que o 2.º Corpo muçulmano, a unidade responsável pela região nordeste da Bósnia, não lançou um ataque ao longo da linha de confrontação, não só para libertar a pressão sobre Srebrenica mas também para aproveitar a vulnerabilidade temporária das forças sérvias noutros locais e obter ganhos territoriais em zonas agora desprotegidas? E assim, libertar a pressão das forças sérvias sobre o enclave?
Passados 20 anos, continuamos sem respostas a estas perguntas.
Se tivesse existido uma ideia premeditada de genocídio: os sérvios teriam cercado o enclave para não deixar escapar ninguém, em vez de atacarem apenas em duas direções, deixando corredores de fuga a norte e a oeste; e não teriam planeado o transporte de 17 mil mulheres, crianças e idosos, cerca de metade dos deslocados que chegaram ao território da Federação.
A comunicação social ocidental nunca sentiu a curiosidade em indagar muitas destas flagrantes incoerências. Era mais fácil, ou antes, mais conveniente repetir a tese do genocídio. A execução de um número muito avantajado de homens muçulmanos em “idade militar” pelos sérvios bósnios, a maioria deles soldados, constituiu um inquestionável crime de guerra. Mas não foi um ato de genocídio!
Houve execuções sumárias, como sugerem as exumações. São crimes de guerra hediondos, que devem ser punidos. Mas estes atos criminosos não podem nem devem ser confundidos com genocídio; assim como os acontecimentos de Srebrenica não podem nem devem ser confundidos com os que viriam a ter lugar um mês mais tarde na Krajina, onde o Exército croata levou a cabo uma operação de assassínio sistemático da população sérvia que não fugiu ou que não conseguiu fugir, não poupando ninguém: homens, mulheres, crianças, idosos.
Os acontecimentos na Krajina nunca foram considerados genocídio pelo Tribunal. Sobre estes incidentes, os media ocidentais mantiveram um prudente distanciamento; um silêncio cúmplice e ensurdecedor.
Curiosamente, ao longo destes 20 anos que nos separam daquela trágica semana, foram-se fazendo ouvir várias vozes oriundas do campo muçulmano criticando acerrimamente o comportamento do presidente bósnio e a sua política para o enclave que, no fundamental, corroboram os pontos de vistas apresentados no livro, as quais não tiveram eco na comunicação ocidental, outrora tão rápida em associar-se à tese do genocídio.
Em matéria de geopolítica, o conflito jugoslavo representou a génese de uma nova Ordem Internacional que conduziu ao mundo unipolar e à ascensão da potência global; foi um caldeirão onde podemos encontrar muitas das dinâmicas presentes nos conflitos dos dias de hoje, naturalmente com outras matizes, como, por exemplo, o papel desempenhado pelas grandes potências na ordem política internacional, a justiça criminal internacional, o modo como os acontecimentos são comunicados às opiniões públicas e o jihadismo.
Um exame desapaixonado do conflito na antiga Jugoslávia tem necessariamente de ter em consideração o papel desempenhado pelos atores externos, nomeadamente o grupo de países que do ponto de vista geoestratégico mais beneficiou com a sua implosão. Foram esses Estados que promoveram e estimularam a sua dissolução e que insidiosamente patrocinaram a sedição contra o poder federal jugoslavo, sem o mínimo remorso pelo sofrimento humano que a defesa intransigente dos seus interesses estratégicos iria provocar.
O livro chama ainda à atenção para um fenómeno a que se assistiu durante o conflito na antiga Jugoslávia e que se tem vindo a agravar de uma forma dramática nas democracias ocidentais: a criação de narrativas que se tornaram formas de controlo social, passadas através de todos os meios que possam transmitir informação. Estas práticas deixaram de ser monopólio dos regimes ditatoriais; de um modo mais subtil e elaborado, tornaram-se comuns nas democracias liberais corroendo a liberdade de expressão e de pensamento. O pensamento fora do mainstream arrisca a marginalização, o rótulo de radical e, em última análise, a ostracização. Com estas narrativas procura-se vender às opiniões públicas o modo como elas devem ver os acontecimentos e simultaneamente condicionar as suas opiniões. Trata-se de moldar atitudes e comportamentos recorrendo a um conjunto articulado de mensagens e temas subordinadas a agendas pré-definidas. Falamos de propaganda disfarçada de notícias. Foi exatamente isso que se ensaiou no conflito da antiga Jugoslávia e que tem sido posto em prática de uma forma sistemática. Como dizia Orwell, em “1984”, “poder consiste em rasgar a mente humana em pedaços e voltar a juntá-los mas com novas formas por si escolhidas”.
Major-general Carlos Manuel Martins Branco
Sócio efetivo da Revista Militar
Nota da Direção
A Direção da Revista Militar felicita o autor e a editora, e agradece o exemplar da obra oferecido para o seu acervo.
[1] Apresentação da obra pelo autor, em sessão de 24 de novembro de 2016, na Comissão Portuguesa de História Militar. O autor é Sócio efetivo da Revista Militar e foi o moderador do 4º Painel – “Rússia”, nos VIII Encontros da Revista Militar 2016.
Major-general do Exército Português, na situação de reserva.
Presentemente, é investigador do Instituto Português de Relações Internacionais.