Nº 2581/2582 - Fevereiro/Março 2017
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Globalização e globalismo
Tenente-general PilAv
António de Jesus Bispo

A presente reflexão incide sobre uma temática actual, em torno da qual parecem existir pontos de vista contraditórios, diremos que irreconciliáveis, que correspondem a visões do Mundo completamente diferentes, e que a maioria dos autores classifica como idealistas, construtivistas ou realistas. Cada uma destas visões está reflectida em correntes de pensamento ou comunidades, com implicações não só no ambiente académico, mas também no político. Não é nossa intenção fazer uma apresentação exaustiva desta discussão, por razões óbvias; apenas nos iremos limitar a respigar alguns pontos que possam eventualmente contribuir para um melhor esclarecimento do debate em curso. A nossa posição é, no entanto, crítica, intencionalmente construtiva, isto é, não iremos negar a evidência da globalização, mas também não a iremos glorificar. Avançamos, desde já, que o ponto fundamental da discussão roda em torno do papel do Estado num contexto global.

Considerámos necessário colocar esta advertência, na medida em que o texto não segue os cânones académicos para a apresentação de teses, reforçando assim o pensamento descondicionado que lhe está subjacente, muito embora ele resulte de dedução feita a partir de várias leituras e de opinião do autor. Além disso, é especulativo, na medida em que não recorre explicitamente a dados empíricos para basear indutivamente afirmações, embora se tenham em mente situações concretas.

 

Os factores da globalização

A globalização é um processo, ou um conjunto de processos, que resulta do desenvolvimento tecnológico, essencialmente na área dos sistemas de informação, ou das comunicações, e na área dos transportes. Também a podemos considerar como uma ideia, ou uma situação peculiar, que nasce da consequência deste processo. Estes dois grandes avanços dos últimos anos (as comunicações e os transportes), permitem a proximidade entre os actores do sistema internacional, as instituições, os agentes e os cidadãos, e encurtam as distâncias, a nível mundial. Estas capacidades tecnológicas assumem actualmente dimensões nunca antes atingidas, proporcionando, naturalmente, uma interacção mais intensa, tanto em termos de eventos e de participantes como de frequência, ou seja, a informação pode chegar a uma grande parte do Globo, em tempo real, e as pessoas e as coisas em tempo extraordinariamente mais reduzido do que no passado. A velocidade é uma obsessão do tempo actual, e este facto tem reflexos na vida, a todos os níveis. É fácil fazer um exercício sobre o que ocorria, num passado distante em que, embora se chegasse fisicamente a pontos distantes, a informação que se emitia no centro chegava às periferias imperiais com meses de atraso em relação à tomada de decisão ou ocorrência do evento, e sobre o que se passa hoje em dia, em que a informação chega no instante seguinte ao seu destino, e em menos de vinte e quatro horas se viaja para a parte mais distante do Globo a custos razoáveis. Tudo isto tem consequências, a que se chama, de forma sincrética, globalização. Só os cépticos da globalização discordam destes factos, afirmando que a interdependência global sempre existiu a partir da era gâmica; contudo, a intensidade do passado (número de acontecimentos e velocidade de propagação ou de transporte) não tem qualquer termo de comparação com o que se passa hoje em dia.

Como se disse, a globalização, no seu sentido genérico, é o resultado da evoluão verificada nas tecnologias dos transportes e das telecomunicações, que fez com que as pessoas circulassem mais facilmente e as mensagens fossem transmitidas de forma quase instantânea entre todos os pontos do Mundo. Para além das pessoas, circulam também bens e capitais, assim como informação, e esta circulação pode traduzir-se em vantagem para as pessoas e organizações, ou pode trazer perigos ou atentados das mais diversas naturezas. Este estádio de desenvolvimento tecnológico que permitiu a conectividade a nível mundial teve consequências evidentes na economia, na política e na cultura. Face a esta situação, de facto, tem surgido um debate, essencialmente a nível académico, sobre a questão da oportunidade de consideração de uma nova Ordem Mundial, considerando alguns que estaremos perante um fenómeno que condiciona toda a Humanidade, de comando mais ou menos abstracto, e que relegou para a irrelevância toda a construção e prática da geopolítica; há quem pense que a globalização é, por si, uma Ordem global, diferente da ordem tradicional por não existir um líder global nem comandos ditados de cima para baixo. Esta posição parece querer esconder o problema do poder, e a hierarquia das potências. Seria apenas a interacção dos inúmeros agentes, e as redes de várias naturezas de que são beneficiários, que constituiriam constrangimentos comportamentais, funcionando como reguladores automáticos; esta Ordem não consistiria de um comando hierárquico, mas de vários comandos horizontais que conteriam o caos. Esta é, sem dúvida, uma posição utópica ou radical, o que não quer dizer que não contenha algo que mereça a pena debater; a posição totalmente oposta, a de negação absoluta do processo, também não parece fazer muito sentido. O Mundo está em processo de mudança, como sempre esteve, só que, do anterior, a velocidade era muito mais lenta; e, assim sendo, parece ser interessante tentar compreender a mudança.

Este processo pode produzir resultados em vários âmbitos, sendo o económico o mais imediato, tanto em termos financeiros como de produção, ou de comércio. Mas os efeitos podem manifestar-se nos planos político, ideológico, social e cultural. Há uma maior facilidade na circulação de capitais, em especial no que concerne à velocidade e montante das transacções, na circulação de pessoas, de ideias e de bens materiais. E é neste plano, o dos efeitos, que as apreciações se dividem, frontalmente.

O globalismo é a ideologia da globalização, a crença de que existe (ou tende a existir) uma entidade global, acima da realidade social e política do presente, criada pelas interacções globais, e que condiciona ou determina a vida das sociedades políticas e, em última análise, dos cidadãos. Esta entidade não tem uma expressão real, e a influência que exerce sobre as pessoas e as instituições não tem uma origem precisa e identificável. Trata-se, pelo contrário, da ampliação da sociedade civil para uma sociedade global, “funcionando” aqui uma metafísica semelhante à que explica os costumes e o direito natural nas sociedades civis. Nesta perspectiva, as sociedades políticas actuais deixariam de existir, pelo menos na sua configuração do presente, ou transformar-se-iam radicalmente, no fim do processo, em benefício de uma sociedade global. Voltaremos a este assunto adiante, numa posição essencialmente discordante.

Como vimos, um dos efeitos da globalização, porventura mais visível, manifesta-se na área económica, em particular no que se refere ao paradigma industrial. De facto, é hoje possível individualizar a produção de componentes e subcomponentes e proceder à sua montagem ou integração, em locais geográficos muito distantes uns dos outros. Esta possibilidade resulta, desde logo, da tecnologia de apoio ao desenho e da uniformização de processos de produção e de controlo de qualidade. Para além desta nova capacidade industrial, um outro factor torna possível e vantajosa a deslocalização: o transporte. Com a invenção do contentor e de tudo com ele associado, permitindo cargas e descargas muito rápidas, carregamento na fábrica e descarregamento no destino (os componentes e subcomponentes são colocados dentro dos contentores imediatamente após a sua fabricação, total ou parcial, e retirados do contentor no destino ou local de montagem – a fabricação prevê dispositivos específicos para o “empacotamento”, isto é, a forma de transporte já é contemplada no desenho), a deslocalização passou a ser relativamente fácil, rentável e expedita, do ponto de vista técnico, até porque o custo do transporte marítimo, adaptado ao contentor, é extraordinariamente barato e os interfaces com outros meios de transporte têm vindo a ser melhorados, de forma significativa, permitindo um grande encurtamento no tempo do transporte. O chamado “transhipment” é um dado fundamental de planeamento para as empresas que operam a nível global, e os portos e plataformas logísticas em terra são hoje objecto de forte competição internacional, constituindo-se como factor estratégico da maior importância. Este processo simples, que aparentemente não mereceria uma referência num texto teórico genérico, como é o presente, foi determinante para o estabelecimento dum paradigma industrial que tem vindo a revolucionar a economia. Neste aspecto, a questão parece ser pacífica. Contudo, do ponto de vista económico, em sentido amplo, ou político ou social, parece que já não será assim. De facto, a deslocalização, que é determinada pelos custos da mão de obra, pela carga fiscal, e pela aceitação local de efeitos negativos, como é o caso do impacte ambiental, terá um carácter precário quando estas condições se alterarem e quando o paradigma industrial vier a ser alterado por razões de natureza tecnológica. Por exemplo, quando existirem problemas de emprego no país do fabricante ou do dono do fabrico, ou quando existir mais sensibilidade ambiental no país da construção, ou mão de obra mais cara, entre outras razões do mesmo género, para além da fiscalidade, é muito provável que, neste aspecto particular, surjam pressões para a travagem da deslocalização.

Não há dúvida que, no presente, a globalização reduz os preços no consumo nas economias mais poderosas e provoca um desenvolvimento nas economias dos periféricos. Tal facto corresponde a um aumento da procura global e a uma alteração no padrão do emprego das economias mais desenvolvidas, com novas especializações, assim como um crescimento da produtividade.

Está anunciada uma nova revolução tecnológica, em várias áreas. Tal revolução permitirá, entre outras modificações, a possibilidade de concentração da produção, a redução drástica da mão de obra industrial, o desenvolvimento de muitos automatismos em muitas áreas, a exploração de novas formas de energia; é fácil imaginar as consequências desta revolução. De uma forma simplista, e futurista, a questão a colocar será sobre a forma de exportação dos novos instrumentos avançados de produção, se mais liberal ou mais restritiva, e sobre quais os países que terão capacidade tecnológica para os absorver e explorar convenientemente. E, se assim for, este aspecto da globalização assume um carácter conjuntural e o ciclo acima referido poderá ser quebrado, com consequências difíceis de prever.

É evidente que a globalização não se resume à produção industrial. Ainda na área económica, o comércio é encarado segundo a perspectiva global, porque existem determinados factores que o facilitam, como é o caso do “marketing” agressivo, da “imposição” cultural, facilitadas pelos sistemas de informação, ou da modernização do transporte, como já foi referido. Desde sempre, a função de comércio, estimulada pelo valor consumista, permite a abertura a novos mercados e produtos, ou é fruto da existência destes mercados; veja-se o caso da importância que os europeus abastados atribuíram às especiarias do Oriente, a partir do século XVI, fazendo com que pequenas sementes ou plantas valessem quase tanto como o ouro, e justificassem uma navegação intensa e arriscada entre o produtor e o consumidor, um no Oriente, outro no Ocidente. Mas não são só produtos materiais que se exportam e importam; os serviços, como será o caso do turismo, dos modelos financeiros, da consultoria, entre outros, também se exportam e se importam. O exercício da troca é sempre precedido por actividades tendentes à exposição do mercado, ou à exploração de gostos ou hábitos de consumo. O comércio está logicamente dependente da industrialização ou da produção, e de outros factores relacionados com a globalização já referidos, mas é evidente que nunca será eliminado, mesmo em tempo de guerra.

Uma outra área que mais tem contribuído para o desenvolvimento da globalização é a financeira, que surge naturalmente em conjunto com o comércio, e em especial com o alargamento e velocidade das transacções de todos os tipos, desde matérias primas até activos financeiros. As bolsas de todo o Mundo estão ligadas por sistemas de informação potentes, permitindo uma actualização do mercado em tempo real. Em muitas ocasiões, para o cidadão estranho ao sistema, como é o nosso caso, parece tratar-se de realidade virtual (um mesmo produto pode ser vendido várias vezes, sem que se tenha um conhecimento exacto da sua realidade). É fácil imaginar a sensibilidade dos modelos financeiros globais, o que significa que uma pequena variação dos dados de entrada do modelo poderá provocar uma situação caótica de amplitude mundial; as notícias, de vez em quando, vão-nos dando conta destes episódios. A globalização, neste caso, constitui como o material combustível em que o fogo se propaga. O que é interessante notar é que acabam por ser os cidadãos a pagar estes descalabros, ao mesmo tempo que se faz apelo para as regulações nacionais.

A tecnologia dos transportes e das comunicações permite, com muito mais facilidade do que no passado próximo, a circulação de pessoas. São muito variados os motivos para essa circulação. Umas dessas pessoas vão arrastadas pelo negócio das coisas e das ideias, outras foram forçadas por razões de insegurança, outras vieram atraídas por curiosidade intelectual ou lúdica, outras ainda procuraram amenidades que a sua geografia local não permitiria. Uma grande parte destas multidões regressa às suas origens, depois de permanências curtas ou longas, e de terem realizado os objectivos que os tinham levado à viagem. É preciso chamar a atenção para o facto destas movimentações não serem comparáveis, pelos seus motivos, com outras movimentações históricas. Não trazem o propósito manifesto da conquista ou da imposição cultural ou política, nem o desejo de se submeterem a uma cultura que, eventualmente, assumissem como superior, independentemente da verificação de algum nível de integração, que não é significativo em termos globais. Mas também não poderemos ignorar que os desequilíbrios demográficos, num sentido negativo, em países mais desenvolvidos, e positivo, nos países mais pobres, facilitam estas movimentações; parece pertinente perguntar o que acontecerá quando os países pobres puderem absorver toda a sua população no seu mercado do trabalho. O bem estar nem sempre é o valor mais elevado em todas as circunstâncias. Por estas razões, não nos parece que esta circulação esteja a contribuir para a construção de uma sociedade global. Os valores que as grandes migrações transportam estão muitas vezes em choque com os valores nos seus destinos, e a capacidade de adaptação ou de integração no sistema receptor nem sempre é suficiente para garantir estabilidade.

A globalização, para a maioria dos cidadãos e dos Estados, surge como instrumento, não como fim em si – “todos querem a globalização para serem os vencedores, e em todos os jogos há vencedores e vencidos”, como diz Arjun Appadurai. Sem perdedores não pode haver vencedores, dirão outros. Temos a intenção de voltar a este assunto quando tratarmos das questões de identidade.

Ora, sendo os factores económicos relevantes para a globalização, é evidente que, se houver uma retracção na ponderação desses factores, os contactos, desde o nível individual até ao nível institucional, terão tendência a diminuir, o que representará uma diminuição da intensidade da globalização. Daqui a questão que muitas vezes se coloca quanto à reversibilidade ou irreversibilidade da globalização, como situações extremas. Se os apoios que as organizações internacionais recebem actualmente dos Estados e dos cidadãos regredirem, é óbvio que a globalização perde vigor; igualmente, acontecimentos violentos, ou actos de terrorismo, ou situações caóticas, farão com que os agentes activos, participantes e beneficiários da globalização privilegiem os seus recatos mais seguros, afectando a globalização. Contudo, não se afigura, em qualquer circunstância, que possa existir um retrocesso significativo, ao ponto de se deixar de valorizar a interdependência como instrumento de progresso. De facto, é de admitir que, por um lado, a circulação global de pessoas, coisas e ideias se intensifique, embora de forma não linear; por outro lado, o impacto de crises de várias naturezas, as doenças, epidemias e pandemias, a degradação ambiental, as migrações económicas, o crime organizado, o tráfico, a guerra de informação e outros problemas de carácter negativo assumem outras proporções com a globalização, o que conduz a uma retracção natural dos actores e agentes, assim como a minimização das transacções por razões de segurança, com carácter pontual ou relativamente alargado. Tanto do ponto de vista económico como no plano da cultura, ou mesmo do político, é sempre teoricamente possível que um país decida pelo isolamento, desde que exista uma coesão social e uma consciência nacional muito fortes, e o reconhecimento de uma diferença profunda com o exterior; contudo, uma decisão nesse sentido traria custos muito elevados, apenas suportáveis por uma percepção de ameaça à sua sobrevivência.

O caminho da interdependência será sempre a via mais recomendada, onde as identidades actuais não se esbatam, nem as novas se lhes sobreponham; a globalização é, de facto, um exercício de interdependência mais intenso. Um dos pressupostos, ou dos valores, que impulsionou a globalização foi o mercado livre; contudo, ele só se constituirá valor moral se fôr avaliado de forma positiva, em termos de distribuição de riqueza segundo a distribuição de capacidades legítimas, e redução da pobreza. Se é verdade que existe uma certa convergência económica entre os Estados, a verdade é que a distribuição de riqueza dentro dos Estados estará longe da situação de equilíbrio. A globalização é de certa forma assegurada pela estabilidade na escala de poder dos países; as grandes variações nesta escala, numa dada unidade de tempo, é um factor de instabilidade que pode gerar conflito – à medida que o desequilíbrio se vai produzindo, ao nível das grandes potências, e quanto mais variações ocorrerem maior vai sendo a entropia do sistema e a probabilidade de conflito, segundo nos diz a experiência histórica, e com mais tensão menor será a transacção global.

Existe um outro aspecto que deverá ser introduzido neste debate, e que é o que diz respeito à existência de problemas globais, para os quais se impõem soluções globais, isto é, com a participação de todos os países ou, inclusivamente, de todos os cidadãos. Não podemos, no entanto, incluir este aspecto no fenómeno da globalização, porque a sua solução não implica uma interacção mas uma convergência, ou uma consciência alargada que leva as pessoas, as instituições e os Estados a procurarem as soluções mais adequadas para o problema. É o caso mais paradigmático da alteração climática, cujo estudo e proposta de minimização são coordenados por agências onde os Estados estão representados, e em cujos “fora” assumem as responsabilidades inerentes. Outros exemplos serão o da organização da aviação civil a nível mundial, ou da meteorologia, ou da navegação, entre muitos outros, onde são sublinhadas e aceites competências próprias dos Estados Membros, e onde estes acordam seguir determinados procedimentos e políticas associadas ao objecto da organização. Nem existe um comando supranacional nem tão pouco as situações são “fabricadas”, de forma abstracta, em resultado de interacções naturais.

Em relação às comunicações e aos sistemas de informação, deveremos ter em atenção alguns pontos fundamentais, relativamente à problemática da globalização. A quase totalidade do Planeta está coberta por redes de comunicação que permitem a ligação instantânea entre todos os seus pontos. A “Internet”, que é a rede mais “global”, permite uma divulgação de informação inesgotável, em quase todas as línguas, o que quer dizer que qualquer evento conhecido pode ser visto e analisado em tempo quase real, em todo o Mundo. Mas existem aqui dois pequenos problemas. Em primeiro lugar, é preciso sublinhar que existe controlo, por parte dos países, sobre os pontos de entrada das redes, e que a sua utilização é paga pelos cidadãos, ou pelos Estados. Em segundo lugar, a infra-estrutura de informação para além do elemento físico, dos cabos, dos repetidores, das antenas, dos nós, dos satélites, dos bits e dos bytes, tem na última camada as aplicações informáticas que não só fazem a gestão automática do sistema, como sugerem soluções de utilização em problemas da vida real que, em última análise, radicam nos valores de quem “impõe” essas soluções; este ponto é importante para a discussão que mais adiante se irá efectuar quanto à influência da Tecnologia.

Para além da comunicação global e dos aspectos mencionados do âmbito da economia, os teóricos defensores da globalização consideram que as suas características ou propriedades principais são a emergência de um mercado global, de uma cultura global, de uma língua mundial, o alastramento da democracia e da sociedade civil global. Parece-nos evidente que estaremos muito longe desta caracterização ou de encontrarmos um caminho nesse sentido. Outros consideram-se totalmente cépticos, negando a intensificação da interdependência. Entre estas duas posições extremas poderemos considerar uma terceira que, não ignorando os efeitos da globalização, os considera positivos para uma modificação nas formas de governação, preservando, na sua essência, os valores ancestrais, e respondendo de forma pragmática aos desafios da modernidade. É interessante notar que no grupo dos opositores à ideia de globalização se incluam actores com posições díspares noutras matérias; nele estão incluídos actores que consideram a globalização como uma agressão, ou entrave, ao processo democrático, na medida em que denunciam a falta de escrutínio de algumas organizações, públicas e privadas, com reflexos na qualidade de vida, na distribuição de riqueza, no domínio global, influenciando a decisão política de forma penalizadora para o cidadão. E existem outros actores que condenam a globalização pela irrelevância que atribui ao Estado Nação.

As posições entre os que defendem ao transe a globalização e os que a procuram compreender em termos realistas diferem também na avaliação dos benefícios ou dos danos, assim como da irreversibilidade ou da possibilidade de reversão ou enfraquecimento do processo; os que acreditam nesta possibilidade julgam que tal poderá acontecer se as grandes potências decidirem limitar as aberturas actuais à livre circulação ou adoptarem políticas mais restritivas em vários domínios. O que é um facto é que as infra-estruturas para a globalização estão montadas, permitindo, teoricamente, que as interdependências atinjam um nível de intensidade que permita classificar o processo da troca como globalização. Isto é, para além da existência das infra-estruturas é preciso que nelas circulem de uma maneira fluída pessoas, coisas, dinheiro, ideias, e esta situação poderá não ocorrer em tempos de crise de qualquer natureza, onde existam restrições naturais ou legais impostas pelas autoridades legítimas, ou factos extraordinários que afectem a segurança ou a confiança de agentes e processos. Quanto aos ganhos ou às perdas, os globalistas consideram que todos ganham, os realistas admitem a possibilidade dum jogo de soma nula, em que uns ganham e outros perdem. Por estas razões, a globalização é um processo naturalmente precário, com picos de grande intensidade seguidos de outros de muito fraco desempenho e, assim como inquestionavelmente nasceu, não há qualquer dúvida que existe, também poderá vir a extinguir-se, naturalmente, o que será hipótese remota.

A globalização nasceu da revolução tecnológica, nas áreas que já foram referidas, ocorrida nos Estados Unidos da América (EUA), o país liderante do desenvolvimento tecnológico mundial nas últimas décadas. Existem várias razões para que a sede aí tenha ocorrido, desde logo, o espírito empreendedor, a massa crítica gerada por uma organização orientada nesse sentido, o investimento do Estado em grandes projectos militares e o seu aproveitamento para fins civis, entre outras. A generalidade dos países foi “arrastada” para aceitar as ideias provenientes dessa potência por uma questão de necessidade e conveniência, por insuficiências na competição. Muito embora existissem centros de investigação fora dos EUA com competências tecnológicas semelhantes, faltava-lhes a liderança empresarial para impor as suas próprias soluções e aceitar os riscos inerentes, para “passar do resultado da investigação para a aplicação prática”, em suma, faltava-lhes massa crítica. As “ofertas” dos EUA eram irrecusáveis, na medida em que se traduziam também em ganhos imediatos para os receptores dessas propostas. Em relação à revolução tecnológica há que referir que, no contexto da globalização, ela pode provocar rupturas em termos sociais, políticos ou meramente comerciais, fazendo nascer novas grandes empresas, arruinando outras até à extinção, provocando desequilíbrios financeiros, criando situações novas; isto quer dizer que vivemos numa época em que pode prevalecer o caos, o que força a que se tenha uma atitude específica para a relação de qualquer natureza, diferente da de um passado perfeitamente estável.

Nesta enxurrada de propostas tecnológicas vieram também as “condições de aceitação”, que diziam respeito aos valores do mercado, à democracia liberal, aos direitos humanos ou, mais em particular, ao individualismo, ao consumismo, ao “Estado mercado” (em substituição do Estado Nação). Aqueles três primeiros itens têm repercussões enormes do ponto de vista político e económico. Contudo, alguns críticos fazem apelo a uma ponderação não sobre a sua essência, mas na forma como os pretendem ver implantados, e a crítica é a que seguir se sumariza.

Se, de facto, se caminha para um mercado livre, a nível global, onde os produtos, as formas de produção, os agentes circulem livremente entre países, porque se opta pelos acordos bilaterais de longa duração, entre países ou blocos particulares de países, assumindo-se obviamente condições preferenciais entre signatários, e uma regulação específica acordada entre eles? Aparentemente e salvo melhor opinião, existe aqui uma dissonância entre o que se proclama e o que se pratica, porque, na realidade, o mercado global não será tão livre como se diz, no discurso vulgar. Aqueles acordos não tratam apenas de tarifas, ou ausência delas, como no passado; incluem também outras matérias, como, por exemplo, a inovação, o emprego, o investimento.

No processo da globalização não existe a liberdade absoluta, nem se propõe que as regras venham a ser construídas de forma abstracta, em resultado da interacção natural, do reconhecimento do Outro, como se diz. Pelo contrário, é na umbrela da regulação que os actores se movimentam. Existe, de facto, regulação, como não poderia deixar de ser, mas as regras são previamente estabelecidas com a participação e aceitação dos Estados.

Em relação à democracia liberal, o chamado fim da História, será legítimo admitir que subsistam algumas dúvidas: no dito mercado livre, pressupõe-se que o Estado não é o actor principal, cabendo a missão primária aos agentes económicos privados. O desenvolvimento da globalização, no sentido preconizado pelos seus defensores mais radicais, acabará por ter efeitos perversos, na medida em que logicamente vencerão as empresas mais competitivas, ou seja, as grandes multinacionais. Muitas destas empresas têm orçamentos superiores aos de muitos países, o que de certa forma reflecte a sua influência não só em relação ao objecto do seu negócio, como em relação a outras áreas, incluindo a política; muitas vezes, o seu poder tem tendência a ser superior ao poder dos Estados. Assim sendo, os cidadãos terão pouca capacidade de interferência na sua actividade, porque ela não está sujeita ao escrutínio democrático, os cidadãos não têm voto quanto aos planos de acção de organizações blindadas que, ao fim e ao cabo, influenciam as suas vidas de maneira positiva ou negativa, sendo certo que o seu objectivo é o lucro. Naturalmente que estamos a colocar o problema numa situação extrema, que será aquela que resultará duma perspectiva idealista, que não prevê mecanismos de regulação para além da “mão invisível”.

Relativamente à salvaguarda dos direitos humanos, o que se observa é uma diferença de tom em função dos interesses, e da relação de poder entre as Nações. É, de facto, sintomático que, num curto espaço de tempo, se tenha deixado de criticar a violação dos direitos humanos num determinado país, e essa crítica tenha passado ao esquecimento quando esse país subiu, de forma vertiginosa, na escala de poder e os seus comportamentos não foram substancialmente alterados.

 

O globalismo

Passemos então àquilo que definimos como globalismo.

É muitas vezes invocado que uma das novidades da globalização é uma concepção de um “todo” que envolve cada centro de decisão, sobre o qual este não tem qualquer capacidade de controlo. É o fluxo de informação sobre eventos que estão ocorrendo no momento, são circunstâncias que se relatam como se estivessem a observar directamente, são ideias, conceitos e instrumentos que se expõem com uma clareza que leva à sua compreensão imediata, e sem esforço. O conhecimento da Humanidade estará disponível para o cidadão comum, em cada instante. Tudo isto emerge sem autoria bem definida, e sem que seja possível a alguém subtrair-se a esta situação. Diz-se que será o resultado da interacção global. Alguns globalistas afirmam que os indivíduos por toda a parte estão descobrindo que o seu bem estar é determinado por forças remotas, para além do seu controlo e do controlo dos seus governos. Poderíamos tirar daqui a ilação, porventura abusiva na perspectiva dos globalistas, de que os seres e os órgãos políticos perderam a autonomia, a individualidade, e que agem e se movimentam empurrados pela onda imparável da globalização, segundo um determinismo terrestre. Contudo, em face de crises, designadas como globais, os cidadãos procuram a segurança, no imediato e no concreto, junto dos seus grupos de identidade primária.

Na realidade, a acção das unidades políticas sempre foi influenciada por factores externos, que se incorporaram no processo de decisão segundo moldes diferentes, consoante as culturas e as relações de poder internas e externas. O que a situação actual nos exige é um processo de interdependência muito mais intenso, porque é maior o número de eventos e de actores, assim como é mais veloz e maciça a circulação de ideias; mas este facto não se pode traduzir em integração política global imposta por situações ou princípios globais. Não há, ou não deve haver, uma resignação ao determinismo global criado por uma metafísica da interacção global, por paralelo com a metafísica dos costumes ou com o direito natural nas sociedades civis. Cada ser, cada país, cada governo, tem um desígnio que procura cumprir, ponderando em cada momento, os factores externos e jogando com eles a seu favor, ou seja, no sentido do seu desígnio.

Pelas leituras que fazemos, parece-nos que tanto os globalistas como os pós-modernistas concordam com a desvalorização, ou desconstrução, do Estado Nação com os argumentos de que foram os nacionalismos que provocaram as guerras nos tempos históricos recentes, e de que a globalização será a solução para a paz, na medida em que elimina opositores extremistas com sistemas de valores irredutíveis. Por outro lado, a globalização irá relevar o papel do indivíduo, na medida em que o liberta das instituições intermédias; no ínterim, os Estados, que deverão garantir “as possibilidades do Ser”, garantindo (ou minimizando) a ausência de riscos, auscultam os desejos, os motivos, as vontades e as capacidades dos indivíduos para as poderem concretizar. Associada a esta questão está a questão das identidades, que são entendidas de forma multilateral, isto é, um indivíduo assume, por força das interacções próximas e intensas, várias identidades que, segundo os globalistas, não estão hierarquizadas; pelo contrário, é a escolha de uma identidade, consoante a circunstância, e dentro da panóplia global, que valoriza a relação pacífica, cada Ser acomodando-se à totalidade dos Seres, de forma biunívoca, na esperança de obtenção de uma situação de vida melhor.

Como se acaba de referir, os alvos fundamentais do globalismo são a desconstrução das ideias de Estado Nação e de Soberania, na medida em que considera que estes conceitos modernos já são incompatíveis com a globalização. Nestes termos, e no quadro da presente análise, impõe-se uma apresentação de argumentos avançados pelas diferentes correntes. O globalismo considera que a guerra tem resultado da competição entre Estados, na sequência de nacionalismos extremistas, e com o objecto de conquista ou de defesa de recursos ou de território; na perspectiva globalizante, este objecto deixa de fazer sentido (é preciso notar que as questões que conduziram à guerra, assim como as correspondentes motivações, variaram ao longo da História). Por outro lado, o globalismo pretende apagar a diferença entre a situação interna, ou doméstica, e a situação externa; em termos modernos, esta diferenciação faz todo o sentido, na medida em que representa a unidade, ou identidade, do Estado Nação, responsável pela ordem interna num universo exterior que, no seu conjunto, já foi caótico, ou “bárbaro”, e que presentemente tem insuficiências de regulação, por ausência de um comando global. É preciso acrescentar que a Ordem Mundial, que os globalistas entendem associar ao fenómeno da globalização, embora com pressupostos e fundamentos muito diferentes, resulta da vontade e do acordo dos Estados e, fundamentalmente, das relações de poder efectivamente existentes; os Estados aceitam os ditames dessa Ordem sempre num exercício de interdependência ou de reconhecimento da escala de poder, em benefício dos seus próprios interesses. O que se acaba de expor não desvaloriza a importância do transnacional, evidentemente; contudo, este fluxo pode ser controlado, em última instância, pelo próprio Estado, e quando este se demitir de exercer esta função estará em vias de ser considerado, pela comunidade internacional, como Estado falhado, ou passa a ser administrado, por via indirecta e subtil, por forças que lhe são estranhas e que não respeitarão um eventual interesse nacional. Convém recordar que o Estado, mesmo num regime muito liberal, tem poderes exclusivos de regulação e de definição de políticas nacionais, como será o caso, por exemplo, da imposição e cobrança de impostos, da definição das políticas de segurança, económicas, culturais e sociais, se não se quiser demitir, mas essa é outra questão. Isto é, sem se negar a evidência da importância da transacção económica e cultural a cargo de outros agentes, alguns deles com elevado poder económico, o Estado continua a ter poderes suficientes para regular essas transacções, por via directa ou indirecta.

Para além da ideia mais radical que desconstrói o Estado, o discurso globalista insiste em dois pontos que consideram fundamentais: a não exclusividade do Estado como actor nas relações internacionais; e o seu carácter não unitário. De facto, existe hoje uma multiplicidade de actores que exercem influência sobre as decisões políticas, tanto num sentido positivo, relacionado com a segurança e o bem estar dos cidadãos, como em termos negativos ou hostis, criando situações de insegurança, em que o caso do actor terrorista é o mais facilmente visível pelos efeitos que produz ao nível material e psicológico. Contudo, na perspectiva não globalista, a acção reguladora, no caso positivo, ou a protecção ou combate em caso de ameaças e riscos, está a cargo do Estado e assim deverá continuar. As funções de segurança e justiça continuarão a ser uma prerrogativa dos Estados, não se visualizando uma solução alternativa e mais eficaz; as experiências recentes do “outsourcing”, nestas matérias, não resultaram. É certo que o Estado não se apresenta hoje, na generalidade, como um actor unitário, “comandado” por apenas uma pessoa ou por um grupo, de forma autocrática; para além da divisão de poderes institucionais, existem ligações entre os cidadãos e os seus governos que permitem deduzir o sentido do bem comum; esta situação não significa que as decisões dos governos devam ser consequência directa das pressões de grupos ou de pessoas, numa relação de poder inversa da convencional em que (nesta) o poder político está acima dos poderes particulares e o interesse nacional acima de todos os outros interesses.

Como se referiu, o outro alvo do globalismo é a soberania nacional. Como é por demais sabido, a soberania significa reconhecimento externo do seu detentor legítimo, como entidade de direito, capacidade para definir princípios e regras no interior dum território, responsabilidade de protecção dos cidadãos e de defesa dos valores nacionais perante ameaças, autoridade para aplicar o direito. A soberania é o garante da territorialidade e da legitimidade do Estado. O globalismo propõe-se desconstruir estes dois elementos fundamentais da génese do Estado, e considera a soberania como obstáculo que deve ser ultrapassado ou removido, com o fim de proteger direitos humanos, implantar e garantir a democracia, manter a paz e o mercado livre, proteger o ambiente. Não diz, no entanto, que entidades irão ter o privilégio, ou a obrigação moral, de derrubar essa barreira, e com que legitimidade poderão efectuar a ingerência. Sem se pôr em causa a grandeza do objectivo ou a elevação dos direitos universais, o problema fundamental é o da sua aplicação, ou da sua tradução em termos reais. O que se verifica, na actualidade, é que os atropelos aos valores universais são muito mais frequentes nos locais, ou nas regiões, onde a soberania do Estado é posta em causa. Em alguns Estados, onde já não existe soberania, são as próprias instituições encarregadas do monopólio da violência para conter a violência anárquica que são geradoras de violência, o que está evidentemente em contradição com os princípios básicos do Estado Moderno – não é, portanto, a soberania que está a impedir o avanço dos valores universais, mas é a ausência dela. Isto não quer dizer que a soberania deva ser o escudo protector da corrupção dos líderes políticos que não saibam exercer as suas responsabilidades, ou que, pela sua incompetência, não protejam os direitos dos cidadãos e permitam ou favoreçam os genocídios, por exemplo, para corrigir esta situação anómala, que infelizmente se verifica com alguma frequência, existirão outros remédios que não sejam a eliminação da soberania. O facto da soberania (tanto no plano interno como no plano externo) ter sido violada não implica que o princípio que a sustenta deva ser abandonado. E uma outra constatação que se terá que fazer é que não existe uma força ou um comando universal que imponha a garantia global dos direitos – as forças que existem são as dos Estados soberanos que voluntariamente se disponibilizam para essa missão, e a avaliação das situações anormais deveria competir ao sistema internacional, com a ajuda dos Estados. Em todo o caso, regular o direito de ingerência é uma tarefa de elevada complexidade.

No âmbito da discussão sobre soberania, existe um aspecto fundamental que merece análise e que se prende com a lealdade do cidadão ao seu Estado Nação. Como já referimos, a soberania significa reconhecimento da existência da unidade política, com as prerrogativas que são atribuídas pelo Direito a todas as outras unidades políticas, e submissão do cidadão aos valores nacionais. O cidadão reconhece interiormente o processo de formação da Nação e a ele se submete, com a consciência de que essa será a melhor forma de se realizar, partilhando valores, cultura, e comprometendo-se, por via disso, a preservar ou cultivar um legado histórico, de afinidades, de pertença, e a participar na definição e materialização da política nacional, num sentido de bem comum. A grande maioria dos indivíduos que pertencem à Nação, os cidadãos nacionais, não aderem de forma consciente à nacionalidade, nascem no seio da Nação, como se nasce de parto natural, que no entanto lhes faculta direitos de participação num processo vivo de adaptação e de evolução natural. O espaço onde a Nação vive é o território, que é a definição dos limites da sua jurisdição, o Estado é a unidade de organização política que ordena a vida no seu espaço e a identidade nacional é a fonte primária da lealdade dos indivíduos.

Ora, este processo de formação e perenidade das Nações é contestado pelos globalistas, pelo próprio conceito de globalização que assumem e porque acreditam que as forças da descentralização, ou fragmentação, a urbanização, a mistura de populações de diferentes origens, as redes, em particular a conectividade digital que permite novas formas de comunidade, todas estas forças que estão em marcha, desconstruirão a concepção moderna da nacionalidade. Entendem que o mundo actual é muito melhor explicado através dos conceitos de incerteza ou de relatividade, do que pela lógica da anarquia, da soberania, da territorialidade e do nacionalismo. Alguns autores já substituíram a designação de Estado Nação para Estado Mercado que apenas mantém lealdade ao mercado livre, ao cartão de crédito, à comunidade do ciberespaço. Parece-nos, contudo, que, sem negar a realidade das redes globais e sua importância, a lealdade do indivíduo à Nação não está sendo posta em causa e o sentimento de pátria continua a ser vivido, com a intensidade apropriada à circunstância, isto é, menos visível em tempos de tranquilidade, mais intenso em tempos de crise ou de afrontamento, quando o reconhecimento possa estar em causa. Como já referimos, parece-nos que existem múltiplas identidades e que existe uma hierarquia, sendo a identidade nacional aquela que está no topo, fundada em valores muito profundos. O processo de desconstrução, ou de corrosão, para exterminar ideias ou ideais ancestrais, desvaloriza também o conceito de Nação e de Estado Nação.

As correntes globalistas e pós modernistas têm procurado desconstruir o Estado Moderno, sem no entanto apresentarem uma alternativa viável, com os argumentos do fenómeno transnacional, da irrelevância da territorialidade, da indiferenciação entre o interno e o externo, que do anterior se considerava o primeiro como regulado e o segundo caótico, entre outros. Contudo, o Estado continua a existir, de facto, e a ele se faz apelo, em particular, quando as situações se aproximam do incontrolável. Não parece, no entanto, razoável admitir que as formas de actuação não devam evoluir, mais interventivas em termos sociais ou mais liberais no quadro do mercado e no pressuposto de alguma influência externa na regulação. Em todo o caso, o território significa o espaço onde o Estado exerce o seu poder legítimo, como unidade da organização política, e onde a lealdade nacional constitui a base da legitimidade política. Apesar das várias ligações proporcionadas pelas redes que materializam a globalização, que criam comunidades de interesses e de afinidades, é a Nação a entidade em que o cidadão se revê, em última análise, e que considera como a melhor via para a sua realização humana, e na qual considera assumidos os valores que melhor promovem o cidadão, em especial na vertente moral e ética. Se é verdade que as redes criam um espaço funcional, não deixará de ser verdadeiro que elas não eliminam, antes reforçam, o espaço político. A ideia de que, pela força da conectividade digital, o indivíduo manifesta maior lealdade a comunidades de interesses transnacionais, tem a ver com a menor importância que alguns autores atribuem às instituições nacionais como sede de valores. Por outro lado, o facto da existência de grandes metrópoles e da descentralização administrativa não tem afectado, de forma significativa, as formas tradicionais da lealdade nacional. A lealdade associativa a grupos que partilham ideias ou áreas de negócio, a submissão a instrumentos que condicionam a vida das pessoas e das empresas, não cria identidades duradouras como é o caso da identidade nacional.

Considerando a globalização como uma entidade naturalmente construída a partir das malhas de redes de diferentes naturezas, quer seja de transporte de pessoas e bens, de energia, de informação, com um comando abstracto nascido do conceito de rede, alguns autores atribuem-lhes benefícios extraordinários no plano do desenvolvimento económico, da libertação humana e da igualdade. Parece razoável colocar algumas dúvidas, neste capítulo, na medida em que não se verifica uma tendência de equalização de poder e de conhecimento entre os actores que fazem parte do actual sistema internacional. Existem, de facto, mais oportunidades que são óbvias, mas não é certo que elas estejam a ser aproveitadas da mesma forma por todos os actores; do lado dos que têm menos poder, a globalização trouxe maiores impactes sociais negativos, como é, por exemplo, o caso do desemprego, das migrações, da pobreza. Não se está, de facto, a verificar o salto de mentalidade de “nós e o outro”, para uma identidade “nós” mais alargada e única, que alguns autores preconizam, e a globalização, em si mesmo, não constitui uma Ordem nem uma Civilização. Pelo contrário, os Estados mais poderosos utilizam a globalização como instrumento para desenvolvimento do seu próprio poder.

Se se considerar a globalização apenas como resultado da evolução tecnológica nas áreas das comunicações e dos transportes, proporcionando um mercado a nível mundial, deveremos ter em conta que as comunicações globais com utilização de meios espaciais só são possíveis com a utilização de infra-estruturas terrestres controladas pelos Estados, e os acordos das transacções são negociados, de forma bilateral ou com participação de agências internacionais onde os Estados estão representados. É evidente que o rápido fluir das trocas faz com que o exercício da interdependência se desenvolva com muito maior intensidade do que no passado. A forte circulação transnacional de pessoas e bens faz reforçar as capacidades estatais embora muito menos visíveis, em especial nas áreas da vigilância e fiscalização, em intensa cooperação internacional.

Não poderemos deixar de considerar que o fenómeno da globalização teve uma origem conhecida e transportou consigo um conjunto de valores que se assumiam como universais, designadamente a democracia liberal, os direitos humanos e o mercado livre, como já insistentemente se referiu. Dado o grande impacte do fenómeno, tratou-se de uma questão de poder, onde as potências menos apetrechadas se acomodaram pela sua própria insuficiência em fazer travar este processo. Ou seja, existem actualmente potências que, apesar da sua participação nos benefícios materiais trazidos pelo processo, resistem à imposição daqueles valores, embora formalmente pareçam assimilá-los. A questão que se coloca é qual será a posição destas potências se eventualmente tiverem capacidades para garantir um domínio tecnológico e uma alteração significativa na escala de poder, a seu favor.

Existe ainda uma outra questão com alguma relação com a globalização, pelo menos no que aos avanços tecnológicos concerne, que é a questão das redes sociais e do seu impacte na governança dos Estados. Isto tem a ver com o equilíbrio entre comunidade e indivíduo, com a forma como se tomam as decisões, sempre muito condicionadas pelas pressões “populares”, pela forma de obtenção do poder, pela proporção da componente da meritocracia na governança e pelo horizonte de alcance das medidas políticas. As redes sociais podem ter um impacte significativo no processo de decisão política, de forma positiva ou negativa, em especial quando a ponderação do efeito psicológico sobre os decisores é elevado, e o regime tem dificuldades em responder aos desafios que elas encerram. Em todo o caso, é uma questão que merece uma reflexão aprofundada com vista a se obter uma solução equilibrada e um domínio por parte dos Estados em termos tecnológicos, por forma a se exigir responsabilização e comprometimento. Ou seja, a governança dos dias de hoje exige a utilização de técnicas de comunicação, não num sentido de mistificação mas de clarificação. Mas o que aqui mais nos interessa são as redes sociais transnacionais que arregimentam indivíduos e organizações para determinadas causas, que muitas vezes não são verdadeiras causas, criando “ondas” difíceis de esbater. Os Estados não participam nas redes sociais, mas estão atentos aos seus conteúdos e distribuição, e reagem, embora não directamente, com factos e com mensagens pelos canais oficiais.

O fenómeno da globalização surge-nos, algumas vezes, como o mito da sua geração espontânea, construído num vazio cósmico, sem pontos de apoio reais, com actividade comandada por cada interveniente, aproveitando os desenvolvimentos extraordinários dos sistemas de informação, das telecomunicações e dos transportes. Os princípios que os seus defensores lhe atribuem são a democracia, o mercado e o respeito pelos direitos humanos. A aplicação destes princípios faz gerar mecanismos auto reguladores, pela interacção entre os indivíduos e entre uma multiplicidade de agências correspondente a todos os tipos de actividade, os bancos, os fundos usurários e poderosos, os tribunais mundiais vigilantes, as multinacionais, os grupos de interesse, etc.. Mas, por de trás de toda esta maquinaria, que se assumiria transparente, existe de facto o exercício opaco do poder.

Em termos estratégicos, portanto relacionados com o poder, subsistem algumas dúvidas quanto aos benefícios reais da globalização, em especial quando esses resultados se confrontam com as expectativas criadas pelas correntes idealistas ou optimistas. Não é linear que as pequenas potências sejam automaticamente beneficiadas com os investimentos estrangeiros em proporção com o rendimento desse capital; regra geral, este investimento não é produtivo, não é gerador da riqueza que se estimaria, dado que uma grande parte do capital gerado circula para outros destinos, e a aquisição de conhecimento e de experiência local não é relevante em termos de progresso. As novas tecnologias não proporcionam os mesmos resultados positivos nos pequenos países que auferem nas grandes potências, na medida em que são exportadas com restrições de utilização, de exploração ou de desenvolvimento. Não é líquido que os países estejam mais disponíveis para participarem no alcance de objectivos comuns, para além do seu interesse particular. Se existe mais consciência para as questões mundiais é porque elas afectam directamente os Estados. Apesar de todas as declarações formais sobre o alcance da liberdade e da igualdade, a verdade é que continua a existir o centro e as periferias, e a riqueza continua com padrões de distribuição não consentâneos com aquelas declarações.

Em relação à segurança, os riscos têm tendência a aumentar na medida em que existem mais interacções, a todos os níveis. Por outro lado, a maior facilidade e intensidade de circulação de pessoas e bens, impõe que se considerem não só os trânsitos positivos que contribuem para o desenvolvimento humano e das sociedades, mas também agentes e materiais deliberadamente ofensivos, ou pelo menos lesivos, da paz social e dos interesses individuais. Tendo em conta o objectivo sempre presente da liberdade dos cidadãos, as sociedades deverão ser dotadas dos sistemas que lhes garantam segurança, requisito básico do desenvolvimento. Em última análise, quem providencia esses meios de segurança são os Estados, de forma isolada ou em cooperação.

Como referido, a questão das redes sociais é importante, assim como as outras redes. As redes sociais, constituídas por nós, espalhados pelo Universo, quer se trate de indivíduos ou instituições, adquiriram relevância com a digitalização da informação e as novas técnicas e meios de comunicação. Contudo, os conteúdos que circulam podem tornar os cidadãos mais informados e atentos, logo mais conscientemente participativos, mas também podem ser manipulados para atingir determinados fins menos positivos. Devido à facilidade de comunicação, a nível global, constituem-se naturalmente comunidades de interesses ou de afinidades, e a consequente arregimentação de indivíduos para causas ditas universais; estas correntes são transnacionais, veiculando propósitos muito válidos, ou incentivando a revolta contra instituições, ou manifestando-se contra ou a favor de determinadas políticas ou ideologias – a razão pura parece que passou a estar nestas redes, segundo os seus promotores, que reclamam, por esta via, o exercício pleno da democracia. Sendo a democracia um fim último do desenvolvimento político, a participação das massas constituirá a expressão mais fidedigna do exercício democrático, possível através da globalização; o problema é o de determinar a sua eficácia numa relação particular entre governo e governados, dado o carácter de globalidade que esta participação pretende envolver. As redes sociais desenvolvem-se assim num ambiente que se pode caracterizar como de guerra de informação, no sentido genérico em que o termo já é consagrado. Daí que se torna necessário dotar os Estados com instrumentos adequados à garantia de segurança e de liberdade dos cidadãos, com a utilização de novas tecnologias. O Estado deverá procurar garantir a superioridade da informação e a protecção dos cidadãos contra acções de informação maléficas.

O fenómeno da globalização, traduzido por mais comunicação e mais possibilidade de transacção, a nível do globo, não tem correspondência com a capacidade de regulação a esse nível, por razões evidentes de eficácia. Como vimos, as redes não constituem, só por si, e de forma automática, um mecanismo de auto regulação. Essa capacidade reside, em grande parte, na organização política pré existente, ou seja, nos Estados. Esta posição não é, no entanto, unânime entre os teóricos da globalização; vejamos então quais são as soluções propostas, julga-se que para um futuro distante, para o “auto comando” do globo.

Os globalistas consideram obviamente que não existe um comando superior no topo de uma dada hierarquia, nem sequer referem qualquer mecanismo de coordenação; as regulações, que implicitamente aceitam como existentes, serão determinadas pelo próprio mercado, nas interacções dos indivíduos e das suas agências, assumindo um Estado territorial cada vez mais fraco até à sua extinção. Curiosamente, parece que estes autores não levam às últimas consequências os princípios que parecem avocar, na medida em que não eliminam totalmente o Estado, considerando apenas que essa figura não terá controlo sobre as forças do mercado global; é este mercado que fará a exploração dos recursos (ou seja, a produção) e a sua distribuição, determinando assim o nível de bem estar dos indivíduos. Assumem de forma muito convicta que a interdependência económica produzirá, inevitavelmente, paz e prosperidade. Como já foi referido, o papel do Estado (sem o requisito do território para a sua definição) seria o de proteger as oportunidades que o mercado oferece ao indivíduo (serão essas oportunidades que dão estatuto ao indivíduo, e não a identidade nacional), manter a democracia e os direitos das minorias. Nesta visão do Mundo a violência seria erradicada e a guerra seria obsoleta, pelo desenvolvimento do conhecimento, pela interacção tendencialmente pacífica e construtiva, e pela diminuição de importância do território. A justificação para a violência de facto existente reside no subdesenvolvimento e onde não estão em vigor regimes democráticos liberais, pois entre estes regimes não pode haver guerra, mas sim competição saudável. A globalização torna as relações de soma não nula e favorece maior cooperação, considerando-se por isso como processo fundamental para a governança do Mundo.

Esta posição corresponde a uma visão idealista do Mundo, a nosso ver, e ao assumir uma hipotética regulação pelo mercado global, não se vê onde e como colocar a questão dos valores morais e a resolução dos problemas relativos à dignidade humana. Considera a guerra como impossível, mas admite a guerra humanitária, especialmente com carácter preventivo, e a guerra irregular naturalmente por ser contra o poder do Estado.

Dentro do globalismo existem posições mais moderadas que atribuem mais importância ao papel dos Estados do que a posição mais radical, muito embora continuem a saga da sua desconstrução. A sua visão do futuro contempla as organizações internacionais já existentes, após reestruturação que as alinhe com os princípios que entendem estar na base da globalização, em conjunto com organizações intergovernamentais, com organizações não governamentais e com os Estados mais poderosos, com capacidade para romper com as soberanias dos mais fracos, tendo por fim garantir democracia liberal, direitos humanos, desenvolvimento e segurança. Este modelo pretende uma renovação da situação actual, mas esbarra naturalmente na indisponibilidade da força legítima para impor os princípios básicos da convivência global, e por isso admite a intervenção dos Estados apenas para destruir as soberanias onde se acoitam os criminosos. Não se prevê um comando de forças, global, como na situação actual.

Finalmente, a corrente realista estará em processo de revisão, de forma construtiva, adaptando-se à evolução do ambiente político mundial, em particular tendo em conta o processo da globalização e a sua influência na política interna. Parece não haver sistema substituto para o sistema de Estados, na sua essência, apesar da forte interdependência que o exterior exige e das pressões sobre o processo de decisão nacional que as forças transnacionais exercem. E o Estado só fará sentido se for o promotor político da Nação, e esta corresponde ao sentir e ao querer dos cidadãos, com que se identificam e que perante ela manifestam lealdade. Neste sistema, cada Estado procura prosseguir o seu interesse que deverá enquadrar em imperativos de ordem moral e ética; não se trata de colocar os interesses à frente dos valores, mas de conjugar aqueles com estes no cumprimento de um desígnio que é nacional, tal como procedem os cidadãos na sua vida normal. Contudo, o processo de decisão política é mais complexo do que o processo de decisão individual, na medida em que procura satisfazer anseios e preocupações colectivas. E por força da interdependência, uma decisão política produz consequências que podem atingir outros actores, exigindo-se portanto que quem é responsável por decidir ao nível da comunidade tenha a consciência dos efeitos possíveis das suas decisões, tanto a nível interno como externo, o que será mais agravado num quadro de forte interdependência.

O Mundo torna-se cada vez mais complexo e incerto, o que faz aumentar a dificuldade da sua compreensão e a ocorrência de situações de instabilidade ou conflito, ao nível social e político. Os fluxos de pessoas, coisas e informação não têm apenas um carácter positivo, de vantagem para cada actor, mas têm também uma carga negativa (crime organizado, tráfico de pessoas, drogas e armas, pandemias, crises financeiras, etc.) que faz criar medos. O sentimento do medo ou do desconhecido (pela falta de previsibilidade) cria insegurança, e provoca estímulos de sobrevivência ou comportamentos de agressividade. Por todas estas razões, os apelos à aldeia global, às regulações automáticas ou ausência de regulação de qualquer natureza, fazem suscitar reacções para o extremo oposto com experiências muito negativas no passado. A desvalorização do conceito de Nação, fazendo crer na figura do cidadão do Mundo, provoca de imediato nacionalismos xenófobos; é a lei da acção/reacção. A vida é difícil, ou quase impossível (pelo menos quando ainda se tem a consciência de que se poderão atingir níveis elevados de qualidade de vida; para aquele que nada tem ou nada espera, o caos não o perturba), num ambiente caótico, e muito mais agravada quando se cria a percepção de uma incapacidade de controlo pelos poderes instalados. Por outro lado, quando se anuncia que os padrões actuais vão mudar, designadamente na política, na forma de autoridade, nas identidades, na forma de distribuição de recursos, por efeito da globalização, a instabilidade tem tendência a aumentar, pelo vazio estabelecido; é o anúncio da mudança que provoca ansiedade, apesar da não correspondência do anúncio com a realidade – os governos sempre se deverão orientar pelo interesse nacional e tomar decisões em representação dos cidadãos; o que a situação presente tem de novo é que as mudanças que provocam a necessidade de tomar decisões são muito mais frequentes do que a capacidade dos líderes políticos para as antecipar.

A liderança política confronta-se, hoje em dia, com dois tipos de problemas: para garantir um mínimo de estabilidade, as soluções dos problemas, quer do ponto de vista técnico ou político, deverão ser projectadas para o longo prazo, muito superior ao prazo das legislaturas; e para garantir a aderência dos cidadãos, ou seja, ganhar o seu voto, as expectativas são, regra geral, superiores às capacidades reais que os cidadãos virão a obter.

A dívida mundial é cerca de três vezes e meia aquilo que o Mundo produz num ano. Não é credível que o crescimento económico seja superior à taxa de juro do capital, pelo que a situação tenderá a agravar-se. Nesta guerra entre credores e devedores, com a arma financeira, os primeiros levam uma grande vantagem sobre os segundos, embora concedam pequenas compensações temporárias para criar a ilusão de uma vantagem de ambos. A desregulação proposta pelo globalismo e mantida pela globalização agravou este cenário: sendo o capital financeiro indispensável para o desenvolvimento económico, e dado que todos querem crescer e que esse capital está disponível no mercado global, o recurso a esse instrumento constituiu a tentação dos governos, das empresas e dos cidadãos, na esperança de que melhores dias virão. No final, os donos do capital financeiro não deixam de exigir o pagamento, com juros; como ele não existe em espécie irá ser pago em género. O problema será o de saber se a arma financeira não se tornará em arma real.

O que acabamos de expor conduz-nos a uma breve discussão sobre aquilo que muitos autores designam por pós modernismo, com aplicação ao Mundo, à Ordem Global e ao Estado. Esta suposta transição para um novo Mundo enquadrado por uma nova Ordem (ou talvez tendencialmente pela ausência de ordem, no sentido clássico) é datada pelo fim da Guerra Fria, e também pelo fim da Ordem pela Balança do Poder (que terá durado cerca de trezentos anos). Admite-se, portanto, que na nova ordem, a emergir, não mais haverá balança de poder. Para o propósito desta apresentação interessa-nos, apenas a análise sobre o papel do Estado e as questões de segurança.

 

O Mundo pós Moderno

O Mundo pós Moderno, segundo os seus próprios padrinhos, é uma designação não directamente associada à globalização, porque, de facto, não é global; existe um mundo pré moderno, que é o mundo dos Estados falhados ou dos grupos étnicos, e o mundo moderno caracterizado por um Estado forte como fim último da Razão. Este Mundo pós Moderno compreende a área mais avançada do globo, politicamente, e constitui apenas uma parte do sistema internacional, visto que seria despropositado classificar de pós moderno aquelas partes do Mundo onde não existe ordem, ou onde a ordem é essencialmente baseada na força. Os proponentes desta classificação defendem que neste Mundo pós Moderno o Estado tende para o colapso, ou para o desaparecimento progressivo, não existe balança de poder, e que também tendem para o apagamento conceitos como o da soberania, ou da separação entre assuntos internos e estrangeiros, onde é aceitável a interferência mútua em questões classicamente designadas de âmbito interno (particularmente a verificação intrusiva, sem aviso prévio, dos sistemas de forças e sistemas de armas, por agências internacionais e por outros países, donde resulte uma total transparência entre países quanto a prontidão militar e intenções ou planos na área da defesa e segurança). A segurança é assim baseada na transparência, na interdependência, e na constituição de agências internacionais na área do Direito, ou da Economia, que estabeleçam regras de comportamento e que sejam dotadas dos mecanismos adequados para julgar infracções a âmbito global, como é por exemplo o caso do Tribunal Penal Internacional e de outros. Trata-se, portanto, de um globalismo ligeiramente modificado.

Os proponentes da noção de Mundo pós Moderno, tal como os globalistas, consideram como seu pilar fundamental a democracia, entre outros valores. Acontece, na realidade, que as instituições democráticas, assim como a identidade nacional, estão firmemente ligadas ao território, pelo que a criação desse Mundo terá que resolver esta aparente contradição; a sua resposta mais imediata tem sido a proposta de abolição de fronteiras.

Um dos exemplos que mais frequentemente é sugerido para a classificação de Mundo pós Moderno é o da União Europeia. E as razões que são invocadas para esta mudança é o facto das nações europeias não quererem mais combater umas contra as outras. Portanto, é a vontade de não combater, por princípio, e fundamentalmente porque se generaliza o comportamento ditado por um novo tipo de relação, em que a decisão é condicionada pela consideração ou respeito pelo outro, que levam a considerar a emergência de um novo mundo. Pragmaticamente diz-se que quando se misturam as indústrias, as economias e as forças a guerra não é possível, e foi isso que esteve na base da constituição das comunidades europeias; é preciso, no entanto, lembrar que esta teoria não explica a desintegração da Jugoslávia, por exemplo, onde aquela mistura se verificava. A aceitação por todas as nações de mecanismos para julgar as disputas de interesses entre elas favorece, sem dúvida, a confiança; contudo, neste mundo que nos propõem, se efectuarmos uma investigação mais profunda verificamos que existe também aqui uma relação de poder, muito mais subtil, é certo, muito embora a interdependência funcione de forma muito mais transparente do que nos outros mundos. Este Novo Mundo tem expressão nos Tratados de Forças Convencionais na Europa, no Tratado das Comunidades Europeias, nas Medidas de Confiança Mútua, do Tratado de Roma e subsequentes, e de outros actos do mesmo género. Admite-se que o conceito de Mundo pós Moderno possa ser alargado a outras nações e a outros continentes, se neles se verificar a existência de instituições cooperativas e acordos abrangendo muitas nações, em variados domínios como sejam o comércio, o transporte, as comunicações, a justiça e que por essa via facilitam um outro tipo de relação. Contudo, é preciso notar que muitos dos acordos são bilaterais e que continuam a subsistir nessas áreas um Mundo Moderno, caracterizado pelo reconhecimento da soberania do Estado, pela separação entre assuntos internos e estrangeiros, pela proibição da interferência externa, pela garantia de segurança exclusivamente pela força, predicados opostos ao do Mundo pós Moderno.

Uma das razões frequentemente apresentadas para a construção do Mundo pós Moderno, é o de que o Estado Nação, por natureza exclusivista, é perigoso por ser naturalmente expansionista, por ter ambições territoriais, como demonstraram os nacionalismos do século passado. Daqui parece resultar a tendência para esbater a importância do Estado Nação e, eventualmente, para o extinguir no futuro.

Neste quadro, o da pós modernidade, importa perceber qual será o papel do Estado, enquanto não for extinto. Desde logo, é muito mais orientado para o indivíduo do que para a colectividade. Nestes termos, terá como objectivo “olhar” para o indivíduo como possibilidade, isto é, criar condições para a sua realização pessoal, garantir uma sociedade livre. A descentralização é um princípio fundamental da pós modernidade, e o Estado é por natureza não burocrático, ao contrário do que acontecia com o Estado Moderno. Os interesses do Estado, em si, isto é, aqueles que têm a ver directamente com a sua continuidade ou sobrevivência, não serão relevantes para a definição da política externa que será a extensão das políticas internas. O Estado garante uma comunicação social objectiva e isenta, livre de interesses económicos ou políticos. O Estado está orientado para proteger os direitos dos indivíduos, em primeiro lugar. A política externa torna-se a continuação das preocupações internas projectada para o exterior. “O consumo individual substitui a glória colectiva como tema dominante da vida nacional, a guerra é evitada e os impérios deixam de ter interesse”.

A segurança neste Mundo pós Moderno é adquirida pela promoção da democracia, pela transparência, pela interdependência, pelo mercado aberto, pela diplomacia aberta e transnacional. A segurança é obtida pela confiança e cooperação, e não pela ordem de segurança colectiva que consiste na estabilidade pela balança de poder e pela hegemonia. A intervenção internacional deverá ser orientada para a protecção do indivíduo, e não para a salvaguarda dos interesses dos Estados, o que é o caso da segurança colectiva.

 

Considerações Finais

A globalização é um processo, que em princípio é irreversível, só podendo ser bloqueado por acção de uma guerra de grande amplitude. Contudo, a sua intensidade pode baixar em função das conjunturas políticas, dos paradigmas industriais e comerciais e da evolução tecnológica, até um ponto próximo da reversibilidade.

O globalismo tende para a aceitação de um determinismo terrestre, na medida em que defende que o Estado depende de um conjunto de factores que não controla, e será incapaz para resolver as questões locais e as questões globais onde está inexoravelmente envolvido, isto é, andará ao sabor desse monstro que dá pelo nome de globalização.

A Ordem Mundial é a ordem dos vencedores da II Guerra Mundial. Não parece líquido que uma nova ordem, radicalmente diferente da actual, possa vir a ser instituída sem que seja estabelecida uma nova relação de poderes no sistema internacional. E parece irrealista pensar que uma nova ordem possa ser estabelecida sem ser baseada numa hierarquia de poder.

A consciência nacional resulta do reconhecimento de valores nacionais que visam o desenvolvimento dos cidadãos, em termos de liberdade com responsabilidade, e de promoção dos seus direitos políticos, económicos e sociais. Esses valores foram construídos pela História, o que significa que existe um legado que importa salvaguardar e fazer evoluir, a que está associado o conceito de Pátria.

A identidade nacional, assim como as instituições democráticas nacionais, estão associadas a um território que também faz a ligação às diásporas. O território é um dado profundamente consolidado na maior parte do Mundo, onde não existem disputas pela sua possse.

O Estado Nação deverá continuar a ser relevante, e não deverá ser desconstruído, ou corroído, com o argumento do perigo dos nacionalismos. O equilíbrio e o respeito que deverão imperar nas relações internacionais, e entre o Estado e os cidadãos, serão a base da estabilidade. Todos os extremismos não fundados (que não tenham a ver com a defesa de valores democráticos, do interesse nacional, ou com a sobrevivência política) deverão ser condenados.

As crises de maior gravidade ocorridas em muitas sociedades resultaram de falhas na governança, designadamente o processo de tomada do poder, a gestão de expectativas, a ligação efectiva entre governantes e governados, a ponderação correcta das soluções técnicas, a visão de longo prazo como elemento fundamental de planeamento, o processo da meritocracia.

A corrosão do Estado e a desvalorização da Nação, sem propostas alternativas credíveis, afasta a estabilidade e pode conduzir a situações caóticas ou anárquicas.

Os processos políticos, económicos, financeiros e sociais só produzirão resultados positivos se decorrerem num quadro de regulação balizado por valores éticos e morais, e mantido por uma mistura de estratégias cooperativas e coercivas definidas e executadas por órgãos representativos dos cidadãos.

A crença do globalismo, além da condicionante determinística, pode conduzir a que a sociedade aberta, como solução política responsavelmente desejável, fique “fora de controlo” dando origem a regimes ditatoriais.

Num quadro de globalização intensa exige-se dos governos capacidade proactiva para antecipar crises e para participação nas decisões dos órgãos próprios do sistema internacional. A atitude passiva corresponde ao abandono do projecto político que qualquer regime deverá assumir.

A segurança e defesa decorrem da aceitação da possibilidade de ocorrências gravosas para a continuidade dos regimes políticos e dos seus desígnios.

 

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2017-11-13
163-188
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia