Como cidadão, mas sobretudo como militar, e enquanto comandante da Academia Militar, que tem por missão primária formar oficiais para os quadros permanentes do Exército e da GNR, considero que falar de entendimento global e paz, neste colóquio de encerramento do Ano Internacional do Entendimento Global (organizado pela Academia das Ciências de Lisboa e assinalado pela UNESCO, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), constitui simultaneamente uma honra e um grande desafio.
Uma honra, pelo convite da Organização e da Academia das Ciências de Lisboa, duas instituições que prezo muito e que têm sido estandartes de cultura dos cidadãos portugueses e do Mundo. Um grande desafio pelo tema, raramente trabalhado por académicos e muito menos por militares.
No estado de direito democrático, as Forças Armadas são a instituição que detém a exclusividade do uso da violência organizada e os militares são preparados para combaterem em prol da defesa do seu país e dos seus cidadãos, com o sacrifício da própria vida e sempre no sentido de prevenirem os cenários de conflitualidade, de garantirem a segurança, a paz e o entendimento local, mas também regional e global.
Nesse sentido, estudam e refletem profundamente sobre a Paz, as crises e a Guerra e sabem que a Nação se consolida pelo equilíbrio adequado entre a memória, o realismo e o sonho. Uma memória construída com a pena e a espada, um realismo sustentado na análise das ameaças e riscos, e um sonho de liberdade, de igualdade, de direitos humanos e do estado de direito democrático. Mas sabem também que para haver sonho tem de haver Forças Armadas, enquanto última garantia de poder do Estado, pois a comunidade internacional dos interesses pouco tem de kantiana.
Desde o fim da guerra fria, no final dos anos oitenta do séc. XX (não coincidente com “O fim da História”, de Francis Fukuyama), as Forças Armadas e os militares têm participado mais frequentemente como Soldados da Paz no âmbito de diferentes operações de paz, ao abrigo das Nações Unidas, mas também da União Europeia e da OTAN, sempre em prol da estabilidade, do desenvolvimento, do entendimento e da Paz Global.
Constituem assim, em Portugal e nos estados de direito democrático, não só um garante dos compromissos constitucionais, mas também um instrumento da política externa do Estado, no sentido da construção de um entendimento global e da paz no Mundo.
Quem normalmente estuda o fenómeno da Guerra, em oposição ao da Paz, ou da Estratégia em oposição à Diplomacia, tem na “Arte da Guerra”, ao longo dos séculos, obras de pensadores que marcaram o pensamento estratégico como Sun Tzu, Maquiavel, Clausewitz, Jomini ou Beaufre.
Efetivamente, poucas obras existem sobre a “Arte da Paz” ou sobre uma “Agenda para a Paz”. A “Arte da Guerra” é trabalhada ancestralmente como o instrumento de conquista de uma nova Paz, afinal o estádio ideal da família, da tribo, da cidade, da sociedade, do Estado, da Federação ou da comunidade internacional.
Picasso traduz, de modo singular, a Arte da Paz e da Guerra, ao materializar a Guerra no seu quadro “Guernica”, que representa a destruição durante guerra civil espanhola, e a Paz no seu quadro “A Pomba da Paz”, que associaria, a partir de então, a pomba branca ao valor mais inestimável para o Homem.
Mas vejamos agora os escritos da Arte da Paz. Cinco séculos antes de Cristo e no Império do Meio, já Sun Tzu entendia, na sua “Arte da Guerra”, que a Guerra deveria ser encarada como “o último recurso dos instrumentos da governação” [...] ”no menor espaço, com o mínimo de perdas humanas”. Nas suas cerca de 30 páginas de astúcia e estratégia indireta, entendia já a Guerra como “um assunto de importância vital para o Estado” e como “o reino da vida e da morte”.
Na Europa e durante o período da idade média, Santo Agostinho trabalhou especialmente a Paz em oposição à Guerra. Para o conhecido teólogo e filósofo só haveria Paz, verdadeira justiça e verdadeiro bem, na Cidade de Deus, na vida futura. Defendeu a Paz, tanto na vida interna como na ordem internacional, na sua consequente visão de separação entre a Igreja e o Estado. Defendeu, ainda, um conjunto de regras de conduta que enquadravam as condições em que a guerra era moralmente aceitável, a conhecida doutrina da guerra justa, que vinha da Roma antiga com as obras de Cícero. Mais otimista seria S. Tomás de Aquino, que acreditava que o fim do Estado era o bem comum, numa visão de que o poder de Deus vinha diretamente para o povo, enquadrada numa verdadeira doutrina dos direitos do homem. Tal como Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino defendia a guerra justa, numa linha de pensamento que a igreja católica apostólica romana adotaria até à segunda metade do século XX.
No final do século XVIII, mas ainda antes das guerras napoleónicas, Immanuel Kant, um dos maiores filósofos de todos os tempos (famoso pelas obras “critica da razão pura” e “critica da razão prática”), escreve o seu projeto de “Paz Perpétua” (em 1795). Para Kant, as condições para a “Paz Perpétua” incluíam: a constituição de cada Estado deve ser uma república; o direito internacional deve basear-se numa federação de estados independentes; é necessário um mundo cosmopolita, com livre acesso de todos os homens a todos os países em termos de genuína hospitalidade universal. Efetivamente, o fundador do estado de direito e um dos percursores do estado social, entendia, já então, que “(…) Nenhum Estado se deve imiscuir pela força na constituição e no governo de outro Estado”, que “(…) A omissão de hostilidades não é ainda a garantia de paz”, que “(…) As democracias não fazem guerra uma às outras” e que “O direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres” (democráticos, e sob a égide do direito)[1]. Kant marcava, assim, a filosofia, no que respeita à necessidade da reflexão sobre o sonho da Paz. Curiosamente, Carl von Clausewitz, mais conhecido pela obra “Da Guerra”, foi um discípulo de Kant, que definiu a Guerra em oposição à Paz, como a continuação da política por outros meios, marcada pela violência, pelo jogo das probabilidades e do acaso e pela natureza subordinada da política. É ainda com Clausewitz que nasce a Estratégia como arte subordinada da política, na visão com que ainda hoje é entendida, como aplicável em tempo de Paz e de Guerra.
No início do século XX, Alfred Nobel, mais homem de ação do que de pensamento, deixou à humanidade um incentivo à Paz, traduzido num prémio anual para os defensores da Paz, o qual vem sendo entregue, em Oslo, desde 1901, a pessoas ou organizações que fizeram “a maior ou melhor ação pela fraternidade entre as nações, pela abolição e redução dos esforços de guerra e pela manutenção e promoção de tratados de paz". Um incentivo que infelizmente não se traduziu, nos anos seguintes, na prática dos líderes mundiais, com consequências nefastas para toda a humanidade.
Trespassados por duas guerras mundiais, os diferentes estrategos e estrategistas, mais ou menos realistas ou idealistas, foram confrontados pela razão de Kant, e deram origem à criação, em 1945, de uma organização internacional que tem por missão primária a imposição e a manutenção da Paz; a Organização das Nações Unidas.
Raymond Aron, que viveu intensamente o final da Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria da dissuasão nuclear, defendeu como legado, já no final da sua vida, que “(…) Podemos continuar a pensar, a sonhar ou ter esperança – à luz da ideia da Razão – numa sociedade humanizada“. Na sua obra “Paz e Guerra entre as Nações”, Aron defendeu três condições para que a História se tornasse menos violenta: “que as armas termonucleares não sejam empregues; que a distribuição equitativa dos recursos seja garantida; e que as raças, os povos, as nações, as crenças, se aceitem e se respeitem”[2]. Este tempo de Aron é o tempo em que aos Ministérios da Guerra se sucedem os da Defesa, e em que a Segurança e Defesa se sobrepõem à Paz. Com as teorias realistas das relações internacionais, centradas nas relações de poder entre os Estados, é a segurança e a defesa em contraponto às ameaças e riscos que assume o protagonismo da dialética da Guerra e Paz. As aspirações humanas passam a ser a segurança e a prosperidade e bem-estar, numa linguagem marcada pelas duas principais ideologias em confronto na Guerra Fria.
Antes das duas guerras mundiais, o discurso da igreja católica apostólica romana estava centrado na teologia da guerra justa. A propósito de Fátima, D. Manuel Linda destaca: “nem a teologia nem a pregação concediam grande relevo à paz enquanto tal: no seguimento de uma mentalidade secular, o alto pensamento eclesial preocupava-se mais com a delimitação da guerra e do ser cortejo de horrores do que com a consistência da paz enquanto tal. Era a temática da chamada «guerra justa». A paz não era objeto de estudo ou reflexão diretas. A guerra, sim. Embora por razões pedagogicamente válidas e doutrinalmente corretas, o centro de gravidade repousava na guerra e não na paz”[3]. A palavra da Paz só começou a dominar a da Guerra a partir do Concílio Vaticano II (com início em 1962), altura em que se começou inclusivamente a desenvolver uma doutrina da paz, que levaria à criação do dia 1 de janeiro como dia mundial da Paz (criado pelo Papa Paulo VI, em 1967, mas alargado a todos os credos e etnias).
Estas leituras e “receitas” da Paz, a par de muitas outras, são marcadas pela conjuntura, mas também e sobretudo pelo pensamento político, económico e social.
Mas a melhor e mais perene das “receitas” é indiscutivelmente a Carta das Nações Unidas, ratificada a 26 de junho de 1945 por meia centena de países, sob os escombros da II Guerra Mundial, e que consagrou os princípios da segurança coletiva, do direito internacional, dos direitos humanos e do desenvolvimento social.
Uma outra “receita” foi a “Agenda para a Paz” de Boutros Boutros Ghali (1922-2016)[4], publicada em 1992, a qual continha cinco grandes conceitos que deveriam guiar a atuação da ONU de forma a promover a segurança internacional: diplomacia preventiva, promoção da paz (peacemaking), manutenção da paz (peacekeeping), imposição da paz (peace enforcement) e construção da paz (peacebuilding). A inovação da proposta de Boutros-Ghali encontrava-se na prerrogativa de imposição de paz (peace enforcement), argumento que permitiria a intervenção da ONU em conflitos que fossem considerados ameaças à paz e à segurança internacional, sem a necessidade de autorização das partes. Esta postura chocou claramente com os três principios que regem as relações entre estados, e que continuam a ser; a soberania, a integridade territorial e a igualdade legal dos estados.
Mais recentemente e aquando da sua visita à sede das Nações Unidas, em Nova Iorque (25 de Setembro de 2015), o Papa Francisco reiterou que “(…) O Preâmbulo e o primeiro artigo da Carta das Nações Unidas indicam as bases da construção jurídica internacional: a paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações.” Efetivamente, a Carta das Nações Unidas continua a ser a “Agenda para a Paz no Mundo”, como sublinhou António Guterres, a 13 de Outubro de 2016, aquando da sua eleição como Secretário-Geral da ONU. E nessa Carta, os objetivos das Nações Unidas continuam a ser bastante claros e um verdadeiro sonho para a humanidade:
1) Manter a paz e a segurança internacionais (…);
2) Desenvolver relações de amizade entre as nações (…);
3) Realizar a cooperação internacional (…), promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião;
4) Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.
Mas, entre a Guerra e a Paz, existe todo um espetro crescentemente complexo (entre a guerra absoluta e a paz absoluta), que varia em função do grau de intensidade do emprego da violência. Neste espetro da guerra, a crise ocupa um espaço privilegiado para a prevenção e resolução dos conflitos por parte da ONU, área onde deve continuar a investir em prol da manutenção da Paz.
Acreditamos que com medidas de cooperação, de reciprocidade e sobretudo com grande empenhamento na mediação dos conflitos, estaremos bem mais próximos da Paz, afinal o objetivo teleológico do cidadão, dos estados e da Humanidade.
Pensar a Paz, no final de 2016, implica um olhar sobre o novo Mundo, caracterizado pela imprevisibilidade, pela volatilidade e pelas desigualdades (que aumentam a distância entre governados e governantes), e que continua a ter nos EUA “a potência global”, com capacidade de intervenção global, sem a qual não se podem resolver os grandes problemas do sistema político internacional, mas com a qual também não se resolvem muitos dos grandes conflitos.
Uma caracterização muito genérica do sistema político internacional leva-nos a destacar outros dois atores com peso estratégico significativo, casos da Rússia e da China (com os EUA perfazem os três maiores exportadores mundiais de armamento!), os quais constituem os principais oponentes à hegemonia norte americana, numa altura em que a Europa e países como o Reino Unido, a França ou a Alemanha estão envoltos, com algum caráter de perenidade, numa crise financeira, que também é política e de valores.
Assiste-se, ainda, à deslocalização do centro de gravidade do poder mundial do Atlântico para o Pacífico (geoeconomia), por razões essencialmente económicas e financeiras, determinadas essencialmente pelo crescimento económico da China e da Índia.
Convive-se, neste novo Mundo globalizado, com os novos “Aceleradores da Mudança” (como a evolução demográfica, a globalização, os recursos limitados, as mudanças climáticas, o uso de novas tecnologias, etc.), os quais são determinantes na construção do futuro, enquanto pressupostos de cenários mais ou menos favoráveis à sustentabilidade do planeta ou à Paz mundial.
Em qualquer dos cenários, assistimos ao domínio das Ameaças Globais (como o terrorismo transnacional, o crime organizado transnacional ou as armas de destruição maciça…) e dos Riscos Globais (como o aquecimento global, as pandemias ou os refugiados…), ambos com elevada periculosidade e “ultraterritorialidade”.
Com estes indicadores caracterizadores do novo Mundo, crescentemente interdependente, onde não existem guerras mas conflitos, e onde muitos atores não são identificáveis, como as pessoas coletivas não estaduais, temos consciência que o Mundo mudou, em muito pouco tempo.
Mas também temos consciência de que o poder das circunstâncias, de Sam Sommers ou de Adriano Moreira, pode determinar o futuro próximo, podendo alterar caminhos, casos da evolução do poder crescente na Rússia, na China, na Turquia, dos Radicais como o ISIS, ou das consequências locais, regionais e globais dos refugiados. Assim, torna-se imperioso o desenvolvimento de ações locais, regionais e globais no sentido do combate às ameaças globais e aos riscos globais. A comunidade internacional tem-se unido nessa luta nos momentos mais críticos, casos dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque, ou de 13 de Novembro de 2015, em Paris, mas os interesses dos estados sobrepõem-se a qualquer tipo de entendimento quando a visão da Paz tem vários caminhos. São os casos dos movimentos migratórios do Sul para o Norte do Mediterrâneo, da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, ou da guerra na Síria, situações em que os interesses dos estados continuam a determinar as opções políticas em cada momento. E as opções estão dependentes das relações de poder, que podem contemplar as necessárias e mais adequadas (por vezes inesperadas) alianças. É o realismo no seu melhor!
Na prática e com raras exceções, a noção de Guerra em oposição à de Paz é hoje vista de modo diferente, num espetro da guerra onde tem lugar privilegiado a crise. E isso afeta indubitavelmente as perceções dos cidadãos e dos políticos que os representam. Quando falamos de terrorismo transnacional, de crime organizado transnacional, de armas de destruição global, de aquecimento global, de refugiados, ou de radicais islâmicos, temos uma comunidade que fala a uma só voz no que de prejudicial estas ameaças trazem à estabilidade mundial. Apesar desta constatação, quando falamos nas soluções para combater as diferentes ameaças, os interesses dos estados sobrepõem-se ao bem comum e global, pois os valores (dos direitos do homem, do estado de direito, da liberdade, da democracia, etc.) passam a ter diferentes leituras. É assim, cada vez mais clara a necessidade do desenvolvimento de políticas de prevenção coletivas e de novas respostas multilaterais.
Neste novo Mundo, afinal quem pode garantir o entendimento global e a paz?
Todos nós, cidadãos do Mundo. Desde o nível local, ao regional e ao global. Com ações concretas, apesar das diferenças.
Independentemente de situações menos positivas, temos assistido ao crescendo sustentado das “Ameaças Globais”, mas simultaneamente ao crescendo de “Ações Globais”, numa luta assumida pelo pressuposto da “sustentabilidade futura do Planeta”.
Temos assistido, ainda, a um maior empenhamento e integração de Políticas e de “Estratégias Mundiais”, desde as questões do aquecimento global, à busca da sustentabilidade, passando pela luta contra os radicais islâmicos e o terrorismo transnacional.
Convivemos também com mais e melhor segurança humana (que induz a legítima ingerência, fazendo primar a proteção das populações em detrimento dos axiomas da soberania tradicional), com mais segurança global (que tem as suas origens na comissão Palme, de 1982, e que constitui o assumir do declínio da influência do Estado, face às ameaças não militares da segurança) e muito especialmente com uma maior cultura da Paz Kantiana, assente nos valores da liberdade, da democracia, do estado de direito e dos direitos humanos. A maioria das operações desenvolvidas pelos soldados da Paz são essencialmente enquadradas por missões de respostas a crises, no sentido da manutenção da Paz e de modo a que as crises não degenerem em guerras.
Na prática, e apesar das exceções, temos assistido a um maior empenhamento da comunidade internacional, numa visão de Thomas Schelling em que “o empenhamento é fulcral nas promessas e nas ameaças, nas negociações, na dissuasão e no controlo dos armamentos, nas relações contratuais”[5]. E esse empenhamento tem sido também desenvolvido ao nível da ONU que, como refere Adriano Moreira, “deve ser mais forte e com as suas capacidades de governação fortalecidas, e com as suas fontes de informação capacitadas, para que os meios pedidos e necessários possam conseguir responder com maior segurança e desenvolvimento sustentado”[6]. Entre os melhores e mais recentes exemplos (sob a liderança de Ban Ki-moon) estão o Acordo de Paris sobre a Mudança Climática de 2015 e os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, fixados na cimeira da ONU de 2015, e que inclui uma agenda até 2030, que contém um novo modelo global para acabar com a pobreza, promover a prosperidade e o bem-estar de todos, proteger o ambiente e combater as alterações climáticas.
A ONU, que tem assumido, legitimamente, um papel de manutenção da Paz mundial, apesar dos constrangimentos inerentes à organização e funcionamento do Conselho de Segurança, continua a ser “a solução” para o entendimento global e para a Paz. Por sua vez, a Assembleia Geral, que representa de igual modo todos os países (193) e cidadãos do Mundo, tem emitido sucessivas recomendações, que vão ao encontro da visão Kantiana de um Mundo de Paz. Por outro lado, e de acordo com o Artigo 99º da Carta, o Secretário-geral, ao poder chamar a atenção do Conselho de Segurança para qualquer assunto que, em sua opinião, possa ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais, tem também um papel importante, muito para além do mero mediador.
Mas o novo Mundo é hoje mais exigente na construção da Paz em função da ausência de consensos no Conselho de Segurança, relativamente aos principais conflitos e guerras, na Síria, na Ucrânia, nas Coreias, no Iraque ou no Afeganistão. O esforço tem de ser sobretudo multilateral, com o empenhamento de toda a comunidade internacional, devidamente mediada pelo Secretário-geral das Nações Unidas enquanto baluarte do entendimento global.
Afinal, quem pode garantir o entendimento global e a paz somos todos nós, local, regionalmente ou globalmente sustentados pela ONU. E este sonho de Paz, construído sobre os escombros da má memória de duas Guerras Mundiais, mas plasmado na Carta das Nações Unidas, só pode ter lugar com o empenhamento de todos e de cada um de nós, mas também de todos e de cada um dos 193 Estados que fazem parte integrante das Nações Unidas.
Como atrás fizemos referência, os riscos de criar uma “Agenda para a Paz” neste primeiro quartel do século XXI são enormes, como constatou Boutros Boutos Ghali, em 1992, enquanto Secretário-geral das Nações Unidas.
Como o primado dos interesses continua a determinar as soluções dos diferentes conflitos, por vezes com atores mascarados, há que ser realista para sustentar o idealismo de uma ONU que deve constituir uma “bússola moral”.
António Guterres, com uma experiência de uma dezena de anos nas Nações Unidas, como alto-comissário para os refugiados, teve a particularidade de enfrentar um novo mecanismo de eleição do Secretário-geral, que o levou a construir um programa vencedor (paper de duas mil palavras no qual expôs a sua visão para o futuro da ONU). Da leitura que fizemos desse programa (daquele que viria a ser o nono Secretário-geral da ONU), cruzada com os diferentes discursos que vem proferindo, descortinámos “Um Compromisso para a Paz” da ONU, claramente adaptado para enfrentar as ameaças e os desafios do século XXI, a saber:
– A Carta das Nações Unidas como a melhor “Agenda para a Paz”;
– O Secretário-geral da ONU como um “empenhado” mediador dos conflitos;
– A Dignidade Humana como “o pressuposto de todas as negociações e decisões”;
– A Diversidade (religiosa, política, social, étnica, etc.) como um fator de união local, regional e global;
– A permanente abordagem holística dos três pilares da ONU (humanitário, desenvolvimento e manutenção da paz);
– A melhoria da gestão interna da ONU e dos mecanismos de prevenção;
– A Transparência e a Responsabilização dos servidores das Nações Unidas;
– A Paz indissociável do desenvolvimento sustentável e dos direitos humanos;
– A Guerra como o estado em que todas as partes perdem.
Pacificar o mundo não é tarefa fácil, porque “não há paz sem desenvolvimento e não há desenvolvimento sem paz”. Assim, entendemos que o baluarte do entendimento global e da Paz continuará a ser a ONU, independentemente do novo paradigma da segurança mundial. Os desafios que António Guterres vai encontrar como Secretário-geral são enormes, não só ao nível humanitário, de desenvolvimento e da manutenção da paz, mas também no que concerne aos mecanismos de funcionamento (reforma) da própria ONU. Acreditamos que será um promotor e um mediador empenhado na busca de uma cooperação internacional que vai beneficiar todos os atores envolvidos, tendo como lema as palavras de Mahatma Gandhi: “Não existe um caminho para a Paz. A Paz é o caminho.”
AMARAL, Diogo Freitas do (2012). História do Pensamento Político Ocidental. Coimbra: Almedina.
ARON, Raymond. (1986). Paz e Guerra entre as Nações. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
BORGES, João Vieira (2013). O Terrorismo Transnacional e o planeamento estratégico de segurança nacional dos EUA. Porto: Fronteira do Caos.
BORGES, João Vieira & RODRIGUES, Teresa Ferreira (2016) (coord. e co-autor). Ameaças e Riscos Transnacionais no novo Mundo Global. Porto: Academia Militar, IPRI e Fronteira do Caos.
BOUTROS-Ghali, Boutros. (1992). Agenda para a Paz, ONU.
CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS. Diário da República I Série A, n.º 117/91, mediante o aviso n.º 66/91, de 22 de Maio de 1991.
CLAUSEWITZ, Carl Von. (1997). Da Guerra. Mem Martins: Publicações Europa-América.
KANT, Immanuel. (2008). À Paz Perpétua, L&PM Pocket.
LINDA, D. Manuel in C. AZEVEDO e L. CRISTIANO (Coord.) (2007). Enciclopédia de Fátima. Estoril: Principia, 395-402.
MAQUIAVEL, Nicolau. (2000). O príncipe. Mem Martins: Publicações Europa-América.
MOREIRA, Adriano. (2016). Futuro com memória: lições da vida e da História. Lisboa: Clube do Autor.
SANTOS, Loureiro dos. (2012). Forças Armadas em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
SCHELLING, Thomas C. (2007). Estratégia de Empenhamento e outros ensaios. Porto: Fronteira do Caos Editores.
STIGLITZ, Joseph E & KALDOR Mary. (2015). Em Busca da Segurança. Lisboa: Bertrand Editora.
SUN TZU (1994). A Arte da Guerra. Mem Martins: Publicações Europa-América.
TEIXEIRA, Nuno Severiano & ALMEIDA, João Marques de & GASPAR, Carlos (Coord.). (2007). Raymond Aron: A Paz e a Guerra no Século XXI. Lisboa: Edições Cosmos e IDN.
* Texto suporte da comunicação apresentada pelo autor no Colóquio Nacional de Encerramento do Ano Internacional do Entendimento Global, que teve lugar na Academia de Ciências de Lisboa, no dia 14 de dezembro de 2016. O autor agradece os comentários e sugestões de D. Manuel Linda (Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança) e do Coronel Lemos Pires (Comandante do Corpo de Alunos da Academia Militar).
[1] AMARAL, Diogo Freitas do (2012). História do Pensamento Político Ocidental. Coimbra: Almedina, p. 307.
[2] TEIXEIRA, Nuno Severiano & ALMEIDA, João Marques de & GASPAR, Carlos (Coord.). (2007). Raymond Aron: A Paz e a Guerra no Século XXI. Lisboa: Edições Cosmos e IDN, p. 49.
[3] Linda, D. Manuel, in C. AZEVEDO e L. CRISTIANO (Coord.) – Enciclopédia de Fátima. Estoril: Principia, 2007, pp. 395-402.
[4] Foi político e diplomata egípcio e Secretário-geral da ONU, entre 1992 e 1996 (período posterior ao fim da guerra fria, mas também relativo à guerra do golfo). Não seria eleito para um segundo mandato em face da oposição manifestada pelos EUA. É importante relembrar que, em 1993, cerca de 80000 “capacetes azuis” fiscalizavam a paz em 17 operações das Nações Unidas, atingindo assim o auge na aplicação do sistema de segurança coletiva, acentuado pelo sucesso da coligação internacional que expulsou o Iraque do Koweit.
[5] SCHELLING, Thomas C. (2007). Estratégia de Empenhamento e outros ensaios. Porto: Fronteira do Caos Editores, p. 7.
[6] Diário de Notícias, 29 de Março de 2011.
Vogal da Direção da Revista Militar. Presidente da Comissão Portuguesa de História Militar.