Nº 2581/2582 - Fevereiro/Março 2017
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
As Tecnologias de Informação e Comunicação e as Organizações Inteligentes
Contra-almirante
António Gameiro Marques

Recentemente, numa conferência em que estive, presenciei o Sr. Yves Morieux, da Boston Consulting Group, proferir uma intervenção intitulada SMART SIMPLICITY que me inquietou e me deixou a pensar como poderíamos aplicar alguns daqueles conceitos no contexto da forma como o cidadão e o estado se relacionam. Partilho, assim, com o leitor, o resultado dessa reflexão.

Apesar do incremento inaudito dos avanços tecnológicos, consubstanciado no incrível número de smartphones, de portáteis e de pessoas com acesso à Internet, a produtividade no Mundo Ocidental em geral tem vindo a decrescer (Fig.1), a qualidade de vida das pessoas piorou e continuamos a despender horas a fio nos nossos empregos e nas viagens de e para eles.

A forma como o cidadão e o estado se relacionam não se alterou significativamente ou pelo menos de forma homogénea, ainda que existam casos positivos de modernidade e inovação no panorama nacional. Se pensarmos bem, ao incrível avanço tecnológico de que somos espectadores e mesmo atores, não corresponde uma alteração da mesma ordem de grandeza da nossa forma de interagir com as entidades públicas ou, se somos trabalhadores do estado, no modo como fazemos as coisas nas nossas próprias organizações.

E porque é que será assim? Julgo que por várias razões. Sem querer ser exaustivo, apresentaria algumas:

– Em primeiro lugar, a forma como as nossas organizações estão arquitetadas e funcionam assenta em paradigmas anacrónicos, tendo sido concebidas para responder a um Mundo muito mais simples do que o atual e a desafios bem diferentes daqueles com que hoje nos deparamos. Funcionam normalmente em silos, cooperam muito pouco, não são flexíveis e dificilmente se adaptam à dinâmica e crescente complexidade do nosso Mundo, que está constantemente em mudança acelerada. Diria, assim, que enfermam de um certo grau de obsolescência que importa encarar com realismo e coragem, no sentido de se encontrarem as devidas soluções. Para fazer face à complexidade, os dirigentes implementam estruturas matriciais de todos os tipos, criam manuais de procedimentos, concebem elaborados mecanismos de controlo de gestão e muitas outras medidas que acrescentam complexidade à já existente, em vez de se tentar identificar o âmago da questão e começar por aí numa nova jornada. Por outras palavras, combate-se a complexidade com mais complexidade;

 

Figura 1 – Crise da produtividade.

– A segunda razão está relacionada com a forma como nos comportamos e como usamos a tecnologia para lidar com a complexidade do Mundo em que vivemos. De facto, utiliza-mo-la, na maioria das vezes, para tornar o que é complexo mais digerível e aparentemente sob controlo, acabando, muitas das vezes, por automatizar a confusão e a entropia, porque, ao invés de repensarmos as coisas com uma aproximação inovadora e “fora da caixa”, optamos por não correr riscos, cingindo-nos apenas a desmaterializar o status quo. Não inovamos o suficiente e não fomentamos uma atitude de irreverência construtiva. Ou seja, usa-se a tecnologia para manter ou mesmo aumentar a complexidade, pensando que, ao utilizar a primeira, estamos a mitigar a segunda. Na verdade, a tecnologia só induz melhorias significativas se simultaneamente forem introduzidas as devidas alterações organizacionais e processuais (Fig. 2).

Do ponto de vista dos cidadãos, apesar de haver alguns casos de sucesso em Portugal como é o caso do Portal das Finanças, do Portal do Utente, das Lojas e do Cartão do Cidadão, do Passaporte Eletrónico e do Mapa do Cidadão, a forma como o estado e o cidadão se relacionam ainda assenta em modelos relativamente antigos, em que a nossa presença física é frequentemente requerida e em que o formalismo e a rigidez do procedimento estatuído impedem que se possa conceber e operacionalizar uma outra forma de se atingir o mesmo estado final, tendo como enfoque o simplificar a vida às pessoas através do derrube de barreiras supérfluas entre o cidadão e o estado.

Figura 2 – Condições para o incremento da eficiência.

A pergunta que fica a pairar será a seguinte: como tornar esta interação mais simples? Como simplificar a relação entre o cidadão e o estado?

Se nos quisermos efetivamente modernizar, parece-me que temos que pensar e fazer as coisas de uma maneira diferente e estou convicto de que existem algumas ideias chave que nos podem ajudar a encontrar um caminho para a solução, em que as TIC poderão ser as respetivas peças potenciadoras.

Julgo estar consolidado cientificamente que existe uma forte correlação entre a capacidade de raciocínio de um ser e o número de sinapses existentes no seu cérebro. Estas múltiplas ligações dão-nos a capacidade para pensar mais rápido, de relacionar informação de índole diversa, de a transformar e lhe acrescentar valor. Podemos assim dizer que, quanto mais os neurónios cooperam mais o seu hospedeiro produz e menos energia gasta para resolver um problema. No reino animal também assim é: pequenos e grandes animais cooperam para fazerem face às adversidades e para concretizarem tarefas que sozinhos não conseguiriam realizar. A bordo dos navios pouco ou nada se consegue fazer sozinho. E os exércitos são um exemplo antigo, exímio e extremo de cooperação.

Sem cooperação gasta-se mais tempo e são precisas mais pessoas para realizar a mesma tarefa e não se cria conhecimento, porque este só verdadeiramente se consegue produzir quando há cooperação através da partilha da informação no seio de grupos com interesses congéneres. Se houver cooperação, libertam-se mais recursos que podem ser úteis para se fazerem outras atividades (Fig. 3). A cooperação produz um efeito sinérgico que não pode ser desperdiçado. As aves migratórias, que voam longas distâncias em bando, aprenderam há muito tempo essa lição.

Figura 3 – Relação entre a cooperação e o consumo de recursos.

A pergunta que fica então é a seguinte: se somos seres sociais, porque é que somos tão relutantes em cooperar? Porque não fomos educados para tal e porque as estruturas onde trabalhamos não foram desenhadas para que isso aconteça. De uma forma geral, as pessoas são punidas quando falham, quando o que deveria ser penalizado era a falha em cooperar e a falha em pedir ajuda. Devemos, por isso, fomentar uma cultura de cooperação e de partilha, quer dentro das organizações quer interorganizações. A Rede de Serviços Partilhados TIC da Administração Pública, o RSPTIC, recentemente criado, é disso um exemplo e já está a criar as necessárias condições para poder vir a dar frutos num futuro.

Por outro lado, é lugar-comum afirmar que nunca tivemos uma sociedade tão preparada academicamente. Quer nas organizações quer globalmente na sociedade portuguesa, existem muitas pessoas com boa formação académica, com capacidade para observar e com ideias muito válidas que, se devidamente capturadas, podem resultar em soluções brilhantes que contribuem para que a relação do estado com a sociedade seja mais simples e mais eficiente.

Assim, e por analogia simplista com os neurónios e com as sinapses, se conseguirmos colocar as pessoas, que em geral hoje têm mais habilitações académicas, a cooperar quer dentro das organizações onde prestam serviço, quer com o estado enquanto cidadãos, tornaremos a nossa sociedade e o nosso Estado como um todo mais resiliente e sobretudo mais inteligente.

O que poderá ser feito para atingir esse objetivo antes de tentar resolver o assunto com as TIC?

Do ponto de vista das entidades estatais, em vez de tornar as organizações mais complexas, com mais divisões e com mais silos, devemos esforçar-nos por conceber estruturas mais simples onde:

a)  Através da remoção de barreiras organizacionais e de regras supérfluas, seja possível compreender e conhecer os seus colaboradores e as respetivas capacidades intrínsecas, independentemente da posição hierárquica que ocupam;

b)  As lideranças criem as condições, e fomentem a cooperação entre as pessoas;

c)  Se dê capacidade e autoridade a quem tem mais talento e vontade para agir no âmbito da respetiva estrutura, independentemente da sua categoria, por outras palavras, se dê relevância à gestão dos talentos na organização;

d)  Se crie uma cultura de accountability que permita a quem tomou as decisões ter visibilidade sobre os resultados alcançados (para o bem e para o menos bem);

e)  Se promova a inovação e a irreverência construtiva;

f)  Se fomente a criação de objetivos partilhados, premiando quem efetivamente coopera.

Do ponto de vista do relacionamento dos cidadãos com o estado, devemos criar mecanismos para identificar o que é que os primeiros esperam que o segundo lhes ofereça quanto à forma como ambos devem interagir. O que pretendem os mais velhos, i.e., os Baby Boomers? É certamente diferente do que os das gerações X, Y e Z necessitam, uma vez que as pessoas destas duas últimas são quase nativos digitais. E as empresas? Elas são as verdadeiras criadoras de riqueza num país e, por isso, têm obrigatoriamente de ser envolvidas neste processo. Tenho defendido que, em vez de ser só a comunidade TIC do estado a pensar o que se deve fazer neste âmbito, devemos perguntar a todos estes grupos de cidadãos do nosso País, envolvendo-os no processo. Estou consciente de que não é fácil, mas também aqui as TIC podem ser um facilitador do processo. Com o nível de conhecimento hoje existente na nossa sociedade, é muito mais profícuo suscitar uma resposta através de perguntas adequadamente elaboradas, do que optar por uma abordagem meramente declarativa. E quem responde participa ativamente e por isso envolve-se, passando a fazer parte da solução.

De acordo com a Gartner, no mundo digital em que vivemos e em que todos estamos ligados, os governos dependem cada vez mais da utilização da informação que cada um gera para fazer face às mais diversas situações com que hoje em dia as sociedades se deparam. Neste contexto, a mobilidade, a informação, a computação em nuvem e as redes sociais constituem os quatro grandes pilares das sociedades digitais. Por outro lado, a mesma consultora preconiza que as dez maiores tendências, no que concerne os processos de e-GOV, são as visíveis na Fig. 4, a que correspondem outras tantas tecnologias também visíveis na imagem. Onde nos situamos em Portugal neste contexto?

Figura 4 – As 10 maiores tendências de eGov (Gartner).

A questão que deveremos tentar responder, e que não é trivial, é como poderemos efetivamente simplificar as nossas organizações e fomentar uma efetiva cooperação da sociedade e de todos os que trabalham nas entidades estatais, de modo a modernizar a forma como servimos os cidadãos deste nosso País com as TIC que melhor se adequam ao propósito.

Neste processo, estaremos confrontados com um dilema: ou continuar num modo de baixa incerteza e baixíssima performance, teimando em continuar a fazer quase tudo como se fez até aqui, ainda que recorrendo a novas tecnologias; ou optar por uma atitude de maior risco e previsivelmente de maior flexibilidade e agilidade, mas também com maior potencial para acrescentar valor. E uma das coisas que deve mover um dirigente, seja ele público ou privado, deve ser o acrescentar valor. Se assim não for, então o dirigente diminui valor à organização e a organização poderá também diminuir o dirigente ao seu efetivo.

Teremos de fazer reset a alguns dos nossos dogmas mais vetustos e pensar de forma diferente, conciliando, nas nossas organizações, os previsíveis com os irreverentes, e garantindo assim que ambos, potenciados pelas TIC, contribuem para que o estado e os cidadãos interajam de forma mais moderna, mais simples e, por isso, mais eficiente.

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2017-11-14
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia