A Guarda Nacional Republicana (GNR) é a herdeira histórica da Guarda Real da Polícia (GRP), criada em 10 de Dezembro de 1801, primeiro corpo militar com funções de polícia em Portugal.
Em Julho de 1834 e após o triunfo dos liberais, a GRP foi extinta e transformada na Guarda Municipal (GM) que, por sua vez, com a queda da Monarquia, em 5 de Outubro de 1910, também foi dissolvida e substituída pela Guarda Republicana, um corpo transitório que subsistiu apenas até 3 de Maio de 1911, data da constituição da Guarda com a actual designação.
No decurso da sua já longa história, quatro características fundamentais se têm mantido e constituído aquilo a que se poderá chamar o seu ADN, a saber: a natureza militar; a dupla dependência dos responsáveis políticos pela Administração Interna (Reino; Interior) e pela Defesa Nacional (Guerra; Exército), respectivamente e consoante a época; a condição militar dos seus membros e a polivalência de funções, militares e policiais.
Mas, para além destas quatro características estruturantes, existe uma outra que, embora decorrente de algumas daquelas, constitui uma especificidade que vem marcando de forma indelével a vida da Guarda. Refiro-me às suas estreitas relações com o Exército, as quais me levam mesmo a dizer que, na generalidade, existem mais semelhanças entre a GNR e o Exército do que entre este último e os outros Ramos.
Aquelas relações, embora desde sempre muito próximas, têm sofrido altos e baixos ao longo da história, com momentos de franca e leal cooperação e outros de incompreensões mútuas, desconfiança e competição.
Mercê de inúmeras alterações que, ao longo do processo histórico, quer o Exército quer, sobretudo, a Guarda, foram conhecendo, que perspectivas se colocam para o futuro relacionamento entre ambas as instituições, reflexão que este texto pretende exprimir.
“Sendo muito conveniente, não só para a segurança e tranquilidade da cidade de Lisboa, Capital dos meus vastos domínios, mas para que na mesma, a ordem da polícia receba uma vasta consolidação, que à imitação das outras grandes capitais se estabeleça um Corpo permanente, o qual vigie na conservação da ordem e tranquilidade pública, e obedeça, no que toca à disciplina militar, ao General das Armas da Província, e no que toca ao exercício das suas funções, ao Intendente Geral da Polícia:
Hei por bem criar uma Guarda Real da Polícia de Lisboa de pé e de cavalo, para vigiar na cidade de Lisboa, e para guardar pela forma e maneira que se regula no Plano, que baixa com este, assinado pelo Ministro e Conselheiro de Estado, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, a quem fui servido encarregar de levar à minha Real Presença os Negócios concernentes à minha Inspecção da Polícia da Corte e Reino; o qual Plano em toda a sua extensão e particularidades se entenderá formar parte deste Decreto. Assim o mando participar ao Conselheiro de Estado, ministro e Secretário de Negócios da Guerra, e ao Conselho de Guerra, para fazer executar em cada Repartição pela parte que lhe toca.
O mesmo ministro e Conselheiro de Estado D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Presidente do meu Real Erário o tenha assim entendido e faça executarmos. Palácio de Queluz, em 10 de Dezembro de 1801. – Com a rubrica do Príncipe Regente”.
E ainda no mesmo diploma:
“A Guarda Real da Polícia fará parte do Corpo do Exército e considerar-se-á como tropa de linha, o seu comandante ficará subordinado ao General das Armas da Província e ao Intendente-Geral da Polícia no respeitante a todas as ordens e requisições de forças, dando a ambos parte dos acontecimentos do dia e noite antecedente, bem como às Secretarias de Estado da Guerra e da Justiça, às quais enviará relatórios diários”.
A Guarda, nas atribuições militares, seguia as ordens gerais prescritas nas leis, regulamentos e ordens do dia do Exército, enquanto nas da polícia e segurança pública observava as instruções constantes do Plano da Criação, aspectos que, com outras designações e adaptações a cada época, se mantiveram praticamente sem grandes diferenças ao longo do tempo.
“Tomando em consideração a urgente necessidade de se prover à segurança da Capital que não pode cabalmente ser guardada pelas rondas civis, que pesam sobre os seus habitantes que aliás, pagam contribuições para aquele importantíssimo serviço; nem pelas patrulhas militares que deterioram a disciplina dos Corpos: hei por bem, em nome da Rainha, criar nos seguintes artigos a Guarda Municipal de Lisboa para manter o sossego público, afiançando a segurança da Cidade, sem ameaçar a sua liberdade” (Decreto s/n.º, de 3 de Julho de 1834).
“São extintas as Guardas Municipais de Lisboa e do Porto”.
“É nomeada uma comissão composta do general de brigada do quadro da reserva Ernesto da Encarnação Ribeiro e dos cidadãos Manuel Maria Coelho e Manuel de Brito Camacho, para estudar a organização de um Corpo de Segurança Pública para todo o país que terá a denominação de guarda nacional republicana”.
“Enquanto se não organiza a guarda nacional republicana, é creada em Lisboa e Porto, a guarda republicana, para velar pela segurança e liberdade dos cidadãos, guardar os edifícios públicos (…)” (Decreto s/n.º, de 12 de Outubro de 1910).
“É organizado um corpo especial de tropas para velar pela segurança pública, manutenção da ordem e protecção das propriedades públicas e particulares em todo o país, que se denominará Guarda Nacional Republicana”.
“A Guarda Nacional Republicana, como parte integrante das forças militares da Republica, tem deveres e direitos idênticos aos que competem aos oficiais e praças de pré do exército activo” (Decreto s/n.º, de 3 de Maio de 1911).
O preâmbulo do Decreto n.º 8064, de 1922, é bem elucidativo da relação da GNR com o Exército: “(…)Pelo espírito que presidiu a esta reorganização já que pela letra do diploma que a Guarda Nacional Republicana não é um organismo militar à parte, mas que constitui como que um prolongamento do Exército(…)”.
E que no seu artigo 4º refere: “O pessoal da Guarda Nacional Republicana como parte integrante das forças militares da República, tem deveres e direitos idênticos aos que competem aos oficiais e praças de pré do exército activo”.
Situação posteriormente corroborada em muitos outros diplomas de que destaco, a título de exemplo, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 33905, de 2 de Setembro de 1944: “Não contém o presente diploma uma reorganização profunda da Guarda Nacional Republicana, mas simples adaptação da sua estrutura e condições de actuação à melhoria dos serviços, em correspondência com as necessidades do momento. Prolongamento do exército, não poderia o organismo militar votado à causa da segurança e ordem pública manter-se alheado ao espírito inovador das notáveis reformas publicadas nos últimos anos pelo Ministério da Guerra”.
Já na vigência da III República, a nova lei orgânica da GNR, publicada em 1983, reitera a sua pertença à Instituição Militar: “A Guarda Nacional Republicana é um corpo especial de tropas que faz parte das forças militares (…)”.
Como podemos constatar pela leitura dos excertos de legislação apresentados, a pertença da Guarda à Instituição Militar, bem como o seu muito próximo relacionamento com o Exército, com o qual muitas vezes se confundiu, foi sempre uma constante.
A estes factos há que acrescer a dupla dependência política do ministro da Guerra, do Exército ou da Defesa Nacional e do ministro do Reino, do Interior ou da Administração Interna, consoante a época, para além do seu comandante-geral ter sido sempre um oficial do Exército e do seu comando superior ser, desde sempre, constituído exclusivamente por oficiais generais do Exército.
Contudo, a partir de 19901, na sequência da entrada em vigor, em 1987, da Lei de Segurança Interna, que criou o termo “forças e serviços que exercem funções de segurança”2, foi alterada a definição da GNR deixando de a designar como um “Corpo Especial de Tropas que faz parte das forças militares”, passando a denominá-la como uma “força de segurança”, embora “constituída por militares organizados num corpo especial de tropas”.
Esta alteração da sua definição teve consequências cujas repercussões não se fizeram sentir de imediato, mas que, ao longo do tempo, foram fazendo o seu caminho no sentido do afastamento da Guarda da Instituição Militar e da aproximação, por vezes, mesmo confusão, com a Polícia de Segurança Pública (PSP), criando incerteza sobre a natureza da GNR e diversas derivas no seu tratamento.
O recrutamento para a Guarda foi originária e exclusivamente constituído por militares provenientes do Exército, primeiro sob requisição e voluntariado em regime de comissão de serviço e, posteriormente, mediante contrato, no caso dos oficiais de complemento e das praças, mantendo-se a comissão de serviço apenas para os oficiais dos quadros permanentes.
“A Guarda Real da Polícia, será formada pelos melhores soldados, escolhidos em todo o Exército, não só entre os mais robustos, firmes, solteiros, e até 30 anos de idade, por serem as funções a que são destinados mais penosas ainda, que as da Guerra, mas também de boa morigeração e conduta” (10 de Dezembro de 1801).
O Decreto de 6 de Junho de 1851 estabelece que o serviço dos oficiais da Guarda, quer de Lisboa quer do Porto, seja exclusivamente desempenhado por Oficiais do Exército, “não só como mais peritos da disciplina e administração, como também pela maior facilidade da sua substituição (…) segundo as conveniências públicas ou as dos próprios indivíduos (…)”.
Também a Portaria de 13 de Abril de 1852 vem determinar que só poderão ser alistados na Guarda Municipal as praças que tiverem servido no Exército.
“A tropa de linha compunha-se de mancebos provindos de quatro classes essenciais – voluntários, recrutados, substitutos e compelidos; na Guarda só ingressavam praças vindas de outros regimentos, de biografia limpa e aptidões conhecidas” (in Origens da Guarda Nacional Republicana, II Parte, a Guarda Municipal).
Já o Decreto que cria a Guarda Nacional Republicana, em 3 de Maio de 1911, no que se refere ao recrutamento, determina: “O serviço da Guarda Nacional Republicana será desempenhado por oficiais do exército e por praças de pré do exército e da armada”.
“Os oficiais do exército serão nomeados por mútuo acordo dos Ministros da Guerra e do Interior, a requisição deste, mediante proposta do comandante-geral”.
“O recrutamento das praças para o serviço da Guarda Nacional Republicana será feito por transferência das praças do efectivo do exército e da armada ou das reservas com instrução, as quais passarão para a Guarda em soldados de 2ª classe, qualquer que seja o posto que tiverem, quando saibam ler e escrever regularmente, satisfaçam às condições de bom comportamento e tenham a necessária robustez, mais de vinte e dois e menos de trinta e cinco anos de idade”.
“As praças que, por qualquer motivo, não convenham ao serviço da Guarda, serão imediatamente transferidas para o exército”.
E assim foi até 19833, ano em que, através do DL n.º 465/83, de 31 de Dezembro, são aprovados os primeiros estatutos dos oficiais, sargentos e praças da Guarda Nacional Republicana4.
Este facto constitui um marco para a história da GNR e, simultaneamente, para o seu relacionamento com o Exército, dado que, pela primeira vez, se institucionaliza um quadro permanente para os oficiais da GNR, situação que, à data, não foi pacificamente aceite por alguns sectores das Forças Armadas.
Assim, com a aprovação dos estatutos, acabam os regimes de contrato e altera-se a forma de prestação de serviço na Guarda que, de eventual, passa a permanente.
A partir desta data, são criados os quadros permanentes da GNR que, no caso dos oficiais, limita o acesso ao posto de tenente-coronel. Os oficiais de complemento do Exército que, mediante contrato, prestavam serviço na Guarda, ingressam automaticamente no recém-criado quadro permanente (QP/GNR).
Na decorrência da aprovação dos estatutos, encetam-se, em 1984, os cursos de formação de oficiais que, inicialmente decorrem no seio da própria Guarda e no Instituto Superior Militar (ISM) e, a partir do ano lectivo 1991/92, passam a ser integralmente ministrados na Academia Militar (AM)5.
Os oficiais dos quadros permanentes do Exército continuam em comissão de serviço, como acontecia até à criação do QP/GNR, alargando-se, no entanto, aos outros ramos a possibilidade da prestação de serviço na GNR, mas, até hoje, apenas um oficial que não do Exército (Força Aérea) prestou serviço na Guarda.
Uma nota relevante da ligação da GNR ao Exército é a que respeita ao facto de, ao longo dos anos, e independentemente das alterações legislativas ocorridas, os oficiais do Exército em serviço na Guarda sempre terem sido promovidos pelo Exército, embora ocupando vagas orgânicas do quadro da GNR, ao mesmo tempo que se lhes aplicava o estatuto dos militares da GNR em concorrência com o EMFAR, em tudo o que aquele não contrariasse este.
Em 2009, com a aprovação de um novo estatuto, limita-se à situação de “activo” a possibilidade de militares das Forças Armadas (FFAA) prestarem serviço na GNR.
Em síntese, e apesar da criação dos quadros permanentes da GNR, o recrutamento continuou a efectuar-se exclusivamente nas FFAA, ou seja, para ingresso nos quadros da GNR continuou a ser condição necessária a prévia passagem pelas FFAA, mantendo-se, em simultâneo, a prestação de serviço por parte de oficiais do QP/Exército.
Assim, e até ao ano 20006, todos os militares recrutados para a Guarda passaram previamente pelas fileiras das FFAA.
Naquela data, com o argumento da diminuição do universo de recrutamento, consequência do fim do serviço militar obrigatório, alterou-se o requisito da obrigatoriedade de só poderem concorrer aos cursos de praças da GNR aqueles que tivesse previamente servido nas FFAA, mantendo-se, no entanto, uma quota (30%) preferencial para os candidatos que tivessem prestado serviço militar como contratados por um período mínimo de dois anos.
O fim da exclusividade das candidaturas à GNR por parte de ex-militares não foi consensual e inseriu-se num conjunto de outras medidas que, à data, e segundo algumas leituras, se inseriram numa política de afastamento da GNR da Instituição Militar.
Sobre este aspecto houve dissonâncias entre o comando da Guarda e o comando das FFAA que se estenderam aos titulares das pastas da administração interna e defesa nacional, tendo a legislação relativa ao recrutamento para a GNR sofrido três7 alterações de sentido oposto, no período que mediou entre 2000 e 2006, o que é sintomático da delicadeza da situação e do ziguezaguear político relativamente à natureza da GNR e ao seu relacionamento com as FFAA.
A formação dos militares da Guarda sempre teve por base a formação militar.
Por um lado, como antes referido, para o ingresso na Guarda, os candidatos tinham previamente de ter servido nas FFAA, donde a formação inicial ser sempre a militar, e, por outro lado, mesmo já no seio da Guarda, a instrução militar voltava a ser uma componente importante da formação geral não só aquando do ingresso, mas também ao longo da carreira.
No que tange aos oficiais e até à criação do seu QP, a formação era exclusivamente a militar obtida no Exército a que todos pertenciam, seja do quadro permanente seja de complemento.
Após a criação do QP/GNR, a formação dos novos oficiais processou-se distintamente em duas fases.
A primeira, de 1984 a 1991/92, na qual só eram admitidos a concurso os oficiais de complemento das FFAA mediante determinadas condições, aos quais era exigido aproveitamento num Curso de Formação de Oficiais, de duração de dois anos lectivos, sendo um ministrado no Centro de Instrução da GNR e o outro no Instituto Superior Militar, local onde, para além dos cursos destinados a sargentos para acesso a oficial, também eram ministrados cursos destinados a oficiais do complemento da Força Aérea com vista ao seu ingresso no QP.
A segunda fase, que se iniciou no ano lectivo 1991/92, a formação era ministrada na Academia Militar em tudo semelhante aos cursos destinados aos oficiais do QP/Exército, embora com um curriculum adaptado à missão da GNR, tendo para o efeito sido alterado o estatuto da Academia Militar.
“A Academia Militar fica habilitada a conferir o grau de licenciatura em Ciências Militares aos oficiais dos quadros permanentes da Guarda Nacional Republicana e da Guarda Fiscal” (Art.º 1º do DL n.º 173/91, de 11 de Maio).
Também os cursos de progressão na carreira, o Curso de Promoção a Capitão (CPC) e o Curso de Promoção a Oficial Superior (CPOS), foram integralmente ministrados nas Escolas Práticas das Armas respectivas e no Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), depois IESM e agora Instituto Universitário Militar (IUM), em conjunto com os oficiais do Exército.
A partir de 1991, o CPC começou a ser dividido em duas partes, uma primeira, ministrada nas Escolas Práticas do Exército e a segunda na Escola Prática da Guarda, até que, desde 1996, passou a ser totalmente ministrado na GNR.
Já o curso de estado-maior conjunto, ministrado no IUM, passou a contar com oficiais da Guarda, desde 2010.
No que diz respeito à categoria de sargentos, a ligação também foi sempre muito estreita com o Exército, uma vez que, até início dos anos de 1970, existiam concursos para sargentos realizados nos mesmos moldes do Exército e, a partir daquela data, o acesso é feito através de um curso, o Curso de Formação de Sargentos (CFS).
“Considerando que a carreira dos sargentos da Guarda Nacional Republicana se deve reger por normas idênticas às que regulam a carreira dos sargentos dos quadros permanentes do Exército e que foi reestruturada pelo DL n.º 920/76, de 31 de Dezembro”;
“Considerando que os sargentos do referido corpo de tropas têm por imperativo legal, deveres e direitos idênticos aos que competem aos sargentos do Exército (Art.º 4º do Decreto de 3 de Maio de 1911) (…) ” (DL n.º 116/78, de 30 de Maio).
Os Cursos de Promoção a Sargento-Ajudante (CPSA) e a Sargento-Chefe (CPSC) foram frequentados na Escola de Sargentos do Exército pelos sargentos da GNR em igualdade de circunstâncias com os camaradas do Exército, até ao ano de 2001, data em que, por despacho do General Comandante Geral da GNR (GCG/GNR), o CPSC foi suspenso e depois extinto e o CPSA passou a ser ministrado na Escola Prática da Guarda.
Até meados dos anos de 1970, verificava-se ainda uma situação curiosa que era a dos sargentos da GNR que, após o curso da Escola Central de Sargentos e uma vez promovidos a sargentos-ajudantes, quando acediam posteriormente à carreira de oficiais, tinham obrigatoriamente que ser abatidos aos quadros da GNR e aumentados ao quadro do Serviço Geral do Exército, embora alguns tenham continuado a prestar serviço na Guarda, mas agora em comissão de serviço.
O Regulamento Geral do Serviço da Guarda, no seu artigo 142º, prescreve:
“1. As unidades de infantaria e de cavalaria da Guarda articulam-se para o combate, respectivamente, em subunidades de atiradores e de reconhecimento, a cavalo e auto”.
“2. Para possibilitar o disposto no número anterior, todos os seus militares recebem instrução táctica da respectiva arma, nos cursos de formação, promoção, nos estágios e na instrução de quadros e tropas”.
Não obstante todo um percurso em que a formação militar esteve bem patente, no período de 1995/98, o governo criou um Conselho Consultivo para a Formação das Forças e Serviços de Segurança e, através de diversas resoluções do Conselho de Ministros8, tomou medidas de “harmonização e uniformização” da formação entre a GNR e a PSP, eliminando ou reduzindo as disciplinas militares dos programas de formação dos sargentos e das praças da GNR, situação que, com a mudança de ciclo político, foi sendo revertida.
Desde sempre se aplicaram aos militares da Guarda os regimes disciplinares e criminais castrenses.
“As Guardas Municipais de Lisboa e Porto fazem parte do Exército em tudo o que respeita à disciplina e promoções (…)” (Decreto de 24 de Dezembro de 1868).
“São aplicáveis as prescrições do Código de Justiça Militar e Regulamento de Disciplina do Exército” (Art.º 1º do regulamento para execução do Decreto de 12 de Outubro de 1910).
“O regulamento disciplinar do exército é aplicável a todos os indivíduos que compõem a Guarda Nacional Republicana” (Art.º 42º do Decreto de 3 de Maio de 1911).
“Ao militar da Guarda são aplicáveis os Código de Justiça Militar (CJM), o Regulamento de Disciplina Militar (RDM), o Regulamento de Continências e Honras Militares (RCHM) e o Regulamento da Medalha Militar (RMM), com os ajustamentos adequados às características estruturais deste corpo militar e constantes dos respectivos diplomas legais” (Art.º 5º do DL n.º 265/93, de 31 de Julho).
Contudo, a aplicação destes regimes aos militares da Guarda sofreu um primeiro revés quando, em 19999, e sob o pretexto de que o RDM estava desactualizado, o governo decidiu aprovar um novo regulamento disciplinar exclusivo para os militares da GNR, mantendo-se a aplicação do RDM apenas para o tempo de guerra. Este foi, sem dúvida, um corte profundo da ligação da GNR às Forças Armadas.
Em 2002/3, e não fora uma mudança de governo, também o novo Código de Justiça Militar de 2003 deixaria de se aplicar aos militares da Guarda.
Continuaram, porém, a aplicar-se aos militares da GNR o RCHM e o Regulamento da Medalha Militar e das Medalhas Comemorativas das Forças Armadas (RMMMCFA).
De referir que, no âmbito deste último Regulamento, a competência para a atribuição das medalhas militares aos militares da GNR, para além do PR, do MDN e do CEMGFA, é do CEME, com excepção das medalhas comemorativas, em que a atribuição pode caber ao Comandante-Geral.
Até à criação da Guarda Nacional Republicana e à sua expansão por todo o território nacional, era o Exército que desempenhava as missões de policiamento rural e de manutenção da ordem pública fora das cidades de Lisboa e do Porto, embora, mesmo após a criação da GNR, o Exército continuasse, até finais dos anos de 1970, a deter a missão de reforçar ou substituir as forças da Guarda em caso de necessidade.
De igual modo, até finais do séc. XIX, cabia ao Exército a missão de vigilância e de segurança do Palácio das Cortes, situação que apenas se alterou em 1870, aquando da ratificação do tratado com a Grã-Bretanha, consequência do ultimato inglês, tendo, a partir daquela ocasião, o Exército sido substituído pela Guarda Municipal, iniciando-se com esta transferência de atribuições uma nova missão para a Guarda que ainda hoje se mantém.
No período após a I Grande Guerra, a GNR viu aumentados os seus efectivos e foi reforçada com artilharia, ao mesmo tempo que se transformava num verdadeiro poder do Estado, chegando a efectuar diversos pronunciamentos que derrubaram e colocaram governos. O seu Chefe do Estado-Maior (Coronel Liberato Pinto) foi mesmo nomeado chefe do Governo, em 28 de Novembro de 1920. Neste período, a Guarda funcionava como um segundo exército, com cerca de 20.000 militares.
A concentração de oficiais radicais na GNR afastou-os do Exército (1919/21).
“Os anos que medeiam entre 1919 e 1922 vão ser caracterizados pelo engrandecimento da GNR, efeito indirecto e transitório do medo que a influência cada vez maior do Exército suscitava entre os elementos preponderantes do Partido Democrático”.
“O fenómeno das Juntas Militares, esse sim, irá continuar gerando grande desconfiança entre os governantes republicanos que irão incentivar o aumento da capacidade de intervenção da GNR para se defenderem dessas movimentações militares”.
“A 13 de maio de 1922, suprimem-se por decreto as tropas de artilharia e de metralhadoras pesadas, reduzem-se os efectivos da cavalaria e de infantaria pertencentes à Guarda Republicana” (José Medeiros Ferreira, in “O Comportamento Político dos Militares”).
“Daí em diante, só o Exército passava a dispor de força e de prestígio” (A.H. de Oliveira Marques, in “História da I República Portuguesa”).
Terminado este conturbado período que caracterizou a I República, o relacionamento entre o Exército e a Guarda passou a ser de normalidade, não só porque a GNR era enquadrada por oficiais do Exército, mas sobretudo porque deixou de se afirmar como uma força de contrapoder ao Exército.
A sua definição como prolongamento do Exército, embora não signifique fazer parte integrante daquele e nem sequer tenha o mesmo alcance que, em Itália, correspondia à “Arma dei Carabinieri”, porque não existia nenhum suporte legal que permitisse afirmar que a Guarda era uma componente do Exército, na realidade assim era tratada e considerada, situação que se manteve mesmo após as alterações produzidas em 1990 e de que constitui exemplo, entre muitos outros, o facto de, ainda hoje, a atribuição de algumas condecorações a militares da GNR ser precedida de parecer do Conselho Superior de Disciplina do Exército e caber ao CEME a respectiva concessão.
Fechado este parênteses e retomando a linha de raciocínio que enfatiza o bom relacionamento entre a GNR e o Exército, há todavia um facto que, depois do período conturbado da I República, marca de novo alguma desconfiança entre as duas instituições. Refiro-me ao golpe militar de 25 de Abril de 1974, onde, teoricamente e por um curto lapso de tempo, estiveram em campos opostos. Para alguns oficiais das FFAA mais conotados com a esquerda, a GNR representava as “forças da repressão” e por esse motivo era vista com algum preconceito.
Passado o denominado período revolucionário e consolidada a democracia, as missões das Forças Armadas e da GNR foram constitucionalmente separadas, o que, em princípio, deveria ser sinónimo de um relacionamento sem desconfiança ou competição. Mas tal nem sempre sucedeu, constituindo os casos mais recentes a participação de uma força da GNR na guerra do Iraque, em 2003; a proposta de revisão de estatuto dos militares da GNR, em 2015, em total dissonância com o EMFAR; ou a atribuição aos militares da GNR de um conjunto de suplementos remuneratórios10 contraditórios com o dever de disponibilidade dos militares, representando alguns exemplos de desencontro e de desacordo das Forças Armadas.
Porém, e já no sentido oposto, a formação de unidades do Exército em técnicas de manutenção de ordem pública, o tratamento discriminatório dos militares da GNR relativamente aos das FFAA em matéria de promoções, contagens de tempo de serviço11 e apoios sociais12 e, sobretudo, o não reconhecimento, embora de forma subliminar, da plena condição militar dos militares da Guarda por parte de alguns sectores das FFAA, constituem pontos de discordância agora expressos por parte GNR.
Outros sinais de desconfiança ou de desencontro entre as FFAA e a GNR podemos encontrá-los, por exemplo, na não participação da GNR no desfile militar do dia de Portugal, situação para a qual não se encontra qualquer explicação13 e que parece indiciar uma intenção das FFAA de afastamento da GNR.
Síntese conclusiva
Mais do que os episódios mencionados e outros que, na maioria das vezes, não passam de uma circunstancial dificuldade de relacionamento entre os chefes militares e o comandante-geral da GNR, ou mesmo da competição entre os titulares das pastas da administração interna e da defesa nacional, a questão de fundo deriva, sobretudo, de uma deficiente percepção da complementaridade que sempre existiu entre ambas as instituições e que advém, em grande medida, de dois factos que, até esta data, não têm sido suficientemente considerados e que poderão estar na génese dos desencontros e dissonâncias citados.
São eles a criação, em 1983, do quadro permanente de oficiais da GNR e a alteração, em 1990, do seu posicionamento institucional por via da inclusão na nova categoria de “forças de segurança”, embora, como já anteriormente referido, os mesmos só muito posteriormente àquelas datas e de forma progressiva se foram fazendo sentir.
Com aqueles factos inicia-se a autonomização da GNR relativamente ao Exército, mas, enquanto a criação, em 1983, do QP/GNR representou um passo prudente e nunca indiciador de ruptura com a Instituição Militar (o novo QP apenas permitia o acesso ao posto de tenente-coronel, preconizando, simultaneamente, que os quadros orgânicos da Guarda fossem ocupados em determinadas percentagens por oficiais do Exército e, sobretudo, preservava a condição militar e a ligação às FFAA, como se pode ler no preâmbulo do DL n.º 465/83, de 31 de Dezembro), o mesmo não se poderá afirmar relativamente ao outro facto. Senão, vejamos.
“3 – a) Considerando a necessidade de superar a actual situação de impasse que vem minando a funcionalidade da Guarda, qual seja a da impossibilidade de as Forças Armadas responderem, em tempo útil, às necessidades do dito corpo em oficiais, designadamente subalternos e capitães, o que se fará sem quebra da tradicional ligação às Forças Armadas, cujo vínculo se reforça, criando-se, em percentagem harmónica, o quadro permanente de oficiais da Guarda, em ordem à satisfação das referidas necessidades.
b) Este quadro far-se-á à custa do pessoal de complemento das Forças Armadas e dos sargentos da Guarda que não optarem pelo quadro do serviço geral do Exército, processando-se a sua formação, em prioridade, nas unidades e estabelecimentos das Forças Armadas ou, no mínimo, com o seu apoio, e mediante estágios e cursos complementares nas unidades e órgãos da Guarda, no que respeita à sua formação específica.
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6 – Tendo, por fim, em consideração os pareceres emitidos pelas chefias militares, que, face à natureza do corpo militar desta Guarda, o Governo entendeu ouvir previamente, a fim de assegurar a harmonia entre estes estatutos e os estatutos idênticos aplicáveis às Forças Armadas” (DL n.º 465/83, de 31 de Dezembro).
Já a alteração da definição da GNR, em 1990, com a sua inclusão no conjunto das forças de segurança, ao contrário do que sucedeu com a criação do primeiro estatuto, em 1983, constituiu, pelo menos formalmente, um corte com a sua matriz e uma mudança no relacionamento com as FFAA, designadamente com o Exército.
Ao invés do que sucedeu em Itália com a “Arma dei Carabinieri”, que, em meados dos anos de 1990, também se autonomizou do Exército e evoluiu de 1ª Arma para um Ramo das Forças Armadas, no caso da GNR a mudança
foi no sentido do afastamento, não só do Exército, mas também das Forças Armadas.
De um “Corpo Especial de Tropas que faz parte das forças militares”, viu-se transformada numa “força de segurança”, embora constituída por militares.
“A Guarda Nacional Republicana é um corpo especial de tropas que faz parte das forças militares14, votada à causa da segurança e manutenção da ordem pública, bem como à protecção e defesa das populações e da propriedade pública, privada e cooperativa”. (Art.º 1º do DL n.º 333/85, de 14 de Julho).
“A Guarda Nacional Republicana, designada abreviadamente por GNR, é uma força de segurança constituída por militares organizados num corpo especial de tropas e tem por atribuições defender a legalidade democrática, garantir a ordem e a tranquilidade públicas, no respeito pelos direitos dos cidadãos, e exercer as funções de órgão de polícia criminal nos termos estabelecidos na lei processual penal” (n.º 1 do Art.º 1º do DL n.º 39/90, de 3 de Fevereiro).
Não obstante o legislador, com a alteração da definição da GNR de 1990, não pretendesse eximi-la à sua natureza militar, como se pode comprovar com o próprio texto do articulado, ao aditar que a Guarda é “constituída por militares organizados num corpo especial de tropas”, a verdade é que o facto de retirar da definição a sua pertença às forças militares e a considerar no conjunto das “forças de segurança”, sem que tivesse sido suficientemente acautelado o verdadeiro alcance desta alteração e as implicações que daí adviriam, criou um equívoco de que, ainda hoje, não nos conseguimos libertar.
Não deixa de ser verdade também que, na primeira revisão da lei orgânica da GNR após aquela alteração, o legislador tentou minimizar as dúvidas causadas com a exclusão da Guarda do conjunto das forças militares, clarificando o seu posicionamento de uma forma inclusiva nos dois sistemas de forças, o militar e o de segurança, como se pode ler no preâmbulo do DL n.º 231/93, de 26 de Junho:
“A publicação da Lei de Segurança Interna e as alterações no âmbito do direito processual penal, entre outras disposições legislativas inovadoras, determinaram um posicionamento mais definido da Guarda Nacional Republicana no conjunto das forças militares e das forças e serviços de segurança”.
Assim, e não obstante a correcção antes referida, a nova definição da Guarda como “força de segurança”, embora posteriormente adjectivada de “natureza militar” (só em 2007), não cuidou de preservar suficientemente aquela natureza, o que, para além das lacunas criadas, tem gerado ambiguidades e desencontros.
Não é por, de um momento para o outro, se alterar uma definição que a história, a cultura organizacional, os princípios e os valores se alteram.
A GNR sempre foi concebida e reconhecida pelos seus membros e por terceiros como sendo um corpo militar e toda a sua praxis diária, o léxico utilizado e as regras de organização e funcionamento são militares, razão porque a alteração operada através da nova definição não tem correspondência com a realidade da instituição e tem sido geradora de alguma confusão.
Embora na lei se preconize, desde sempre, a dupla dependência do MDN e do MAI, neste momento aquela é mais formal do que real e a prática tem demonstrado que a solução encontrada pelo legislador, porque não atendeu à alteração das circunstâncias, não responde eficazmente ao novo enquadramento legislativo da GNR, o mesmo se diga relativamente às relações institucionais com o CEMGFA.
E se a dupla dependência não era determinante quando a GNR era considerada como um prolongamento do Exército ou pertença às forças militares, a partir do momento em que o seu enquadramento legal se alterou, a mesma assume uma especial relevância que torna mais premente uma alteração legislativa que a reforce, tornando-a efectiva, sob pena de não passar de uma mera norma programática de pouca ou nenhuma valia.
A este propósito, não devemos esquecer que, desde que se começou a ter consciência que o enquadramento institucional da GNR passou a ser diferente, as relações da Guarda com o MDN e com as Forças Armadas tem oscilado, muito de acordo com o entendimento particular dos titulares das pastas da defesa nacional e da administração interna sobre qual o posicionamento que a Guarda deve ter no sistema de forças, assim como do melhor ou menos bom relacionamento entre ambos, por um lado, e entre o comandante-geral e o Chefe do Estado-Maior do Exército, por outro.
O facto de a GNR ser único corpo militar que não faz parte das FFAA e dos seus militares serem igualmente os únicos militares que não dependem da tutela política do MDN, constitui um constrangimento para a própria Guarda e para os seus militares e uma dificuldade para os titulares da pasta da Administração Interna, sob cuja tutela existem diversos órgãos, forças e serviços (bombeiros, polícias, sistema eleitoral), mas todos de natureza distinta da GNR, porque todos civis, e nem sempre o MAI tem tido a sensibilidade suficiente para atender a esta diferença, como aliás ficou bem patente aquando da última proposta de revisão do Estatuto dos Militares da GNR (Agosto de 2015).
Num período, que já não se advinha muito longo, em que o previsível acesso dos oficiais da GNR formados na Academia Militar ao corpo de oficiais generais será uma realidade, e onde a passagem do testemunho do comando da instituição se iniciará, desejavelmente de forma progressiva e gradual, importa reflectir sobre dois aspectos que se afiguram cruciais para que esta mudança não constitua uma ruptura e seja possível preservar a natureza militar da GNR e, consequentemente, o seu bom relacionamento com as FFAA e, em particular, com o Exército.
O primeiro respeita à forma como se processará o acesso dos oficiais da Guarda ao corpo de oficiais generais e qual irá ser o seu real estatuto, enquanto o segundo é relativo às medidas que haverá que tomar para não deixar confundir esta questão com o abandono da natureza militar da Instituição.
É que, ao contrário do que alguns pensam e outros desejam, a GNR não tem a natureza militar pelo facto de no seu efectivo contar com oficiais das Forças Armadas, nem por o seu comando superior ser ocupado por oficiais do Exército.
A Guarda tem a natureza militar por si própria, porque a lei a reconhece e porque, estruturalmente, é um corpo militar e não porque o seu comando superior seja constituído por oficiais do Exército, porque, se assim fosse, a GNR seria uma força militarizada e não um corpo militar, da mesma forma que os seus membros não seriam militares, mas antes agentes militarizados.
Acresce que os próprios elementos que compõem a GNR são, desde sempre, reconhecidamente militares, o que a Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar veio dar consistência jurídica em 1989.
Neste entendimento, as promoções dos futuros oficiais generais da Guarda, que, relembre-se, foram formados na Academia Militar e no IUM, deverão obedecer aos mesmos requisitos e critérios que são exigidos aos futuros oficiais generais das FFAA, pois só desta forma serão respeitados e reconhecidos pelos seus pares e pela sociedade em geral.
Subsiste, neste âmbito, um ponto fraco para o qual importa encontrar uma solução. Refiro-me ao facto do escrutínio dos futuros oficiais generais das FFAA recair sobre dois órgãos colegiais, primeiro o conselho superior do ramo a que o oficial pertence e, depois, o conselho de chefes de estado-maior (CCEM), para, finalmente, a proposta ser aprovada pelo MDN, ao passo que na GNR, por não fazer parte das Forças Armadas, a situação prevista ser diferente e neste âmbito as promoções a oficial general e de oficiais generais serem objecto de um menor escrutínio, restringido à intervenção do conselho superior da Guarda e à aprovação do MAI.
E, tal como sucede com as FFAA, também para a GNR está previsto que o documento oficial de promoção revista a forma de decreto presidencial.
Assim sendo, para ultrapassar a questão suscitada, uma possível solução poderia passar pelo alargamento das atribuições do CCEM às promoções para e dos oficiais generais da GNR, em igualdade de circunstâncias com os das Forças Armadas, situação em que a título excepcional, o GCG/GNR participaria no CCEM, com direitos idênticos aos dos restantes membros.
O segundo aspecto a que importa dar uma especial atenção é o que se prende com a ligação da GNR à Instituição Militar, após as alterações no seu comando superior, de maneira que não signifiquem uma ruptura.
Seria, pois, verdadeiramente paradoxal que a opção efectuada em 1991 na formação dos oficiais da Guarda na Academia Militar, passados alguns anos, conduzisse à perda da natureza militar da GNR.
Como anteriormente referido, a substituição do comando da Guarda não pode corresponder à alteração da natureza militar da GNR, nem a um afastamento das FFAA em geral e do Exército em particular. Mas para que tal não suceda, são precisas algumas medidas e uma tomada de consciência dos decisores políticos e, sobretudo, das chefias militares.
Neste âmbito e preservada que esteja a continuação da formação dos oficiais da GNR nas escolas militares, importaria que, nessas escolas, os alunos destinados à GNR, no caso da Academia Militar (AM), e da GNR, no caso do IUM, se considerassem da “casa” e não meros “hóspedes”, sob pena de, no futuro, assumirem uma atitude de rejeição relativamente às mesmas.
Para tanto, seria conveniente que a nível dos diferentes órgãos de comando e direcção da AM e do IUM, a presença de oficiais da GNR passasse a ser uma realidade em total paralelismo com os dos ramos, até porque, percentualmente, o número de alunos destinados à Guarda ou da Guarda a frequentar essas escolas militares é bastante significativo.
A título de lembrança, recordemos que, até à criação da Academia da Força Aérea, os alunos a ela destinados eram formados na AM, onde organicamente existia um 2º comandante, brigadeiro da Força Aérea.
Mas não é só na área da formação que a ligação FFAA/GNR pode e deve ser mais aprofundada, também no âmbito da justiça militar e à semelhança do que sucede com os juízes militares e os assessores militares do ministério público, onde a GNR está representada em igualdade com os ramos das FFAA, igualmente na Polícia Judiciária Militar (PJM) a participação da Guarda, pode ser alargada, âmbito, aliás, onde a GNR, por força da sua qualidade de órgão de polícia criminal e da experiência quotidiana dos seus militares nesta área, pode constituir uma manifesta mais-valia para a PJM.
Igualmente, nos apoios sociais ou na assistência na doença se deveriam aproximar os serviços, dado serem os únicos destinados a militares, independentemente das diferentes tutelas a que as FFAA e a GNR estão adstritas.
Para além dos laços históricos e culturais, das relações de camaradagem entre os militares, particularmente entre os oficiais, afigura-se relevante para o sistema de segurança e defesa que a complementaridade entre as FFAA e a GNR se mantenha e se aprofunde.
E se, para as FFAA, esta relação permite um alargamento da sua área de influência e do espectro da intervenção militar a âmbitos que normalmente lhe estão interditos em situação de normalidade, para a GNR significa uma questão de sobrevivência.
Contudo, para que estas ilações assumam um efeito real, é indispensável que as FFAA deixem de olhar a GNR com “reserva mental” e reconheçam plenamente a condição militar aos militares da Guarda. Se assim suceder, é sobre os principais diplomas legais enquadradores das relações GNR com as FFAA que deverá recair toda a atenção.
Começando pela dupla dependência da GNR, condição sine qua non para manter a sua natureza militar, dado não ser possível, nem desejável, manter no sistema uma força de natureza militar sem qualquer dependência do responsável político pela defesa nacional e do mais elevado chefe militar (CEMGFA). De facto, tal implicaria a existência de um “2º exército” fora de controlo, situação indesejável e perigosa, sem paralelo em nenhum país democrático. Deverá ser, pois, este o ponto de partida para que se possam ultrapassar os desajustamentos detectados.
Esta é, sem dúvida, uma questão crucial, porque não se encontra suficientemente esclarecida, na medida em que o legislador não acompanhou, neste particular, a evolução do sistema nos últimos anos e não ajustou as dependências políticas e militares da Guarda, respectivamente do MDN e do CEMGFA, a par da natural dependência do MAI.
Tal omissão vem constituindo um constrangimento a uma maior interligação entre as FFAA e a GNR, dificultando inclusive o disposto na lei orgânica da GNR, em ordem a “cumprir, no âmbito da execução da política de defesa nacional e em cooperação com as Forças Armadas, as missões militares que lhe forem cometidas”.
A resolução deste problema poderia passar, entre outros, por um aditamento15 ao art.º 14º da Lei da Defesa Nacional (LDN), normativo que refere as competências do MDN e que, em parte, se harmonizaria com o que estatui a própria Lei Orgânica da GNR (LOGNR) e, por outro lado, plasmaria na lei o que na realidade sucede.
Assim, aquele normativo passaria a contar com mais as seguintes disposições:
«Propor, em conjunto com o Primeiro-Ministro e com o ministro responsável pela área da administração interna, ouvido o Conselho de Chefes de Estado-Maior, a nomeação do comandante-geral da Guarda Nacional Republicana.»
«Coordenar com o membro do governo responsável pela área da administração interna, as matérias de âmbito estatutário militar com relevância para os militares da Guarda Nacional Republicana.»
«Aprovar com os membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração interna, sob proposta do comandante-geral da Guarda Nacional Republicana, o número de lugares disponíveis para a admissão aos cursos de formação de oficiais.
O primeiro segmento proposto não é mais do que a transposição para a LDN de um normativo da LOGNR. Veja-se o artigo 23.º, n.º 1:
«O comandante-geral é um tenente-general nomeado por despacho conjunto do Primeiro-Ministro, do ministro da tutela e do membro do Governo responsável pela área da defesa nacional, ouvido o Conselho de Chefes de Estado-Maior se a nomeação recair em oficial general das Forças Armadas.»
O terceiro também decorre de um preceito constante no Estatuto dos Militares da Guarda. Veja-se o artigo 223.º, n.º 3, do referido estatuto:
«O número de lugares disponíveis para admissão aos cursos de formação para ingresso nos quadros da Guarda é fixado por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da defesa nacional e da administração interna, sob proposta do comandante-geral, tendo em conta: (…)»
E, por último, mas não menos importante, uma norma que, independentemente do melhor ou menos bom relacionamento entre os titulares das pastas da defesa nacional e da administração interna, obrigue a um entendimento em matéria estatutária, por forma a evitar tratamentos diferenciados entre militares das FFAA e da GNR, aos quais se aplica, relembre-se, o mesmo estatuto da condição militar.
A este propósito, cito dois exemplos bem actuais. O primeiro diz respeito ao projecto de estatutos dos militares da GNR que, em Agosto de 2015, depois de sancionados pela tutela, não foram aprovados, entre outras razões, porque na sua substância não respeitavam a condição militar dos militares da Guarda e não estavam harmonizados com o EMFAR. Tudo teria sido diferente se existisse uma norma legal que obrigasse à coordenação prévia destas matérias entre os titulares das pastas da defesa nacional e da administração interna.
Mas, por outro lado, e apesar da não obrigatoriedade legal daquela coordenação, a publicação do DL n.º 214-F/2015, de 2 de Outubro, relativo à clarificação do regime transitório de reserva e reforma dos militares da GNR, ao ser assinado pelo ministro da defesa nacional, a par do titular da pasta da administração interna, é significativo e demonstrativo de que a realidade se impôs à própria lei.
Bom seria que este exemplo frutificasse e que, doravante, todos os assuntos relativos a estatutos de militares, independentemente de serem das FFAA ou da GNR, fossem coordenados entre o MDN e o MAI.
Uma nota para referir que a lei orgânica de 1993 preconizava a intervenção conjunta do MDN e de MAI para a aprovação dos regulamentos internos e de funcionamento da GNR16.
Por outro lado, o art.º 47º da LDN estipula uma restrição de direitos fundamentais aos militares da GNR, com a mesma extensão e sentido que a aplicada aos militares das FFAA, mas quanto a missões atribuídas no âmbito da defesa nacional ou ao preferencial relacionamento da GNR com as FFAA é completamente omisso, remetendo neste particular para o ambíguo conceito de “forças de segurança”, sem qualquer distinção entre a GNR e a PSP, desconsiderando totalmente as diferentes naturezas que caracterizam ambas as forças.
Igualmente a LOBOFA, que define as competências do CEMGFA, não está conforme com a LOGNR que estatui que “as forças da Guarda são colocadas na dependência operacional do CEMGFA, através do seu comandante-geral, nos casos previstos nas Leis de Defesa Nacional e das Forças Armadas e do estado de sítio e do estado de emergência”.
Mas mais, quando a GNR projecta forças para o exterior, a lei nada prevê quanto à dependência operacional destas relativamente ao CEMGFA, situação que tem sido tratada caso a caso, como que de forma envergonhada, quando o certo seria que a lei estipulasse esta dependência, sem margem para dúvidas ou equívocos.
Ainda quanto ao CEMGFA, seria conveniente pôr em letra de lei as relações da GNR com aquele chefe militar decorrentes da recente criação do IUM.
E, para concluir, mais um exemplo de como o legislador não cuidou de ajustar a natureza da Guarda ao seu novo enquadramento institucional.
Decorre do artigo 71º do Regulamento de Disciplina Militar, que se refere à competência disciplinar dos chefes de estado-maior dos ramos, que “(…) A competência disciplinar em relação a militares que se encontrem no exercício de funções em serviços ou organismos fora da estrutura das Forças Armadas pertence ao chefe de estado-maior do respectivo ramo”.
Em face deste preceito legal, como se pode compreender que o comandante-geral da GNR, que é um tenente-general do Exército, não possua competência disciplinar sobre os oficiais do Exército que prestam serviço na Guarda e que estão sob o seu comando, mas o tenha sobre todos os restantes militares da GNR? É no mínimo caricato e representa um outro exemplo de como as alterações efectuadas no enquadramento da GNR não acautelaram questões tão importantes como esta.
Branco, Major Carlos, Apontamentos da cadeira B-105, Organização das Forças e Serviços de Segurança, Academia Militar, 2000;
Branco, Carlos, Desafios à Segurança e à Defesa e os Corpos Militares de Polícia, Ed. Sílabo, 2000;
Branco, Carlos, Guarda Nacional Republicana, contradições e ambiguidades, Ed. Sílabo, 2010;
Cerezales, Diego Palacios, Portugal à Coronhada, Tinta-da-China, 2011;
Ferreira, José Medeiros, O Comportamento Político dos Militares, Forças Armadas e Regimes políticos em Portugal no Séc. XX, Ed. Estampa, 2001;
Marques, A.H. Oliveira, História da I Republica Portuguesa, Palas Ed., 1981;
Noronha, Eduardo de, Origens da Guarda Nacional Republicana, II parte, A Guarda Municipal, Ed. CGGNR, 1959;
Santos, António Pedro Ribeiro, O Estado e a Ordem Pública, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1999.
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1 XI Governo.
2 O entendimento das “forças e serviços de segurança”, numa perspectiva dicotómica com as Forças Armadas, representa uma visão ultrapassada que continua a considerar a defesa nacional e a segurança interna separadamente e em compartimentos estanques. Acresce que a criação do termo “forças e serviços de segurança” como se de uma entidade coerente e uniforme se tratasse, constitui um erro que vem gerando múltiplos equívocos, porque ao contrário das Forças Armadas que possuem um mesmo estatuto (EMFAR), um comando único (CEMGFA), a mesma natureza (militar) e uma só tutela política (MDN), as “forças e serviços de segurança” têm diversas naturezas, múltiplos comandos/direcções, estatutos diferentes e distintas tutelas, pelo que não podem ser tratadas como um todo.
3 Era Comandante-geral da GNR o Tenente-general Alípio Tomé Pinto.
4 A título de curiosidade, refira-se que o primeiro Estatuto dos Militares das Forças Armadas é de 1990.
5 Era Comandante-geral da GNR o Tenente-general Francisco Cabral Couto.
6 XIV Governo.
7 DL n.º 320-A/2000, de 15 de Dezembro; DL n.º 118/2004, de 21 de Maio; DL n.º 216/2006, de 30 de Outubro.
8 RCM n.ºs 5269/97 e 78/98 – XIII Governo.
9 Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro – XIV Governo.
10DL n.º 298/2009, de 14 Outubro.
11Desde de 2013 que aos militares da GNR não é aumentado o tempo de serviço.
12Os militares da GNR descontam 4% do seu vencimento (3,5%) ADMG e (0,5%) Serviços Sociais.
13Em todos os países onde existem forças do tipo da GNR, aquelas participam ao lado das FFAA no desfile militar do dia nacional. Recorde-se, por outro lado, que o dia das FFAA é o dia 24 de Junho, evocação da batalha de S. Mamede.
14Sublinhados do autor.
15Textos semelhantes aos propostos pelo comando da GNR, aquando da revisão da LDN e da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), em 2015, e que não mereceram acolhimento.
16“Por portaria conjunta dos MDN e MAI são aprovados o regulamento do serviço geral e os demais regulamentos necessários ao funcionamento dos órgãos que integram a estrutura da GNR” (Artº 102º, DL nº231/93, de 26 de Junho).
Possui a Licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa e Pós-Graduação em Estudos da Paz e da Guerra pela Universidade Autónoma de Lisboa.