Nº 2585/2586- Junho/Julho de 2017
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Hierarquia dos Comprometimentos – A relação do Comprometimento com a Pátria com outros focos do comprometimento em contexto militar
Tenente-coronel
Ana Paula da Silva Jorge
Prof. Doutor
José Luís Rocha Pereira do Nascimento

Introdução

A identidade da instituição militar tem vindo a ser afetada por uma crise de legitimidade, sobretudo nas sociedades ocidentais (Jesuíno, 1986). Um dos sintomas desta crise consiste na “«alienação do militar» entendendo-se como tal uma progressiva penetração social, uma maior continuidade entre organizações civis e organizações militares e portanto uma constante perda de identidade destas últimas” (Jesuíno, 1986, p. 116), sendo “a emergência de novos fatores culturais, incarnados sobretudo pelas gerações mais jovens” (Jesuíno, 1986, p. 116) uma das principais causas desta tendência.

Esta reflexão, feita na década oitenta, leva a supor que, três décadas depois, estar-se-ia perante uma completa perda da identidade militar e de uma indiferenciação parcial, ou até mesmo total, das instituições militares em relação às organizações civis. Contudo, hoje em dia, as instituições militares continuam a coexistir com as organizações civis e também os jovens continuam, voluntariamente, a servir o seu país como militares e a optar pela carreira castrense (Cistulli, Snyder, & Jacobs, 2012).

Por outro lado, Allen (2003) chamou a atenção para o enorme potencial das investigações em contexto militar que, no seu entender, são uma importante contribuição para a literatura científica, particularmente no que respeita ao comprometimento no local de trabalho, na medida em que permitem colmatar lacunas existentes no atual conhecimento. Tal, deve-se ao facto de, na opinião desta autora, os militares constituírem uma fonte de informação importante que deve ser explorada, não somente pela natureza diversa dos indivíduos (por exemplo, diferentes idades, especialidades, postos, raças e tipo de contrato formal) como, também, pela possibilidade de se estudarem amostras de grandes dimensões e estáveis, com características únicas, com as quais as organizações civis não conseguem rivalizar, permitindo, assim, a análise de questões complexas e que, até à data, têm recebido pouca atenção (Allen, 2003). Ainda segundo esta investigadora, também o processo de seleção, recrutamento, formação e treino, com especificidades muito próprias e pré-condições críticas (como, por exemplo, testes de desempenho físico), é extremamente raro noutras organizações e poderá constituir um fator importante nos estudos de comprometimento no local de trabalho. Esta investigadora sugere inclusivamente que trabalhos futuros, neste contexto específico, versem outros focos para além da organização, nomeadamente, a unidade, equipa e ocupação (Allen, 2003).

Existe ainda uma linha de investigação sugerida por Meyer, Stanley e Vandenberg (2013) que se prende com o estudo da interação de comprometimentos de múltiplas orientações ou focos numa perspetiva centrada na pessoa, indo ao encontro do já proposto anteriormente por Becker, Klein e Meyer (2009). No entanto, para além do Comprometimento com a Organização, outras formas de comprometimento têm sido pouco ou nada estudadas, assumindo uma maior relevância num contexto de crescentes alterações da natureza das diversas relações no e fora do local de trabalho (Meyer, 2009; Meyer, Allen, & Topolnytsky, 1998; Klein, 2013). Assim, “dependendo da situação, comprometimento com os objetivos, equipas, projetos, carreira, ou valores, podem ser talvez mais importantes para a organização e/ou os empregados” (Klein, 2013, p. 127).

Conforme Allen (2003) realçou, o contexto militar é um ambiente ideal para estudar outros focos do comprometimento devido às suas caraterísticas, nomeadamente, a ligação à pátria e à instituição militar (Lourenço, 2013), possivelmente mais do que à organização onde se presta serviço num dado momento. De facto, «a especificidade da função militar distingue os profissionais militares de todos os restantes profissionais da administração pública» (Santos, 2012, p. 25), particularmente, em termos dos «sacrifícios que lhes são exigidos e os riscos que podem correr, entre os quais o da própria vida, como pelos direitos que lhes são restringidos» (Santos, 2012, p. 25). Tal pode implicar a emergência de formas de comprometimento ainda não estudadas, bem como diferentes relações entre elas (Allen, 2003).

É nesta linha de pensamento que se posiciona o presente artigo, visto defender a coexistência de diferentes focos de comprometimento no contexto militar, designadamente, a pátria, a instituição militar, a organização militar (unidade militar onde se presta serviço num dado momento) e a própria profissão militar. Este artigo defende ainda que estes comprometimentos, embora simultâneos, apresentam diferentes intensidades, assim como uma relação hierárquica entre eles.

Não tendo sido encontradas evidências na literatura de existirem estudos que apontem a pátria como um foco do comprometimento, considera-se que este artigo é inovador, na medida em que introduz um novo constructo – o Comprometimento com a Pátria – e apresenta, pela primeira vez, um modelo conceptual da relação hierárquica entre o Comprometimento com a Pátria, o Comprometimento com a Instituição, o Comprometimento com a Organização e o Comprometimento com a Profissão de militar – a Hierarquia dos Comprometimentos.

Assumindo-se que, devido à natureza emocional do comprometimento, este não irá terminar com a desvinculação à instituição militar, pretende-se apresentar também o Comprometimento Afetivo Residual, na linha do que foi definido por Breitsohl e Ruhle (2013), embora com algumas adaptações decorrentes das especificidades do contexto militar.

 

1. O comprometimento – enquadramento teórico

O comprometimento nasceu da sociologia e da gestão. Porém, ao longo dos anos, a definição de comprometimento (“commitment”) tem tido diferentes interpretações, sendo vários os autores que têm conduzido as suas investigações, no sentido de encontrarem uma definição mais consensual, apesar de tal ainda não ter sido conseguido (Klein, Molloy, & Cooper, 2009).

Numa primeira conceptualização, o comprometimento era entendido como um comportamento. Becker (1960), através do conceito “side-bet”, define o comprometimento como o resultado da integração dos interesses materiais existentes na relação entre o indivíduo e a organização, significando que a permanência de um indivíduo numa organização estava dependente do saldo entre o que ganharia se ficasse e o que perderia se saísse. Esta é uma relação baseada no retorno e, por isso, de natureza calculativa.

Posteriormente, numa segunda conceptualização, o comprometimento passou a ser entendido como sendo uma atitude, indicando a existência de uma tendência comportamental (Mowday, Porter, & Steers, 1982; Mowday, Steers, & Porter, 1979). Nesta conceptualização, o constructo comprometimento é unidimensional, de natureza afetiva e, nesse sentido, é a intensidade da relação entre o indíviduo e a organização que determina a aceitação dos objetivos, a identificação com os valores, o empenho pessoal e a vontade de permanecer na organização. No entanto, é de realçar que os próprios autores encontraram em estudos fatoriais uma bidimensionalidade do constructo (Mowday, Porter, & Steers, 1982), pelo que esta hipótese não foi excluída.

Uma terceira conceptualização surge com Meyer e Allen (1991) que, após uma revisão da literatura, agregaram mais uma componente ao constructo comprometimento, o dever moral. Desta forma, o comprometimento é percebido como um “bond” (Klein, et al., 2009), ou seja, uma força de vinculação de determinada natureza que “a) caracteriza a relação do empregado com a organização; e b) tem implicações na decisão de continuar na organização” (Meyer e Allen, 1991, p. 67). Assim, à componente calculativa e afetiva, junta-se uma componente normativa, que espelha o facto de um indivíduo estar reconhecido para com a organização.

Identificadas as três componentes do comprometimento, surge o modelo tridimensional que representa o comprometimento não como uma atitude, mas como uma força de vinculação que tem por base afetos, cálculos (retorno) e perceção de dever (dever moral). Meyer e Allen (1991) apresentaram o Modelo das Três-Componentes (“The Three Component Model”) do comprometimento, que compreende as componentes afetiva (“affective”), calculativa (“continuance”) e normativa (“normative”). Estas, não sendo mutuamente exclusivas, podem existir em simultâneo e apresentar diferentes intensidades. A componente afetiva refere-se à ligação emocional, identificação e envolvimento do indivíduo com a organização. Um indivíduo com um forte comprometimento afetivo continua na organização porque quer. A componente calculativa está relacionada com os custos associados à saída da organização. Um indivíduo cuja ligação à organização esteja baseada no comprometimento calculativo permanece na organização porque necessita. Quanto à componente normativa, esta reflete o sentimento de obrigação e de dever moral em continuar na organização. Indivíduos com um elevado comprometimento normativo sentem que permanecem na organização por obrigação (Meyer, & Allen, 1991 e 1997). Os autores estabeleceram ainda os antecedentes e consequentes de cada uma das componentes do comprometimento organizacional (Meyer, & Allen, 1997; Meyer, Stanley, Herscovitch, & Topolnytsky, 2002).

Atualmente, o comprometimento é entendido como uma “biding force”, isto é, como uma força de vinculação de uma dada natureza entre um indivíduo e um objeto no local de trabalho (Meyer & Herscovitch, 2001; Klein, et al., 2009). A força pode ser de natureza afetiva, calculativa ou normativa e o objeto pode ser, por exemplo, a instituição, a organização, a profissão, a carreira ou os objetivos.

 

2. Diferentes focos do comprometimento no contexto militar

2.1. Comprometimento com a Organização e com a Instituição

Neste artigo considera-se o comprometimento “como um processo de influência social, que resulta de uma relação de determinada natureza (“mindset”) entre um sujeito e um objeto, ou entidade concreta, conferindo, por isso, um sentido de pertença social e/ou organizacional e de estabilidade comportamental, e que permite a redução de ambiguidade organizacional (Klein et al., 2009; Meyer, 2009; Meyer, &Allen, 1991 e 1997; Meyer, & Herscovitch, 2001; Monday, et al., 1982; Weick, 1995 e 2001)” (Nascimento, 2010, p. 20).

Também é aqui assumido que o Comprometimento com a Organização está orientado para a unidade militar onde se presta serviço em determinado momento, enquanto o Comprometimento com a Instituição se refere à instituição militar de um país como um todo, ou seja, às suas Forças Armadas.

 

2.2. Comprometimento com a Profissão

O comprometimento no local de trabalho pode ser orientado para vários objetos, incluindo a profissão (Meyer, Allen, & Smith, 1993). Atualmente, vive-se num mundo em constante mudança e crise, com impacto nas organizações e, consequentemente, no foco do comprometimento no local de trabalho e na intensidade das ligações das diferentes naturezas (Meyer, 2009). O foco na profissão verifica-se, particularmente, nos casos em que, devido à sua especificidade, as profissões possuem características fortemente identitárias (Sainsaulieu, 1988). São exemplos deste tipo de profissões os militares (Bass, 1985), profissionais das forças de segurança, profissionais de saúde, tais como médicos e enfermeiros (Meyer, et al., 1993), e professores universitários (Figueira, Nascimento, & Almeida, 2014). O Comprometimento com a Profissão está relacionado com a identificação com uma profissão, refletindo-se nas escolhas e características pessoais. Inicialmente, foi considerado um constructo unidimensional de natureza afetiva (e.g., Aranyaet al., 1981; Blau, 1985), embora, posteriormente, esta abordagem tenha sido contestada por Meyer e colaboradores (1993), por considerarem que este constructo, tal como o Comprometimento com a Organização, seria também constituído pelas componentes afetiva, calculativa e normativa.

Na literatura existem vários estudos sobre a relação entre o Comprometimento com a Organização e o Comprometimento com a Profissão (e.g., Aryee, Wyatt & Min, 1991; Chang, Chi & Miao, 2007; Lachman & Aranya, 1986; Meyer et al., 1993; Reilly & Orsak, 1991). A linha teórica com maior aceitação estabelece que o Comprometimento com a Profissão é antecedente do Comprometimento com a Organização, significando que um indivíduo permanece na organização enquanto esta lhe garantir o desenvolvimento profissional, caso contrário opta por exercer a profissão noutra organização (Figueira, Nascimento & Almeida, 2014; Lachman & Aranya, 1986).

Porém, como a profissão militar apenas pode ser desempenhada dentro das instituições militares, considera-se que, neste caso particular, o Comprometimento com a Profissão refere-se à profissão militar e não às especialidades e funções desempenhadas pelos indivíduos decorrentes das suas habilitações académicas e qualificações pessoais.

Esta ligação indissociável entre a instituição e profissão militares leva a que se considere que o Comprometimento com a Profissão está relacionado o Comprometimento com a Instituição e não com o Comprometimento com a Organização. De igual forma, a direcionalidade da relação de determinação é inversa ao estabelecido no quadro teórico, sendo o Comprometimento com a Instituição um determinante do Comprometimento com a Profissão e não o oposto.

 

3. O Comprometimento com a Pátria

3.1. Para além do patriotismo

“(…) ask not what your country can do for you-ask
what you can do for your country”[1]

 

A pátria, entendida como a terra natal ou adotiva à qual um indivíduo está ligado por laços afetivos, jurídicos e históricos, pode significar o local de nascimento ou o local onde um indivíduo, por algum motivo, acabou por se enraizar. O carácter afetivo da ligação com a pátria, popularmente denominado por “amor à pátria”, conjugado com um passado histórico e com a perceção de um destino comum, fatores agregadores e caracterizadores de um povo, é o que na literatura se designa por patriotismo (Bernardino, 1980; Cruz, 1989, Johnson, 1987). Este sentimento patriótico resulta da identificação dos indivíduos com os símbolos nacionais (e.g., bandeira, hino nacional, arte, monumentos, personalidades), valores morais e éticos (e.g., virtude, honra, lealdade, honestidade, integridade, respeito e disciplina) e herança cultural (e.g., história, língua, cultura, tradições e costumes, religião, características sociodemográficas, características geográficas e ambientais). Estes atributos, intrínsecos à identidade nacional, são transmitidos através do processo de socialização intergeracional e afectam, de uma perspectiva antropológica, os modos de ser, pensar e agir de cada indivíduo (Laraia, 1986, Rocher, 2012).

É o sentimento patriótico que, por princípio, está na base de uma maior consciência cívica traduzida numa participação regular em iniciativas de solidariedade social, ou no voluntarismo para prestar auxílio em situações de catástrofes, ou, ainda, na predisposição para fazer alguns sacrifícios pessoais em prol de um bem maior (por exemplo, pagando impostos extraordinários perante graves crises económicas). Existem também acontecimentos onde as manifestações de patriotismo se traduzem em fenómenos de grande escala, sendo as competições desportivas internacionais disso um bom exemplo (Cruz, 1989; Pinto, 1989; Johnson, 1897).

Todavia, neste artigo considera-se que, para além do patriotismo, ou seja, do afeto pela pátria, alguns indivíduos estabelecem uma outra força de vinculação, revelada na entrega de si próprios para a causa comum e na disposição pessoal de combater pela pátria – o Comprometimento com a Pátria.

 

3.2. Comprometimento com a Pátria – um novo constructo

Por não existirem evidências na literatura de que o Comprometimento com a Pátria tenha sido estudado, assume-se que este consiste num novo foco do comprometimento e, consequentemente, num novo constructo ainda sem uma conceptualização teórica formulada.

Considera-se, assim, que o Comprometimento com a Pátria é uma força de vinculação, de natureza distinta, que alguns indivíduos estabelecem com a pátria e que está presente na perceção pessoal de ser seu dever defendê-la e, por isso, comprometem-se voluntariamente e sem condicionalismos a dar a vida por ela. O Comprometimento com a Pátria vai muito para além dos sentimentos de afeto, das ações de voluntariado e de solidariedade ou de outros sacrifícios pessoais no âmbito sócio-económico.

Embora o Comprometimento com a Pátria não seja exclusivo dos militares, nem de qualquer outra profissão, é no contexto militar que assume maior relevância, porquanto todos os militares juram perante a bandeira nacional, formal e publicamente, disponibilizar incondicionalmente a própria vida em defesa da mesma.

 

4. A Hierarquia dos Comprometimentos

Na literatura científica existem vários estudos que enfatizam a importância do processo de socialização dentro das equipas, em particular durante os primeiros meses de contacto, na exposição dos novos colaboradores ao entendimento coletivo dos valores, atitudes e objetivos da organização e, consequentemente, no desenvolvimento do comprometimento afetivo dos indivíduos com a organização (e.g., Heffner, & Rentsch, 2001; Rentsch, 1990; Vam Maanen, 1976; Wanous, 1980). No contexto militar, é na recruta – período inicial de adaptação à vida militar onde é ministrada a instrução militar básica aos novos elementos, independentemente do sexo, raça ou religião – que se incute o respeito pelos símbolos nacionais, são transmitidos os valores morais e éticos que norteiam a instituição castrense, se proporciona o contacto direto e a interação entre indivíduos com origens sócio culturais diferentes, e se incentiva o espírito de missão e de coesão do grupo (Fenell, 2008, e Hall, 2011). Sendo a recruta ministrada antes dos novos militares saberem em que equipa vão ser inseridos, ou até mesmo a organização (unidade militar) onde vão prestar serviço, com a exceção das unidades de forças especiais, entende-se que o Comprometimento com a Pátria é determinante dos comprometimentos com os restantes focos (instituição, organização e profissão), configurando-se, assim, a existência de uma Hierarquia dos Comprometimentos, representada pelo modelo conceptual aqui proposto (figura 1).

Figura 1 – Modelo conceptual da Hierarquia dos Comprometimentos no contexto militar.

 

Nesta hierarquia, o Comprometimento com a Pátria e o Comprometimento com a Organização é mediada quer pelo Comprometimento com a Instituição, quer pelo Comprometimento com a Profissão. Também a relação entre o Comprometimento com a Pátria e o Comprometimento com a Profissão é mediada pelo Comprometimento com a Instituição.

Neste modelo, o Comprometimento com a Pátria determina positivamente o comprometimento com os demais focos em análise. De facto, é o Comprometimento com a Pátria que distingue quem quer servir nas Forças Armadas dos que não são voluntários para experienciar a vida militar, a qual envolve situações particulares de penosidade e de risco acrescido. Pese embora, ao longo dos tempos, sempre ter havido indivíduos dispostos a combater pela pátria, a verdade é que uns dispõem-se a fazê-lo incondicionalmente, ou seja, sem quaisquer restrições, enquanto outros fá-lo-iam apenas mediante algumas condições, ou seja, com reservas. Esta evidência de que a predisposição para sacrificar a própria vida em defesa da pátria apresenta diferentes graus de significação – predisposição total ou com restrições – leva a acreditar que os processos de recrutamento deveriam incluir um método de aferição do grau de Comprometimento com a Pátria, especialmente nos casos de recrutamento para forças militares profissionalizadas, alimentadas unicamente por voluntários, como são a generalidade das Forças Armadas dos países ocidentais, incluindo Portugal (Burk, 1984).

No modelo aqui apresentado, também se considera que o Comprometimento com a Instituição determina positivamente quer o Comprometimento com a Organização quer o Comprometimento com a Profissão. Tal justifica-se pelo facto de, por um lado, um profissional militar poder optar pela transferência para outra organização militar (unidade militar) quando se sente insatisfeito com a organização onde presta serviço e, por outro, poder optar por mudar de funções quando se sente desmotivado com as funções que desempenha. Contudo, caso opte pela desvinculação definitiva com a instituição militar, deixa de poder exercer a profissão militar, visto esta só poder ser exercida dentro das instituições militares.

Por último, considera-se que o Comprometimento com Profissão determina positivamente o Comprometimento com a Organização. Esta consideração é sustentada pela capacidade de aceitação e adaptação dos militares ao regime de rotatividade a que estão sujeitos ao longo da sua carreira, implicando uma frequente mudança de local de trabalho, no qual se incluem teatros de operações muitas vezes inóspitos e hostis.

 

5. Comprometimento Afetivo Residual

A maioria das conceptualizações do comprometimento organizacional afetivo está limitada ao intervalo de tempo em que os colaboradores estão ligados à organização. Poucos autores têm abordado a forma como os indivíduos se podem comprometer com uma organização antes de se tornarem um dos seus colaboradores – o comprometimento antecipatório (Meyer, Bobocel, & Allen, 1991) –, ou explorado o conceito de comprometimento antes da entrada numa organização (“pre-entrycommitment”) ou, ainda, a propensão para o comprometimento (“commitment propensity”) (Cohen, 2007; Lee et al., 1992; Mowday et al., 1982; Pierce & Dunham, 1987). Não obstante, e atendendo a que as carreiras individuais são, cada vez mais, o somatório das experiências de trabalho em diferentes organizações, estando-se a perder a noção de “emprego para a vida”, Breistshol e Ruhle (2013) apresentaram num estudo conceptual o conceito de Comprometimento Afetivo Residual. Este constructo vem colmatar uma lacuna existente na literatura ao considerar que os indivíduos permanecem afetivamente comprometidos com uma organização mesmo depois da desvinculação formal, posicionando-se muito na linha da análise feita por Edgar Schein, em termos de cultura organizacional, ao desaparecimento da Digital Equipment Corporation, empresa de tecnologia de referência no mercado até à década de 90 do séc. XX (Schein et al., 2004).

O estudo de Breistshol e Ruhle (2013) explica como se forma o Comprometimento Afetivo Residual. O termo “transformação” é utilizado para designar o processo de mudança que ocorre no comprometimento afetivo entre um indivíduo e a organização após a separação, sendo as características pessoais e as influências situacionais moderadoras desta transformação.

As proposições apresentadas pelos autores evidenciam a tendência para, após a saída de uma organização, os indivíduos continuarem residualmente comprometidos com essa organização, formando o Comprometimento Afetivo Residual. Adicionalmente, a separação voluntária aparece como moderador da relação entre o comprometimento afetivo atual – ou seja, o comprometimento afetivo com a última empresa onde o indivíduo trabalhou – e o Comprometimento Afetivo Residual.

Embora Breistshol e Ruhle (2013) tenham explorado as possibilidades de comprometimento residual para com uma organização, existem, todavia, pesquisas recentes que têm estudado focos diferentes de comprometimento (e.g., Bentein, Stinglhamber, & Vandenberghe, 2002; Bishop, & Scott, 2000; Bishop, Scott, & Burroughs, 2000; Vandenberghe, & Bentein, 2009) e que sugerem a possibilidade de existirem outros focos também com interesse para o comprometimento residual. Pela especificidade do contexto militar e da condição profissional de militar, já referidos anteriormente, entende-se, na linha de Allen (2003) que, no caso dos ex-militares, o Comprometimento Afetivo Residual está relacionado com o Comprometimento com a Pátria e não com o Comprometimento com a Organização (unidade militar onde se prestou serviço) como defendido por Breistshol e Ruhle (2013). Entende-se, ainda, que o Comprometimento com a Instituição, assim como o Comprometimento com a Profissão são mediadores dessa relação.

Na génese desta linha de pensamento reside o facto das instituições militares, desde a fase de recrutamento e independentemente da unidade militar onde se presta serviço, garantirem a todos os seus elementos formação e treino muito específicos e obrigarem ao uso de uniforme, o que conduz a uma maior homogeneização do grupo, comummente designado por “família militar”. “Uma certa convergência parece apontar para os membros manifestarem uma maior segurança, mais espírito de cooperação, melhor moral e melhor comunicação quando os grupos são homogéneos, enquanto nos grupos heterogéneos se registam mais conflitos pessoais, maior competição e maior tendência para a formação de subgrupos antagónicos” (Jesuíno, 2005, p. 302). Tal, leva a que muitos ex-militares, após o fim do seu vínculo com a instituição militar – onde se sentiam em segurança e como fazendo parte do grupo –, quando passam a ser colaboradores em organizações civis – onde, muitas vezes, não existe um espírito de coesão e se assiste a uma maior competitividade – continuam a manter uma ligação afetiva com a pátria, com a instituição militar e também com a profissão militar que não poderão voltar a exercer.

 

Conclusão

Este artigo pretendeu apresentar o Comprometimento com a Pátria, o qual se consubstancia num novo constructo, distinto do conceito de patriotismo.

O patriotismo, entendido como o sentimento de amor pela pátria, significa uma pré-disposição para o auto-sacrifício em prol desta, embora com alguns limites. Mas é a dádiva de si próprio em defesa da pátria, isto é, a disposição de colocar em risco a própria vida, dar a vida por ela e pelos seus interesses, combater e morrer por ela se necessário, que distingue o Comprometimento com a Pátria do patriotismo.

Neste artigo apresentou-se, ainda, um modelo conceptual representativo das relações de determinação entre o Comprometimento com a Pátria e diferentes focos do comprometimento em contexto militar – a instituição militar, a organização (unidade militar) e a profissão militar –, ou seja, a Hierarquia dos Comprometimentos.

Segundo este modelo, o Comprometimento com a Pátria determina positivamente o comprometimento com todos outros focos, o Comprometimento com a Instituição determina positivamente tanto o Comprometimento com a Organização como o Comprometimento com a Profissão, enquanto o Comprometimento com Profissão determina positivamente o Comprometimento com a Organização.

O modelo conceptual da Hierarquia dos Comprometimentos aqui apresentado é um modelo inovador, porque, por um lado, introduz este novo constructo, o Comprometimento com a Pátria, e, por outro, faz depender o Comprometimento com a Profissão (profissão militar) do Comprometimento com a Instituição (contrariando a teoria referente às profissões fortemente identitárias), mas, também, do Comprometimento com a Pátria.

Adicionalmente, este artigo adapta ao contexto militar o modelo de Comprometimento Afetivo Residual apresentado num estudo recente por Breistshol e Ruhle (2013). Neste artigo defende-se a existência de uma relação de determinação do Comprometimento com Pátria com o Comprometimento Afetivo Residual dos ex-militares, mediada tanto pelo Comprometimento com a Instituição como pelo Comprometimento com a Profissão, sugerindo-se que os ex-militares possam permanecer afetivamente comprometidos com a instituição militar mesmo depois da desvinculação, estendendo, assim, a estrutura temporal de comprometimento afetivo para além do momento da separação entre o militar e a instituição militar.

 

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[1]    Discurso de tomada de posse do Presidente John F. Kennedy (Capitólio dos Estados Unidos da América. Washington, D.C., em 20 de janeiro de 1961) (Disponível em http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/BqXIEM9F4024ntFl7SVAjA.aspx).

 

 

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Tenente-coronel

Ana Paula da Silva Jorge

Mestre em Estudos da Guerra e da Paz nas Novas Relações Internacionais, pela Universidade Autónoma de Lisboa, desde 2011. Licenciada em Ciências Militares Aeronáuticas, na especialidade de Engenharia Eletrotécnica, pela Academia da Força Aérea. Exerce funções no Gabinete Nacional de Segurança, na equipa multidisciplinar para a Garantia da Informação.

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Prof. Doutor

José Luís Rocha Pereira do Nascimento

Doutorado em Gestão, na especialidade de Organização e Desenvolvimento de Recursos Humanos, pelo ISCTE. Professor Auxiliar do ISCSP. Vogal Permanente da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP), de maio 2012 a março de 2017.

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