Nº 2587/2588- Agosto/Setembro de 2017
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
OS PÁRAS em África

 

 

Os PÁRAS em África, 1961-1974[1]

John P. Cann

 

Como é sabido, os portugueses não foram, durante séculos, muito atreitos a escreverem memórias de guerra; de facto, das Guerras da Aclamação restam o manuscrito de Mateus Roiz e o Portugal Restaurado do Conde da Ericeira; da Guerra da Sucessão de Espanha ou da Guerra Fantástica nada nos ficou; da Guerra Peninsular temos os trabalhos de José Acúrsio das Neves e de Luz Soriano; a I Guerra Mundial já viu alguns dos seus protagonistas portugueses escreverem memórias da respectiva vivência e, nos tempos que correm, passados 100 anos, algumas delas, esgotadas que estavam, têm vindo a ser reeditadas. Comparando com o que combatentes de outras nacionalidades escreveram em todas estas ocasiões ficamos a anos-luz de distância.

Com as guerras ocorridas no Ultramar, entre 1961 e 1975, as coisas mudaram completamente de figura. Oficiais, sargentos e praças, do Quadro Permanente ou do Quadro de Complemento, têm produzido trabalhos em grande quantidade, obviamente de diversa qualidade, mas todos de grandíssimo interesse para que, num futuro mais ou menos próximo, os historiadores deles se possam servir para melhor analisarem e perceberem os contextos para produzirem uma História deste período com um conhecimento de causa que os historiadores das outras situações não dispuseram. Desta feita, estão publicadas memórias até de senhoras que, tendo acompanhado os maridos ou os pais, quiseram escrever sobre a sua própria experiência, e que interessantes elas conseguem ser.

Ora, as memórias, como acabo de referir, podem ser muitíssimo importantes para posteriormente se fazer verdadeira História, mas elas não são em si História, porque são visões parciais de uma vivência em espaço e tempo restritos muito longe da visão geral, ampla e distante de que o historiador deve dispor para, baseado em documentos, sem os quais não há História, mas apenas ficção, que vai ter de analisar à luz das concepções e circunstâncias em que foram produzidos para tirar as conclusões que se lhe impuserem. É aqui que as memórias podem ser de uma enorme utilidade ao historiador.

Estamos hoje a apresentar uma obra com características diversas. Não se trata de memórias, mas do trabalho de um historiador baseado em investigação documental e em entrevistas a testemunhas e participantes dos acontecimentos. Tem, por isso, um valor muito acrescido a umas simples memórias.

Interessa, pois, começar por conhecer este historiador que, na sequência de outros, nos brinda com mais este interessante trabalho sobre a actividade militar de Portugal neste conturbado período da nossa história.

John P. Cann é capitão-de-mar-e-guerra aposentado da Marinha dos EUA. Oficial navegador, serviu numa variedade de missões aeronáuticas, incluindo funções de comando, no decorrer das quais acumulou mais de 3.000 horas de voo. Ao longo da sua carreira, entre 1987 e 1992, desempenhou funções no Estado-Maior do Comando da Área Ibero-Atlântica da OTAN, aqui ao lado, em Oeiras, o que lhe permitiu, ao longo de 5 anos, um contacto diário com os camaradas das Forças Armadas Portuguesas, todos eles participantes nas campanhas portuguesas em África, entre 1961 e 1975. Desses contactos resultou um interesse cada vez maior pelo estudo das nossas campanhas de contra-insurreição que, em Angola, Guiné e Moçambique, um país pobre de meios conseguiu manter durante 15 anos.

John Cann mantém uma actividade académica de grande relevo no estudo das operações especiais e é responsável por mais de 30 projectos de investigação na base dos conflitos de baixa intensidade, sendo considerado internacionalmente como um especialista em guerra assimétrica. É investigador convidado e professor jubilado de Estudos de Segurança Nacional na Academia de Fuzileiros dos EUA. É doutorado em Estudos de Guerra pelo King’s College de Londres, onde, em 1996, defendeu a tese Contrainsurreição em África – O Modo dos Portugueses Fazerem a Guerra. 1961-1975, publicada em Portugal, em 1997, e reeditada em 2005. A este, seguiu-se a publicação, em 1998, de Memórias da Guerra de Portugal em África 1961-1975, em 2008 e 2014, de A Marinha em África – As Campanhas Portuguesas em Águas Interiores de 1961 a 1974 e, em 2015 e 2017 (este lançado anteontem no EMFA), de Plano de Voo África. O Poder Aéreo Português na Contrassubversão 1961-1974. Para além destas obras de grande fôlego, Cann publicou ainda, relacionados com o mesmo tema, em 2013, Os Flechas, em 2016, Os Paras e Os Fuzileiros e, em 2017, Os Comandos. Destas últimas, estamos hoje a apresentar, traduzido para português, Os Paras; as outras três serão também publicadas, a curto prazo, pela editora Tribuna da História.

O Exército, a Armada e a Força Aérea de Portugal reconheceram já o interesse da sua obra e o valor dos seus trabalhos para estas instituições galardoando-o com a Medalha D. Afonso Henriques do Exército, a Medalha da Cruz Naval da Marinha e a Medalha de Mérito Aeronáutico. Acresce lembrar que John Cann é membro associado da nossa Academia de Marinha.

Esta curta síntese curricular é mais do que suficiente para termos a consciência do valor dos trabalhos de John Cann sobre as Forças Armadas Portuguesas em África, neste período, mas julgo interessante apresentar um testemunho, garantidamente isento, até porque pertencentes, segundo julgo, a campos ideológicos diversos, de outro historiador não português.

René Pélissier, historiador francês que, ao longo dos últimos cerca de 50 anos, tem dedicado um interesse permanente à colonização portuguesa em África. Escreveu já 10 grandes obras sobre o tema, cobrindo a colonização de Angola, de Moçambique e da Senegâmbia ou Guiné, indo mesmo numa delas até à Ásia para falar de Timor. Para além destas obras, desde 1991, periodicamente publica recensões bibliográficas de tudo quanto no mundo se publica sobre a África Portuguesa e porque julgo interessante aqui indico as que conheço:

Do Sahara a Timor. 700 livros analisados (1980-1990) sobre a África e a Insulíndia ex-Ibéricas, publicado em 1991;

Angola–Guiné–Moçambique–Sahara–Timor. Uma Bibliografia Internacional Crítica (1990-2005), publicado em 2006;

Portugal Afrique Pacifique. Une Bibliographie Internationale Critique (2005-2015), publicada em 2016;

– Le Sud-Angola Dans L’Histoire. Un Guide de Lectures Internationales, publicado em 2017.

Obviamente que a René Pélissier não lhe escapou a obra de John Cann, e eu, apenas a título de exemplo, transcrevo um extracto da recensão sobre A Marinha em África – As Campanhas Portuguesas em Águas Interiores de 1961 a 1974 que Pélissier escreve em Portugal Afrique Pacifique e onde pode ler-se:

«John P. Cann não é um desconhecido, pois devemos-lhe já um livro traduzido em português sobre os métodos aplicados pelo comando português para lutar contra a guerrilha. Mas neste novo livro, impressionante de meticulosidade, ele ultrapassa-se. Explorando os arquivos da marinha e os documentos oficiais publicados, e recolhendo testemunhos de antigos oficiais que planearam operações de fuzileiros ou que pessoalmente os comandaram em operações, […] o grosso da obra diz respeito às dificuldades encontradas na Guiné e em Moçambique que […] descreve com luxo de detalhes logísticos e técnicos jamais escritos antes de Cann. Consagra evidentemente um extenso capítulo à Operação Mar Verde, bem conhecida em Portugal mas ignorada ou esquecida noutros países […]. O livro de Cann é uma pedra angular na reabilitação do papel da Armada em terra.».

 

A inversa não deixa também de ser verdadeira, pois a John Cann não escapou a obra de Pélissier que, neste Os Páras em África, faz citações das obras Angola, A Colónia do Minotauro e O Naufrágio das Caravelas, todas da autoria de Pélissier.

Considero muito interessante e, sem dúvida, elucidativo o facto de serem historiadores estrangeiros os que mais se têm interessado pela colonização portuguesa e pelas suas campanhas em África, publicando sobre o tema um número muito grande de interessantes trabalhos.

A obra Os Páras em África que hoje aqui nos traz é o produto de uma investigação profunda nos arquivos e de uma leitura atenta da bibliografia publicada em Portugal e no estrangeiro, a que o Autor quis ainda acrescentar extractos das entrevistas por si próprio conduzidas a individualidades políticas e militares e a alguns dos paraquedistas que protagonizaram os acontecimentos relatados. Nestas situações haverá sempre quem ache que outros deviam ter sido ouvidos, alguns podem até pensar com razão que, se tivessem também eles sido ouvidos, se poderia falar de outras acções ou aprofundar mais as referidas. Este é o problema, do qual falei inicialmente, de que memórias são visões parciais no tempo e no espaço em que cada observador conta a sua história que não é a História. No caso presente, John Cann escreve 160 páginas de História, obviamente não entrando em pormenores, mas não deixando de apresentar a visão geral da História dos paraquedistas portugueses em África.

O livro contém uma introdução e sete capítulos.

Na curta introdução, o Autor faz considerações de carácter geral, evidenciando a sua profunda admiração pelo notável sucesso militar de Portugal na mobilização das suas Forças Armadas, no transporte dos mobilizados para África ao longo de milhares de quilómetros, no estabelecimento de uma sofisticada infraestrutura logística de apoio e no seu treino para um tipo de guerra sofisticado e desconhecido, lembrando os leitores de que Portugal não tinha disparado um único tiro real em África desde a Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha invadiu o Norte de Moçambique e o Sul de Angola. Esta sua admiração é visível ainda quando conclui que Portugal, contra ventos e marés, conseguiu adaptar as suas Forças Armadas ao novo tipo de guerra e criar unidades especialmente vocacionadas para esse desafio, adaptando-se à nova guerra ao invés de tentar combatê-la com forças inadequadas.

Exactamente o contrário, digo eu, do que hoje em dia sabemos sobre a nossa intervenção na Primeira Guerra Mundial, em que o governo de então teve dificuldade na mobilização e se mostrou incapaz do proceder ao seu transporte e de apoiar logisticamente as forças destacadas, assim como de as adaptar à guerra de trincheiras em que no teatro da Flandres se combatia, mesmo tendo em conta as constantes advertências do comando militar. A este propósito, posso referir que, dentro de dias nesta mesma sala, será lançado um outro livro – o até agora inédito Diário do Gen Tamagnini, escrito entre Fevereiro de 1917 e Agosto de 1918, os 18 meses do seu comando do CEP na Flandres – e onde ficam bem claras, se dúvidas houvesse, todas as incapacidades desse período, em verdadeiro contraste com o que se veio a conseguir entre 1961 e 1975. Os Governos e as Forças Armadas tinham aprendido a lição…

No I Capítulo, significativamente intitulado de O Começo, Cann faz uma retrospectiva da história dos paraquedistas em Portugal, antes do início das hostilidades em África. Sintetiza as primeiras largadas em 1922, desenvolve a experiência de Timor em 1941 e refere, a finalizar, os anos de organização dos paraquedistas do pós-segunda Guerra Mundial até à criação do Regimento de Caçadores Pára-quedistas e ao início das Campanhas de 1961 em Angola.

Seguem-se três capítulos. O II, dedicado às Operações no Norte de Angola, o III, às da Guiné, e o IV, às de Moçambique, nos quais são descritas as características principais de cada teatro, as forças paraquedistas neles instaladas, o inimigo a enfrentar e onde são relatadas algumas operações concretas que neles tiveram lugar. Há que ter a noção de que seria pouco interessante para o leitor comum a quem a obra se dirige, se o nosso Autor fosse exaustivo nestas matérias; apenas quis, como é óbvio, dar exemplos que fossem elucidativos do que pretendia demonstrar. Muitos outros exemplos poderiam ter sido escolhidos e muitos outros protagonistas poderiam ter sido ouvidos, mas não se procurava expor tudo quanto se passou, apenas o necessário para se perceber o contexto vivido em cada teatro, o que me parece ter sido plenamente conseguido, mas percebo perfeitamente que haja participantes que gostassem de ver aqui explanadas as acções de que foram parte.

O V Capítulo intitula-se Vitória à Vista e, como o próprio título imediatamente indica, nele, Cann procura demonstrar, citando o editor Dr. Pedro de Avillez, que «os militares portugueses alcançaram uma vitória clara em Angola, um impasse digno de crédito na Guiné e a possibilidade de readquirir o controlo da zona setentrional em Moçambique, defendendo que a negociação de uma vitória política estava ao alcance de Portugal mas a inflexibilidade dos dirigentes políticos, que não aceitaram a negociação do futuro da África Portuguesa, gerou uma grande desmoralização entre os militares» que os levou ao golpe de estado do 25 de Abril de 1974.

O Capítulo VI é muito específico e refere-se à Consolidação do Norte de Angola feito à custa do desgaste provocado ao adversário com a criação da Unidade Táctica de Contra-Infiltração (UTCI), uma iniciativa do General Rui Brás de Oliveira, comandante da Região Aérea de Angola, e do seu chefe do estado-maior, o então Major Aurélio Corbal, a que se seguiu a criação de um Comando Especial de Contra-Informação (CECI) que operava entre o Zaire, a Norte, os rios Zadi, a Leste, o Loge, a Sul, e o Atlântico, a Oeste. Os Paras e os Helis foram as armas usadas para as operações de interceptação que, com boas informações, tiveram um sucesso completo.

A terminar, o Capítulo VII, muito curto, designado por A Tragédia, relata a vivência da última semana do General Heitor Almendra e dos seus Paras que, com um destacamento de Fuzos e um esquadrão de Dragões, elementos dos Comandos da Região Militar de Angola, da Região Aérea e do Comando Naval embarcaram em duas fragatas e vários navios da Armada, a 10 de novembro de 1975, véspera do dia acordado para a independência de Angola, ali ficando o Encarregado de Negócios de Portugal, o diplomata Dr. Carlos Teixeira da Mota, que, na Fortaleza de São Paulo, aguardou a chegada do representante do novo Estado de Angola para lhe fazer a entrega das chaves daquela fortaleza. Tal como John Cann, também me parece que, verdadeiramente, no fim, os grandes perdedores foram os Moçambicanos, os Guinéus e os Angolanos.

John Cann, com este seu trabalho, presta mais um inegável serviço à História Militar de Portugal, neste caso, mais concretamente, à História dos Paraquedistas em África, no período de 1961 a 1975, durante o qual 9000 paraquedistas ali prestaram serviço, dos quais 160 morreram em combate (10 oficiais, 23 sargentos e 127 praças), 2 foram agraciados com a Ordem Militar da Torre e Espada, 13 com a medalha de valor militar com palma e 279 com a cruz de guerra. Colectivamente, o BCP 12 foi condecorado com a cruz de guerra de 1ª classe, o BCP 21 com a medalha de ouro de valor militar e o BCP 31 com a cruz de guerra de 1ª classe; mais recentemente, o corpo de Tropas Paraquedistas foi feito membro honorário da Ordem da Torre e Espada.

A Tribuna da História e o seu editor Dr. Pedro de Avillez, na senda do que tem constituído o seu desempenho ao longo dos anos, estão mais uma vez de parabéns por terem conseguido levar a termo esta publicação que vem enriquecer o património histórico das Forças Armadas e de Portugal, com um agradável lay out que integra mais de 100 imagens fotográficas.

Com os meus sinceros parabéns ao Autor e ao Editor, deixo, a terminar, a minha certeza de que a leitura desta obra será para cada um de vós um tempo útil e gratificante.

Obrigado pela vossa atenção.

 


[1]   Lançamento do livro na Academia Militar, em 1 de Junho de 2017.

Tenente-general
Alexandre de Sousa Pinto
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