Nº 2589 - Outubro de 2017
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Justiça Militar – organização judiciária militar
Coronel
Vítor Manuel Gil Prata

Introdução*

Portugal é uma República soberana e, por esse facto, a Constituição da República Portuguesa (CRP) determina claramente, no seu artº. 273º, que é obrigação do Estado assegurar a defesa nacional, integrando-a nas tarefas fundamentais e permanentes do Estado consagradas no artº. 9º. Para garantir os objetivos da defesa nacional o Estado dota-se de um instrumento militar, cujas missões estão igualmente consagradas constitucionalmente: as Forças Armadas.

As missões militares orientam-se principalmente para a proteção de valores ou interesses nacionais constitucionalmente consagrados[1], mas as Forças Armadas têm vindo igualmente a ser empenhadas, entre outras, em missões internacionais assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal é parte, como missões humanitárias e de paz (artº. 275º da CRP).

O que carateriza as Forças Armadas e lhes dá capacidade de cumprimento da diversidade de missões que lhes estão cometidas é a vincada hierarquia e uma disciplina exigente e o facto de o cumprimento do dever dos que as integram poder exigir o sacrifício da própria vida. Assim, o principal recurso de Forças Armadas preparadas para prevenir a guerra, mas também para a fazer se necessário, continua a ser o Militar. Moniz Barreto, na sua Carta a D. Carlos, El-Rei de Portugal, sobre a profissão militar, em 1893, caraterizou muito bem este recurso: “A gente conhece-os por militares (…) Por definição o Homem de guerra é nobre. E quando ele se põe em marcha à sua esquerda vai a coragem e à sua direita a disciplina”.

O militar é nobre de caráter e esta nobreza advém do facto de pautar a sua conduta pelos ditames da virtude e da honra e pelo seu amor Pátrio, e por assentar a sua atividade no respeito por valores fundamentais; é corajoso porque deve ultrapassar o medo e aceitar os riscos decorrentes das suas missões de serviço, se necessário com sacrifício da própria vida, sendo o único profissional que pode ser condenado por atos de cobardia; e é disciplinado porque assume que a disciplina militar é condição do êxito da missão a cumprir e elemento essencial do funcionamento regular das Forças Armadas, visando a integridade da sua organização, a sua eficiência e eficácia.

Durante séculos, a justiça militar tutelou a organização militar de modo a garantir a existência de Forças Armadas disciplinadas. Por essa razão, crimes ou delitos militares eram factos que violavam algum dever exclusivamente militar ou que ofendiam diretamente a disciplina ou também a segurança, havendo ainda crimes (acidentalmente) militares, assim considerados em razão da qualidade de militar do arguido, do lugar ou das circunstâncias em que fossem cometidos. E porque, se tutelavam as Forças Armadas, vigorou durante séculos o foro pessoal, pois este centrava-se na qualidade do agente do crime, que era essencialmente o militar.

A justiça militar, em Portugal, é muito antiga. Embora o primeiro código de justiça militar (CJM) seja do ano de 1875, a existência de normas jurídicas a tutelar a disciplina militar e a definir a competência para punir as infrações é muito anterior (regimento da guerra de D. Dinis), tal como o é a existência de um tribunal próprio para julgar infrações à disciplina: o Conselho de Guerra, criado em 11 de Dezembro de 1640.

Assim, os militares tinham um foro próprio, desde essa altura, porque a natureza dos ilícitos e a necessidade destes serem conhecidos e julgados num trinunal constituído preponderantemente por quem fosse capaz de ponderar a sua influência nos valores estruturantes da organização militar e nos interesses militares da defesa nacional o exigiam[2].

Se, na sociedade, a vida e a liberdade são valores jurídicos que justificam que a sua violação seja punida criminalmente com as penas mais graves, para os militares o País está primeiro e há um outro valor que se sobrepõe à própria vida e à sua liberdade: este valor é a Pátria, que não pode ser defendida sem Forças Armadas organizadas com base na hierarquia e disciplina, que são valores fundamentais daquelas, e cuja defesa pode exigir o sacrifício da própria vida. Esta realidade é tutelada por normas de direito penal e processual penal especiais, tal como por um direito administrativo especial.

Foi esta, também, a razão da citação de Georges Clemenceau, estadista que governou França no período de 1917-1920, isto é, ainda durante a Grande Guerra, acumulando essas funções com a de ministro da guerra: “Assim como há uma sociedade civil fundada sobre a liberdade, há uma sociedade militar fundada sobre a obediência, e o juiz da liberdade não pode ser o da obediência”.

 

A justiça militar de ontem

Falar-se de justiça militar é falar-se de uma organização judiciária – que durante longo período da nossa história foi autónoma – com tribunais e foro, com autoridades judiciárias e com agentes de polícia judiciária próprios. Mas é falar, também, de um direito penal militar com normas substantivas e processuais especiais.

Figura 1 – Valências do sistema de justiça militar.

 

Porém, apesar da influência do contexto histórico e, por vezes, da própria evolução do direito criminal comum, poucas alterações foram introduzidas na justiça militar, mantendo permanentemente uma coerência.

Na verdade, não obstante as várias designações dos tribunais militares de primeira e segunda instâncias, os vários CJM, as ligeiras alterações no conceito de crimes de natureza militar, as pontuais alterações no tipo de foro (pessoal ou material[3]), a alteração das entidades que constituíam autoridades judiciárias e agentes de polícia judiciária (em razão da própria organização militar) e as raras alterações na marcha do procedimento criminal, certo é que os tribunais, o foro, as autoridades judiciárias e as próprias autoridades e agentes que exerciam as funções de polícia judiciária militar eram essencialmente distintos da justiça comum.

Também a singularidade na organização das Forças Armadas, em que a obediência e a disciplina têm que ser fortemente garantidas para salvaguardar o respeito pelos valores ou objetivos que cabe às mesmas defender, sempre justificou que as normas substantivas e processuais do direito penal militar sofram desvios em relação ao sistema penal comum. Assim, os CJM eram “integrais”, sendo constituídos por quatro livros: “Dos crimes e das penas”, “Da organização judiciária militar”, “Da competência dos tribunais militares” e “Do processo criminal militar”.

Desde a publicação do primeiro CJM que o sistema de justiça militar foi considerado um sistema tendencialmente completo, no topo do qual estava o tribunal de segunda instância que, em 2004, tinha a designação de Supremo Tribunal Militar.

Os tribunais militares tinham uma composição que variava em função da patente do réu e, durante muito tempo, também da gravidade do delito cometido (quando o facto fosse punível com pena capital). Integrava sempre um presidente (oficial superior), um auditor letrado em leis (juiz togado) que chegou a ter patente militar, uniforme e soldo de capitão[4] e, frequentemente, um júri composto por cinco oficiais; apenas, a partir de 1931, o tribunal militar passou a ser coletivo de dois juízes militares e um auditor.

O foro militar foi durante a maior parte do tempo o foro pessoal. Em alguns momentos adotou-se o foro material, porém, sempre por pouco tempo. Aconteceu no reinado de D. José, também na sequência da revolução liberal e, posteriormente, com a instauração da República e com a revolução de abril.

No âmbito dos códigos de justiça militares anteriores, a competência judiciária coincidia com o poder hierárquico dos principais órgãos de comando ou chefia militares. Assim, o ministro da guerra ou da marinha, os comandantes de grandes unidades (divisões militares ou regiões militares) e os chefes de estado-maior foram autoridades judiciárias militares, a quem competia proceder a despacho do processo instruído no sentido de arquivamento ou do seu envio para julgamento no tribunal militar.

As atribuições da polícia judiciária militar eram exercidas pelos comandantes e diretores de unidades e estabelecimentos militares onde o crime tinha ocorrido ou de colocação do arguido (réu). A eles competia toda a instrução do processo – o “auto de corpo de delito” – que consistia na investigação dos indícios e na formação do processo instrutor.

Só com o CJM de 1977 passou a haver a fase de instrução tutelada por um juiz de instrução criminal que dirigia a investigação, e esta passou a ser da exclusiva responsabilidade do Serviço de Polícia Judiciária Militar, criado em 1975, e, mais tarde, adotada a designação de Polícia Judiciária Militar (PJM), considerada um corpo superior de polícia criminal.

 

A rutura da justiça militar

A quarta revisão constitucional de 1997 vem promover a reforma da justiça militar, rompendo com a tradição da autonomia da justiça militar ao extinguir os tribunais militares em tempo de paz.

Figura 2 – Rutura no sistema de justiça militar.

 

A discussão parlamentar que antecedeu esta revisão constitucional preocupou-se em analisar a justiça penal militar quanto à manutenção ou não de uma específica jurisdição militar, e a manutenção ou não de um específico direito penal militar.

Foi recusada uma jurisdição autónoma, tal como também se não optou pela criação de tribunais de competência especializada militar, ou de secções especializadas nos tribunais superiores. No que respeita ao direito penal militar, considerou-se que a natureza dos bens jurídicos que passariam a ser tutelados justificariam a sua especialidade.

Esta revisão constitucional veio consagrar a alteração da composição dos tribunais judiciais que julgam crimes estritamente militares, a criação de formas especiais de assessoria do Ministério Público (MP), a constituição de tribunais militares apenas na vigência do estado de guerra e o conceito de crime estritamente militar (artºs. 211º n.º 3, 219º n.º 3 e 213º da CRP).

 

A justiça militar hoje

Atualmente, a justiça militar não tem por objetivo proteger a organização militar, mas sim a função militar, que é a defesa militar da República (artº. 275º n.º 1 da CRP).

A Constituição exige ao legislador que a tipificação dos crimes de natureza militar se mantenha no âmbito estritamente da função militar. A este propósito, disse Figueiredo Dias[5] que o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão.

Nos termos do n.º 1 do artº. 40º do Código Penal “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, pelo que, de entre os bens jurídicos militares tutelados, estão aqueles associados à defesa militar da Pátria e outros ligados à necessidade de umas Forças Armadas eficientes e eficazes que garantam estar em condições de cumprir a sua função e missões; e, com vista à reintegração do militar condenado, o cumprimento de pena é feito em estabelecimento prisional militar garantido a manutenção do respeito pelos valores militares.

Assim, hoje, a justiça militar tutela interesses militares da defesa nacional[6], isto é, bens jurídicos relacionados com os objetivos constitucionalmente consagrados da defesa nacional e com valores fundamentais[7] das Forças Armadas, para que estas consigam prosseguir a sua função de defesa militar da Pátria. Já não estamos perante um direito penal “dos militares”, mas sim “da função militar”, pelo que o crime estritamente militar só poderá violar bens jurídicos militares da defesa nacional, deixando de ser a tutela do dever militar.

É relevante referir que o CJM se aplica também aos militares da Guarda Nacional Republicana[8], enquanto força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas.

O caminho seguido pela reforma da justiça militar foi, então, o da extinção dos tribunais militares em tempo de paz, com a garantia de que os ilícitos militares sejam julgados com participação de juiz militar. Os valores ou interesses militares continuam a ser, no entanto, tutelados por um direito penal e disciplinar especiais.

São os tribunais penais comuns que aplicam o direito penal especial não estando, no entanto e mesmo depois da revisão constitucional de 1997, proibida a existência de tribunais militares. A CRP diz mesmo, no n.º 4 do seu artº. 209º, que “sem prejuízo do disposto quanto aos tribunais militares, é proibida existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”.

Porém, com a eliminação da previsão de tribunais militares em tempo de paz, o n.º 3 do artº. 211º da CRP prevê que da composição dos tribunais comuns de qualquer instância, quando julguem crimes de natureza estritamente militar, façam parte um ou mais juízes militares. Procurou-se, assim, conciliar os interesses em causa com a integração na composição dos tribunais de qualquer instância de juízes militares para julgamento de crimes estritamente militares.

Inovadora no âmbito do direito penal militar e porque o processo penal militar não deverá apresentar diferenças de relevo em relação ao processo penal comum, é a competência do MP para exercer a ação penal, não mais havendo lugar em tempo de paz aos antigos promotores militares. O MP será devidamente assessorado por assessoria especial (artº. 219º, n.º 3 da CRP) na promoção do processo por crime de natureza militar, tendo o legislador optado por colocar esta assessoria técnica a cargo de oficiais das Forças Armadas e da GNR, pretendendo conciliar a promoção penal do MP com o reconhecimento das especificidades inerentes à instituição militar.

O artº. 213º reserva a constituição de tribunais militares para “a vigência do estado de guerra”, competindo-lhe somente o julgamento de crimes estritamente militares. Esta reserva dos tribunais militares para a vigência do estado de guerra implica que este estado se não reduza a uma situação de facto, exigindo-se a sua declaração formal por parte do Presidente da República (artº. 135º, al. c) da CRP), nos termos constitucionalmente estabelecidos. O que implica, também, a impossibilidade de criação dos tribunais militares pelo simples facto de haver militares envolvidos em conflitos armados.

Em consequência desta revisão constitucional, foram publicados o atual CJM, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro, e a Lei n.º 101/2003, também de 15 de novembro, que aprovou os estatutos dos juízes militares e dos assessores militares do Ministério Público (EJMAMMP).

Para julgar os crimes estritamente militares passaram, então, a ser competentes os juízos centrais criminais de Lisboa e Porto, com uma composição diferente (dois magistrados judiciais e um juiz militar), e as secções criminais das Relações de Lisboa e do Porto bem como do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que, além da sua competência como tribunais de recurso, passaram também a ter competência funcional para julgar em primeira instância militares em função da patente do arguido, também com juiz militar.

Com o novo CJM de 2003, a lei penal comum passa a aplicar-se, a título principal, na paz e na guerra, aos crimes de natureza estritamente militar, em tudo o que não for contrariado pelo CJM[9], sendo assim a parte geral do código penal comum aplicável à justiça militar. Igualmente, as disposições do Código de Processo Penal (CPP) são aplicáveis, salvo disposição legal em contrário, aos processos de natureza penal militar[10].

Atualmente, a estrutura do novo código integra apenas dois livros, o primeiro “Dos crimes” e o segundo “Do processo”, diferentemente dos códigos de justiça militar anteriores constituídos por quatro livros.

Entre os crimes tipificados encontram-se os previstos na sequência da ratificação por Portugal do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, designadamente, os crimes de guerra, sendo os crimes de guerra mais graves imprescritíveis[11]. No elenco dos crimes estritamente militares encontram-se crimes comuns (aqueles em que a qualidade do agente é indiferente para a tipificação, qualquer pessoa os pode cometer) e crimes específicos (que reclamam uma certa qualidade do agente para os cometer, neste caso serem militares) que são a maioria.

Como atualmente a justiça militar tutela a função militar, tanto a independência, integridade e segurança nacionais, bem como a capacidade e funcionalidade das Forças Armadas constituem bens jurídicos dignos de tutela penal, justificando a especialidade do direito penal militar. Porém, esta sua especialidade deve-se também à identificação e necessidade de tratamentos diferentes dos previstos nos códigos penal e processual penal.

Analisando o CJM, identificamos várias especialidades que se distinguem do estatuído nos códigos penal e processual penal. De entre essas podemos enumerar as seguintes:

–  As disposições do CJM são aplicáveis quer os crimes sejam cometidos em território nacional quer em país estrangeiro (artº. 3º);

–  A tentativa de crimes estritamente militares é punível qualquer que seja a pena aplicável ao crime consumado (artº. 12º);

–  O crime estritamente militar é punível com pena de prisão, única sanção prevista (artº. 14º), cumprida em estabelecimento prisional militar e, assim, com sujeição à disciplina militar, facilitando a reintegração social do condenado na vida militar (artº. 15º);

–  Porém, é aplicável a pena de multa como pena de substituição da pena de prisão, nos termos e condições previstos no código penal, bem como a suspensão da pena de prisão, devendo, no entanto, os deveres e regras de conduta aplicados a militares serem adequados à condição militar e, em especial, à prestação de serviço efetivo (artº. 17º);

–  Os crimes estritamente militares perpetrados em estado de sítio e de emergência ou em ocasião que pressuponha a aplicação das convenções de Genebra, bem como os relacionados com o empenhamento das Forças Armadas ou outras forças militares em missões de apoio à paz, estão equiparados a crimes cometidos em tempo de guerra para efeito de agravamento da medida da pena a aplicar (artº. 9º);

–  A aplicabilidade de algumas disposições a factos praticados em território nacional que atentem contra segurança de país aliado ou contra os seus bens militares (artº. 11º);

–  Uma característica importante da função militar é o facto de causas de exclusão da ilicitude (direito de necessidade) e de exclusão da culpa (estado de necessidade desculpante) serem afastadas (artº. 13º), pois “o perigo iminente de um mal igual ou maior não exclui a responsabilidade do militar que pratica o facto ilícito, quando a natureza do dever militar exija que suporte o perigo que lhe é inerente”. Daí, a tipificação do crime “atos de cobardia”, previsto no artº. 58º, crime específico próprio pelo qual apenas o militar pode ser condenado, não se encontrando tipificação do mesmo em qualquer outra legislação especial.

No que respeita a disposições que dispõem contrariamente ao disposto na lei processual penal comum, temos as seguintes:

–  Os crimes estritamente militares são por natureza públicos e de denúncia obrigatória para o militar que, no exercício de funções e por causa delas, tomar conhecimento deles (artº. 122º);

–  Os processos relativos a crimes estritamente militares são urgentes, pois correm em férias os prazos relativos aos mesmos (artº. 119º);

–  No que respeita a regras de competência material e funcional dos tribunais que julgam crimes de natureza militar, há juízes militares nos juízos centrais criminais de Lisboa e Porto e nas secções criminais das Relações de Lisboa e Porto e do STJ, julgando as instâncias superiores também em primeira instância em razão da patente militar do arguido (artºs. 109º e 116º);

–  O julgamento dos crimes estritamente militares é sempre feito em tribunal coletivo e nunca em tribunal singular ou de juri (artº. 111º);

–  Para a instrução criminal militar são competentes os tribunais de instrução criminal de Lisboa e do Porto (artº. 112º);

–  O MP que exercer funções no tribunal competente para a instrução é competente para a realização do inquérito (artº. 125º), assessorado pelos assessores militares (artº. 127º e 21º do EJMAMMP), os quais emitem sempre parecer prévio não vinculativo relativamente a aplicação ou alteração de medidas de coação a militares na efetividade, e à dedução da acusação ou arquivamento de inquérito (artº. 23º do EJMAMMP);

–  No direito penal militar, os processos por crimes estritamente militares não estão sujeitos a suspensão provisória do processo mediante imposição de injunções e regras de conduta, prevista no artº. 281º do CPP, ainda que o crime seja punível com pena inferior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão (artº. 126º);

–  A PJM é o órgão de polícia criminal que assiste o MP no inquérito (artº. 118º), com competência específica nos processos por crimes estritamente militares e competência reservada para investigação de crimes cometidos no interior de unidades, estabelecimentos e órgãos militares (U/E/O);

–  As notificações a militares na efetividade de serviço são requisitadas ao comandante, diretor ou chefe da U/E/O em que o militar preste serviço e efetuadas na pessoa do notificando (artº. 120º);

–  A medida de coação de obrigação de apresentação periódica aplicada a militar na efetividade de serviço é cumprida com apresentação ao comandante, diretor ou chefe da U/E/O em que aquele preste serviço (artº. 121º);

–  Fora de flagrante delito, a detenção de militares na efetividade de serviço deve ser requisitada ao comandante, diretor ou chefe da U/E/O em que o militar preste serviço, pelas autoridades judiciárias ou de polícia criminal competentes, nos termos do CPP (artº. 124º n.º 2);

–  Porém, em caso de flagrante delito por crime estritamente militar, qualquer oficial procede à detenção (artº. 124º n.º 1).

Assim, o direito penal militar atual apresenta uma grande alteração relativamente àquele que, durante séculos, vigorou em Portugal: é que os comandos militares não têm hoje qualquer competência em matéria criminal em tempo de paz, porque não só não são responsáveis pela nomeação de juízes militares, competindo esta ao Conselho Superior de Magistratura sob proposta do Conselho de Chefes de Estado-Maior ou do Conselho Geral da GNR, como deixaram de exercer atribuições de autoridade judiciária ou de agente de polícia judiciária militar.

Porém, os comandantes militares têm o dever de participar imediatamente os ilícitos criminais de natureza militar de que tenham conhecimento (artº. 122º) e a guardar, até à chegada dos investigadores da PJM, os detidos em flagrante delito pela prática desse tipo de crime, nos termos do n.º 1 do artº. 124º, a quem devem ser entregues juntamente com a respetiva participação ou auto de notícia. No entanto, enquanto comandantes de U/E/O, deverão sempre providenciar pela guarda dos instrumentos do crime e preservar quaisquer provas materiais ou vestígios, cujo desaparecimento possa prejudicar a descoberta da verdade, preocupação de que poderão encarregar os oficiais de segurança da U/E/O.

 

Especialidade da justiça disciplinar militar

A alteração no conceito de crime de natureza militar, distinguindo-o claramente da infração disciplinar, impôs, como consequência, a independência do procedimento disciplinar relativamente ao procedimento criminal militar. Porém, o direito disciplinar militar é também direito especial, continuando o procedimento disciplinar militar mais próximo do procedimento penal militar do que do procedimento administrativo comum. Aliás, o atual Regulamento de Disciplina Militar (RDM) dispõe que, em tudo o que não estiver previsto no Regulamento, são subsidiariamente aplicáveis, com as devidas adaptações e por esta ordem, os princípios gerais do direito penal, a legislação processual penal e o Código do Procedimento Administrativo.

Com a revisão constitucional de 1997, e a revogação da norma que permitia atribuir aos tribunais que julgam crimes de natureza militar competência para aplicar medidas disciplinares, compete atualmente aos tribunais administrativos o julgamento dos recursos jurisdicionais que tenham por objeto penas disciplinares aplicadas pelos chefes de estado-maior (artº. 212º n.º 3 da CRP).

Assim, no âmbito do direito disciplinar militar e como identificação da sua especialidade, são admissíveis penas privativas da liberdade e designadamente, nos termos da al. d) do artº. 27º da CRP, a prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente. Deve, no entanto, atender-se à interpretação estabelecida no Acordão do Tribunal Constitucional n.º 292/2012, de 2 de Maio, que faz depender a execução desta pena disciplinar à necessidade de decurso do prazo de interposição do recurso jurisdicional, no caso deste não ser interposto, ou do momento da sua interposição.

Compete atualmente à secção de contencioso administrativo de cada tribunal central administrativo (TCA) conhecer, em 1.ª instância, dos processos relativos a atos administrativos de aplicação das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas (artº. 6º da Lei n.º 34/2007, de 13 de Agosto, que estabelece o regime especial dos processos relativos a atos administrativos de aplicação de sanções disciplinares previstas no RDM.

Quando seja requerida a suspensão de eficácia de um ato administrativo praticado ao abrigo do RDM, não há lugar à proibição automática de executar o ato administrativo (artº. 2º da Lei n.º 34/2007).

Também nos processos relativos a atos administrativos de aplicação das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas, há intervenção de juízes militares (artº. 3º da Lei n.º 79/2009, de 13 de Agosto, que regula a forma de intervenção dos juízes militares e dos assessores militares do MP junto dos tribunais administrativos), sendo a secção de contencioso administrativo de cada TCA formada nos termos previstos no artº. 35º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), em que um dos juízes-adjuntos é juiz militar; este é, por inerência, o juiz militar do Ramo respetivo nomeado para o tribunal da Relação (artº. 2º da Lei n.º 79/2009).

Igualmente, quando se trate de processos relativos a atos administrativos de aplicação das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas, a estrutura de assessoria militar aos departamentos de investigação e ação penal do MP exerce, por inerência, as funções correspondentes a essa assessoria ao MP junto a cada TCA (artº. 2º da Lei n.º 79/2009).

 

Organização judiciária militar em tempo de guerra

Em tempo de guerra, a justiça militar difere essencialmente no que respeita à organização judiciária e poderá diferir no processo penal militar. No que respeita a direito substantivo, o estado de guerra declarada agrava a medida da pena a aplicar pelo cometimento de crime estritamente militar.

Durante a vigência do estado de guerra são constituídos tribunais militares ordinários, com competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar (artº. 128º)[12], podendo ainda ser constituídos tribunais militares extraordinários, fora do território ou das águas nacionais, por motivos ponderosos da justiça militar, devidamente fundamentados (artº. 131º).

Os tribunais militares ordinários são: o Supremo Tribunal Militar (STM); os tribunais militares de 2ª instância; e os tribunais militares de 1ª instância, com as competências, respetivamente, do STJ, Tribunais da Relação e juízos centrais criminais relativas aos processos por crimes estritamente militares (artº. 135º). Os tribunais militares extraordinários têm apenas a competência dos tribunais militares de 1ª instância.

No que respeita à composição dos tribunais militares ordinários, o STM é composto pelos juízes militares do STJ e por um juiz auditor, conselheiro deste tribunal; os tribunais militares de 2ª instância de Lisboa e do Porto são compostos por três juízes militares e por um juiz auditor dos tribunais da relação de Lisboa e do Porto; e os tribunais militares de 1ª instância de Lisboa e do Porto são compostos por três juízes militares e por um juiz auditor dos juízos centrais criminais de Lisboa e do Porto. O presidente dos tribunais militares ordinários será o juiz militar mais antigo (artº. 130º) e os juízes auditores dos tribunais militares exercem as funções de relator do processo, nomeados pelo Conselho Superior de Magistratura. A promoção do processo cabe a magistrados do MP, nomeados pelo respetivo Conselho Superior e a defesa é garantida por advogado (artº.s 133º e 134º).

Em circunstâncias ainda mais excecionais que o justifiquem, como foi referido, podem ser constituídos tribunais militares extraordinários; estes são compostos por um presidente e três vogais militares mais graduados ou antigos do que o arguido, um auditor que poderá ser juiz do tribunal militar ou civil mais próximo ou, não o havendo, qualquer licenciado em direito, militar ou civil (artº. 132º). A promoção do processo cabe a oficial mais antigo que o arguido, de preferência licenciado em direito para desempenhar as funções do ministério público, e a defesa é exercida por advogado ou, na impossibilidade, por licenciado em direito (artº.s 133º e 134º). Nestes tribunais, os processos não têm a fase de instrução e todos os prazos são reduzidos a metade[13] (artº. 137º).

O comandante militar, por imperiosos interesses da disciplina e segurança fundamentados, pode determinar a prisão do arguido e julgamento no tribunal militar extraordinário sem inquérito, servindo a proposta para constituição do tribunal de base ao processo e devendo conter o que está prescrito para a acusação. Nos crimes contra a missão das Forças Armadas e contra o dever militar, a base do processo é o parecer dum conselho de investigação, nomeado e composto por três oficiais mais antigos do que o arguido.

As decisões do tribunal são lidas ao arguido, indicando-se-lhe 48 horas para apresentar recurso, sendo a motivação apresentada no prazo de 7 dias (artº. 137º). Em caso de recurso, compete ao comandante militar determinar a situação em que o arguido aguarda a decisão.

A diminuição das garantias de defesa que este processo em tribunal militar extraordinário acarreta só se justifica em face da excecionalidade das circunstâncias da constituição deste tipo de tribunal militar.

 

Notas finais

Concluindo, podemos afirmar que a rutura da justiça militar, em 2004, corresponde a uma aproximação ao direito penal comum e a uma natural evolução do conceito de crime de natureza militar, pois este deixou de tutelar unicamente a hierarquia e a disciplina das Forças Armadas para tutelar igualmente bens jurídicos associados aos objetivos da defesa nacional.

Assim, atualmente, a justiça militar tutela a função militar e não o dever militar, que mantém a sua tutela em sede de procedimento disciplinar.

Apesar da extinção dos tribunais militares, o legislador considerou que os crimes que atentam contra os interesses militares da defesa nacional deverão ser julgados nos tribunais criminais, mas com juiz militar, porque a natureza dos ilícitos e a necessidade destes serem conhecidos e julgados por quem seja capaz de ponderar a sua influência nos interesses militares da defesa nacional exige juízes conhecedores da cultura militar, valores e tradições, dos aspetos operacionais da função militar, das ameaças e riscos a que os militares estão sujeitos e da pressão psicológica das ações militares. Assim, existem juízes militares nas várias instâncias criminais e as instâncias superiores julgam crimes de natureza militar também em 1ª instância.

No que respeita à investigação deste tipo de crimes, ela é tutelada pelo MP, assessorado por assessores militares e coadjuvada pela PJM, que é o órgão de polícia criminal com competência específica para investigar crimes estritamente militares.

Quanto aos tribunais militares, apenas serão criados em situação de estado de guerra declarado, com organização judiciária especifica. Por motivos ponderosos da justiça militar, devidamente fundamentados, pode ainda o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas ordenar a constituição “ad hoc” de tribunais militares extraordinários, fora do território ou das águas nacionais.

 


*  Intervenção no Centro de Estudos Judiciários, em 27 de junho de 2017.

[1]  Como, por exemplo, a independência nacional e a integridade nacionais, a liberdade e segurança das populações e a paz.

[2]    Os juízes militares são conhecedores da cultura militar, valores e tradições, dos aspetos operacionais da função militar, das ameaças e riscos a que os militares estão sujeitos e da pressão psicológica das ações militares.

[3]    Nos tribunais militares com foro pessoal, os militares eram aí julgados, independentemente da natureza do crime cometido, fosse crime de natureza militar ou crime comum. No foro material, o tribunal militar julga militares ou civis por terem cometido crimes de natureza militar, mas não julga crimes comuns.

[4]    Nos Regulamentos de Conde de Lippe, este auditor era privativo do regimento de infantaria ou de cavalaria (pertencia ao estado-maior do comandante) e integrava o conselho de guerra regimental sempre que este era constituído para julgamento dos autores de factos violadores dos Artigos de Guerra.

[5]    Durante o colóquio parlamentar sobre Justiça Militar, em 1994.

[6]    Os interesses militares da defesa nacional consagrados no CJM são: a independência e a integridade nacionais (de que são exemplo: a traição à Pátria; violação de segredo; espionagem; infidelidade no serviço militar); os direitos das pessoas (crimes de guerra; crimes em aboletamento); a missão das forças armadas (são exemplo: os atos de cobardia e abandono de comando); a segurança das forças armadas (de que são exemplo: o abandono de posto; ofensas a sentinela; entrada ou permanência ilegítimas em instalações militares); a capacidade militar (são exemplo: os crimes de deserção; dano, comércio ilícito; extravio, furto e roubo de material de guerra); a autoridade (são exemplo: os crimes de insubordinação e de abuso de autoridade); e o dever militar e o dever marítimo (são exemplo: o ultraje à Bandeira Nacional, perda ou abandono de navio).

[7]    A organização e a atividade das forças armadas baseiam-se nos valores fundamentais da missão, da hierarquia, da coesão, da disciplina e da segurança, nos termos do artigo 1.º do Regulamento de Disciplina Militar.

[8]    CJM 2003, artº. 4º, n.º 1, al. a).

[9]     Idem artº. 2º, n.º 1.

[10]    Ibidem artº. 107º.

[11]    Ibidem, artº. 49º, n.º 1.

[12]    A revisão constitucional de 1997 eliminou a possibilidade da lei, por motivo relevante, incluir crimes dolosos equiparáveis aos crimes de natureza militar na jurisdição dos tribunais militares, como estava prevista no n.º 2 do artº. 213º na versão anterior à revisão, o que a Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, que aprovava o regime de estado de sitio e de emergência, entretanto revogada, conformava no seu artº. 14º n.º 1 alínea g).

[13]    A celeridade em processo penal militar é mesmo uma exigência que prossegue fins de prevenção em teatro de operações. O Regimento dado para o Exercito, de 1708, preceituava-se que: “Não é possível conservar na devida obediência e disciplina a gente de guerra, sem pronto castigo dos delitos que cometerem, e não se pode conseguir com um dilatado processo porque, resultando desta dilação, ou ficam sem castigo ou executar-se-á tão tarde que já não faz impressão nos Soldados”.

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2018-01-18
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia