As considerações que se seguem serão genéricas, descondicionadas e descomprometidas. Não se seguirá a metodologia clássica, com apresentação de propostas baseadas em referências bibliográficas certificadas, ou em doutrinas aprovadas, assim como não existe outra motivação que não seja de natureza académica ou de exercício intelectual.
As reformas do ensino superior, ou a qualquer outro nível de ensino, devem ser isso mesmo: reformas. A revolução poderá existir quanto a um princípio, a uma ideia básica, nunca em relação ao sistema no seu conjunto, cuja reconstrução ou melhoria tem sempre um carácter evolutivo, relativamente lento. A título de exemplo aí temos o que se designou por Processo de Bolonha, iniciado há cerca de seis anos, na sequência de programas anteriores, e que deverá estar implementado apenas em 2010.
As razões para se seguir esta via da reforma parecem claras. Todas elas têm uma relação com o tempo. Apesar da construção prática se poder ir fazendo, peça a peça, ela deve no entanto ser concebida na totalidade, com uma ideia clara daquilo que se vai materializar ao longo do tempo - criar essa ideia, conceber esse plano, colocar cada uma das peças, leva tempo.
Os passos percorridos durante o período da reforma devem ser consolidados, e de sentido progressivo, isto é, segundo uma base segura, sem recuos ou variantes significativas, porque o sistema é complexo, e uma alteração num ponto específico pode afectar um número indefenido de outras áreas.
Por outro lado, uma reforma do ensino afecta uma geração; cria expectativas que não podem ser defraudadas pelo respeito que os visados devem merecer. Os avanços e os recuos nas reformas do ensino têm consequências nos universos para onde se dirigem, nem sempre fáceis de medir em toda a sua extensão.
Qualquer sistema, para se definir como tal, tem sempre a necessidade da informação de retorno, de “feedback” do seu resultado, para se auto-corrigir. A correcção automática, isto é, a reposição dos desvios em relação ao previsto no seu processo, é uma característica fundamental dos sistemas.
O sistema de ensino, a qualquer nível, tem sempre uma tendência natural para o encerramento sobre si próprio, para a estabilização, para se justificar por ele mesmo. No entanto, a sua finalidade está, em grande medida, no seu exterior - o seu objectivo fundamental deverá ser o de formar pessoas que irão cumprir as obrigações que a sociedade lhes reserva, assim como preservar e desenvolver os instrumentos intelectuais que irão fazer aumentar o conhecimento. Esta dualidade de objectivos exige equilíbrio, a todos os âmbitos.
É recorrente a afirmação de que a Universidade deverá estar ligada à sociedade, mas essa ligação só tem sentido no quadro deste equilíbrio entre ensinar como resposta ás necessidades previsíveis e adquirir conhecimento, livremente. E ainda aqui, o objecto do ensino, especialmente a nível universitário, deverá focar-se naquilo que é essencial para a apreensão das coisas, seja para aprender a actuar sobre elas, ou tão só para sobre elas reflectir e criar novas essencialidades, criar conhecimento novo.
Esta questão é pertinente porque a característica mais importante do nosso tempo é a velocidade com que ocorrem as mudanças; por isso muitas vezes se diz num tom crítico que se está a ensinar para uma sociedade que já não irá existir no final da formação de cada um dos formandos, isto é, quando o licenciado a ela fôr remetido.
E também é frequente a defesa, em resposta à crítica, de que a Universidade deverá mudar, pelo menos a uma velocidade tão próxima quanto possível da velocidade de mudança da sociedade onde está inserida. A crítica é contudo exagerada, a nosso ver, porque a Universidade necessita sempre dum prazo para a sedimentação do conhecimento novo, embora estes prazos devam ser cada vez mais encurtados, é certo.
Definir currículos académicos é uma tarefa ciclópica, porque implica fazer opções sobre o conhecimento disponível, definir o que é essencial para uma dada formação, tendo em conta os constrangimentos de tempo. As tentações para a simplificação, por causa da necessidade daquelas opções, podem produzir efeitos negativos de natreza substantiva, do ponto de vista do conhecimento. Mas não se trata apenas de uma questão de disponibilidade. É também uma questão de capacidade para criar e manter conhecimento.
O conhecimento não se serve como uma matéria inerte, imediatamente disponível, que esteja armazenada em qualquer local, pronta a servir; pelo contrário, implica esforço de aquisição, criação de quadros epistemológicos ou de espigões de fundação intelectual, para compreender um dado mundo, com vários graus de profundidade. Poderemos ter as maiores bibliotecas do Mundo e no entanto sermos os maiores ignorantes.
Para a concepção dos currículos interessa ajustar os produtos disponíveis de conhecimento, à capacidade da sua exploração completa, para atingir uma finalidade que é previamente definida.
A título de parêntesis, e a propósito do que se acaba de referir, ocorre-nos dizer que nos parece forçada a afirmação, de cariz político, de que nos encontramos numa sociedade de conhecimento. Isso só aconteceria se todos fôssemos sábios, o que não é manifestamente o caso. Ou então, que todos soubéssemos explorar todo o manancial de informação existente, que caracteriza a sociedade de informação típica dos nossos dias. Adquirir conhecimento corresponde sempre a um esforço, a buscar nas montanhas de informação aquilo que permite o relacionamento dos factos ou dos fenómenos e que leva à sua compreensão. Colocar a tónica no conhecimento para caracterizar a sociedade do nosso tempo, pode sugerir a eliminação da necessidade deste esforço, o que seria negativo para o desenvolvimento.
Qualquer sistema só será entendido se existir uma interacção entre aquele que o observa e os seus próprios elementos. Na transferência de informação entre um sistema e o observador, ou entre sistemas, ao nível semântico, tem que existir interacção mútua, e um universo de discurso que possa ser compatível. O universo do discurso é aqui entendido como o saber.
Nesta perspectiva, quando se deitam mãos à obra para reformar o sistema de ensino, não basta definir as matérias que deverão ser ensinadas. Será necessário definir métodos e requisitos de ensino, o que passa também pela definição das capacidades daqueles que ensinam. E neste particular, o requisito básico será o de se possuir uma visão correcta do Mundo que constituirá o objecto de estudo.
O primeiro agente da mudança é o professor, porque sobre ele recai o encargo de ensinar, e se as capacidades desse agente não estiverem à altura dos objectivos, talvez seja mais prudente baixar as aspirações, em vez de se continuar na senda idealista, sem correspondência com a realidade.
O sistema serve um propósito que é definido a montante, e não pode ser realizado apenas para se perpectuar; o ciclo fechado do sistema que se alimenta a si próprio pode ser uma característica de subdesenvolvimento; parece ser consenso considerar como um dos indicadores do subdesenvolvimento, entre muitos outros, a percentagem de licenciados absorvidos pelo sistema de educação, em relação à sua totalidade.
E o mesmo se aplica para os subsistemas dentro do sistema. Só por imposições de ordem prática, e de carência, se poderá aceitar a transição imediata de aluno para professor. A experiência da vida real deverá ser, teoricamente, um dos requisitos importantes na formação de quem ensina matérias teóricas.
Aquilo que se ensina deverá ser fundamentado, resistir à refutação lógica, e por isso se justifica alguma tendência conservadora do ensino. Mas não se deve confundir esta tendência com outro fenómeno que poderíamos chamar de autismo, ou ainda com uma outra situação em que se troca a objectividade e o essencial da formação por exigências de natureza burocrática ou administrativa.
A característica conservadora é perturbada, ou estimulada, no bom sentido, pela avaliação externa, pela investigação e pela capacidade crítica, e é por isso que estas actividades deverão ser complementares da actividade do ensino.
A investigação deverá ser, neste contexto, o estimulante do sistema de ensino. O ensino fornece as bases para a investigação, e esta cria a dinâmica de evolução do ensino, além da inovação a outros planos no âmbito da aplicação de conhecimento. Mas também aqui é muito importante ter em conta as capacidades para se fazer investigação, e procurar as melhores vias para se atingirem os resultados pretendidos.
O ensino público é sempre uma actividade massiva que está sujeita ao cumprimento de determinadas exigências formais. Se não existir uma ponderação correcta entre o que é formal e o que é substantivo, a tendência mais provável será a das exigências formais dominarem no sistema, em grande medida, o que poderá significar, na prática, que as exigências da quantidade prejudiquem, ou não acautelem devidamente, os requisitos de qualidade.
Estabelecer os critérios para a qualidade do ensino é outra das tarefas de elevada complexidade. Existe reflexão sobre este tema, e as Ciências da Educação deverão dispor dos instrumentos teóricos que permitam criar parâmetros em relação aos quais se possa aferir a qualidade do ensino, assim como metodologias para as correcções pertinentes.
Expendidas estas ideias, a esmo, que se aplicam na sua generalidade à problemática do ensino superior, embora algumas delas possam parecer distantes, passemos mais concretamente ao tema que é o objecto central deste artigo.
O que se designa por processo de Bolonha tem objectivos muito mais pragmáticos do que aqueles que superficialmente enunciámos acima. Visa essencialmente a uniformização, como instrumento para a integração europeia, em nosso ver. Mas os aspectos formais que dominam este processo irão constituir, assim se espera, um desafio importante quanto à reformulação substantiva.
De uma forma muito simplista, o que se pretende é equiparar graus académicos, de maneira muito transparente, de tal modo que um dado curso, com uma dada designação, num dado país, corresponda exactamente a um outro curso com a mesma designação, ministrado numa outra universidade e num outro país da União Europeia.
Para além da transparência, em termos curriculares (os cursos com a mesma designação têm a mesma duração, a mesma carga horária, as mesmas matérias), importa prever o reconhecimento dos perfis de qualificação.
O critério fundamental para o estabelecimento dos cursos superiores neste processo é a sua duração em anos lectivos, designadamente a consideração de dois ciclos: um primeiro ciclo com a duração de três anos e um segundo ciclo com a duração de dois anos. Este critério vai exigir que se definam para cada curso quais as matérias a incluir em cada um destes ciclos e períodos escolares. Será porventura este requisito aquele que irá exigir um maior esforço desta reforma, em especial pela dificuldade de conciliar dois princípios: um que refere que o ensino universitário deverá conter uma plataforma básica fundamental, como preparação ou bagagem para o ensino mais especializado, outro que preconiza uma preparação imediata para a vida profissional, por forma a acelerar o desenvolvimento em todos os sectores da sociedade. É claro que estes princípios se fundem num só, se complementam; a dificuldade está na tónica que se coloca no ensino superior, se muito mais virado para o imediato, para a prática, se muito mais preocupado com a fundamentação que permitirá adquirir e desenvolver a especialização prática.
Com todo este processo se pretende uma dimensão europeia em termos de educação superior, à semelhança do que acontece noutras áreas da construção europeia.
Os cursos deverão ser modulares, com base na noção de créditos, o que permite a mobilidade de estudantes entre estabelecimentos de ensino superior europeus. Mobilidade é também palavra de ordem para professores e investigadores.
Portanto, teremos como objectivo primeiro a uniformidade do diploma, para que os empregadores possam fazer uma selecção entre candidatos de todos os países, consoante as suas necessidades, no pressuposto de que os novos cursos serão orientados especificamente para o desenvolvimento que atingirá metas que colocarão a União Europeia no topo das potências mundiais. A título de parentesis, poderíamos dizer que mal andariam os empregadores se apenas se baseassem no diploma para o recrutamento dos seus quadros ou funcionários.
O objectivo a seguir, por ordem de importância, aquele que surgirá em primeiro lugar no tempo, é a mobilidade de professores e alunos dentro do sistema de ensino europeu. Prevê-se que todo este processo seja efectuado por fases, incidindo a prioridade de implementação, ou o projecto-piloto, em nove cursos (estudos empresariais, ciências da educação, geologia, história, matemática, física, química, estudos europeus e enfermagem).
De tudo o que se acaba de expôr, se estiver correcto, se poderá tirar a conclusão de que este processo não tem aplicação às Ciências Militares, de forma directa, podendo no entanto ter impacte, por via indirecta.
Em face desta situação, importa reflectir sobre o problema da integração do ensino superior militar, no sistema de ensino nacional. À partida, parece-nos que a equação deste problema não é linear.
A autonomia completa do ensino superior militar, sem quaisquer pontos de ligação ao ensino nacional, é uma solução que só será de considerar em situações muito particulares, designadamente quando existe uma grande massa crítica no interior da instituição militar, ou quando, por razões sociológicas, existe uma separação muito vincada entre o que é militar e o que é civil.
Fora destas situações, a Instituição Militar deverá recorrer ao sistema do ensino nacional, para preencher uma parte das suas necessidades em formação, segundo um leque de modalidades relativamente vasto. Estas necessidades serão basicamente as relacionadas com a formação científica de base, a nível universitário, ou mesmo alguma formação mais especializada que, por razões de custo benefício não devam ser realizadas dentro da Instituição. Mas também pode acontecer o contrário: determinados cursos úteis à sociedade, ministrados por obrigação curricular na Instituição Militar e que não existam, por qualquer razão, no sistema do ensino superior nacional, poderão ser acessíveis à população não militar.
É neste quadro que nos parece que o problema deverá ser colocado, sendo no entanto necessário adiantar o esclarecimento com mais precisão, desta posição, que não tem a pretensão de ser inovadora. Esta visão não será certamente subscrita por aqueles que defendem a dicotomia civil-militar ao transe, ou ao contrário, por aqueles que visam a descaracterização da Instituição Militar, que não lhe atribuem uma especificidade, que não aceitam a existência de um pensamento militar.
Em primeiro lugar, caberá sempre à Instituição Militar definir os requisitos de qualificação e de formação dos seus oficiais e especificar os conteúdos dos respectivos cursos. Não podem existir aqui condicionamentos que afectem, de forma significativa, a realização deste desiderato, admitindo-se no entanto que possam surgir algumas adaptações ou arranjos estranhos à definição dos requisitos, mas aceitáveis em termos pragmáticos e de custo benefício. E a Instituição Militar poderá efectuar esta definição apenas com os meios que internamente dispõe, ou com o apoio de agentes especializados. Em qualquer caso, a definição dos objectivos será sempre uma responsbilidade própria.
Em segundo lugar, e face a esses requisitos, deverá a Instituição Militar analisar as ofertas que o ensino nacional pode proporcionar, e selecionar aquelas que melhor satisfaçam as suas exigências. A caracterização que o ensino superior está a assumir, e que o processo de Bolonha parece anunciar, do nosso ponto de vista, facilita esta ligação entre o ensino superior militar e o ensino superior nacional. A possibilidade de variação da oferta e o seu carácter modular ajudará a configurar com maior precisão o ensino superior militar, apesar das finalidades pretendidas com estas metodologias serem diferentes: uma terá a ver com a uniformização e com a mobilidade, outra terá a ver com a multidisciplinaridade e com o melhor ajustamento entre a organização do ensino e a sua finalidade própria.
Em terceiro lugar, haverá que ter em conta que a formação militar contempla matérias que só se poderão ministrar nos estabelecimentos militares, e que constituem o que se poderá designar por núcleo duro da Ciência Militar, e que justifica a institucionalização do ensino superior militar.
A experiência histórica portuguesa nesta matéria é vasta e rica, porque tem contemplado soluções diferenciadas, desde a Aula de Fortificação e Desenho à Escola Politécnica, desde soluções de total autonomia até à cooperação com a Universidade, segundo várias modalidades.
Embora com adaptações para cada tempo, os conceitos gerais sobre o ensino superior militar têm mantido estabilidade, e as soluções encontradas ao longo desse tempo resultaram de conjunturas particulares que não cabe agora analisar.
A formação superior militar compreende três áreas relativamente diferenciadas, mas que se complementam. São elas a formação científica de base, que permita no futuro a aquisição de conhecimentos técnicos especializados com a profundidade que a função exige, a formação básica sobre liderança e gestão, que inclui a Ética Militar, e a formação técnica básica que permita as especializações futuras para a correcta exploração dos sistemas de armas, e que inclui as formas de emprego das forças armadas.
A formação superior militar tem por finalidade criar as bases para a exploração do conhecimento e para a fundamentação das práticas ao longo da carreira militar. Apenas uma muito pequena parte desta formação, a este nível, estará orientada para o desempenho das funções iniciais da carreira dos oficiais. Aqui reside a grande dificuldade em configurar o sistema superior de ensino militar, porque existe a tendência para valorizar demasiado a preparação para as funções do primeiro nível da carreira, quando ele deverá proporcionar conhecimento que sirva de base a toda a evolução ao longo da carreira.
A formação superior militar deverá conter as bases para a apreensão de conhecimentos ao mais alto nível da carreira militar. As funções, as exigências, os ambientes, as competências, as responsabilidades variam muito ao longo da carreira, mas o conhecimento básico ou fundamental que permite esta versatilidade ou evolução, deverá ser proporcionado no início da formação. Esta será porventura uma característica típica da profissão militar. O militar pode enfrentar situações para as quais não foi especificamente preparado, mas a sua formação inicial deverá proporcionar-lhe as capacidades para obter essa preparação específica. Esta deverá ser a principal potencialidade do ensino superior militar.
Este princípio pressupõe a formação contínua especializada ao longo da carreira, orientada para as correspondentes funções específicas típicas, e a auto-formação. Não é no entanto fácil conciliar estes objectivos. Muitas vezes é-se levado a incluir matérias na formação inicial que o deveriam ser apenas a partir de uma fase da carreira mais avançada, outras vezes tem-se a tendência natural para orientar a formação inicial para as funções específicas do primeiro posto da carreira, outras vezes mantém-se uma excessiva generalização de conhecimentos quando se já vai avançado na carreira.
A concepção sobre a formação militar deverá ser ampla, contemplando toda a extensão da carreira militar, para garantir o entrosamento eficaz. É preciso garantir uma relação custo/eficácia adequada, que as matérias não se repitam para os diferentes cursos, que não deverão ser de carácter recordatório mas sim inovatórios, actualizadores evolutivos da formação inicial, orientados para as funções típicas da próxima fase de carreira. Esta noção de conjunto deverá estar presente no desenho do ensino superior militar.
O ensino superior militar é òbviamente de nível universitário, se quisermos fazer qualquer tipo de equivalência. Esta consideração tem implicações quanto à natureza das matérias curriculares e aos métodos de ensino, naturalmente. Relativamente aos aspectos de investigação que têm sempre um reflexo no ensino, como já referimos, poderão igualmente ser remetidos para outras instituições fora do âmbito militar, segundo regras contratuais próprias que salvaguardem a segurança das matérias, quando fôr caso disso, e o ajustamento desta actividade com as necessidades institucionais. Esta temática, no entanto, deverá ser objecto de reflexão particular, e apenas se referiu pela sua associação ao tema central em debate.
Quando tratamos da questão da autonomia versus integração, e das posições intermédias porventura mais pragmáticas, não nos poderemos alhear de outros temas, que muito embora não sejam essenciais para o debate, influenciam as opções que se tomam relativamente a estas matérias. Uma delas é a da equivalência aos graus académicos nacionais, que usa dois tipos de argumentos: um, que é o da reivindicação da qualidade do ensino militar no contexto nacional, outro que é o da equiparação dos oficiais do quadro permanente aos académicos civis, para efeitos de habilitações ao mercado do trabalho, ou pura e simplesmente por uma razão de estatuto social.
Sempre considerámos estas questões laterais, o que não significa que não lhe atribuamos importância. São questões laterais porque a sua solução, ou não solução, decorrem naturalmente da capacidade que se tiver para se estabelecer, de facto, um ensino superior militar de acordo com as finalidades da Instituição e com aqueles princípios elementares que aflorámos.
Os aspectos formais muitas vezes sobrepoem-se aos aspectos substantivos, na vida das sociedades. É um facto real, que se deve ter em consideração, independentemente de qualquer julgamento de outro tipo.
Não se pode ignorar que a carreira militar, pela sua própria natureza, é relativamente curta, remetendo para a sociedade civil cidadãos aptos para o desempenho de outras funções. Contudo, a atitude que se foi erradamente criando acerca de tudo o que é militar, por razões que a Sociologia saberá porventura explicar, cria barreiras a esta transição, de facto. Por outro lado, a própria organização social tece malhas legais que se constituem como autênticas barreiras de exclusão, a um estranho ao sistema, por mais qualificado que seja - aqui o que interessa não será a realização dum fim elevado, de uma meta de progresso para a qual esse cidadão poderia eventualmente dar um contributo muito positivo, mas a protecção daqueles que já fazem parte do sistema, sem critério relevante quanto a qualificações. Ter-se-à que aceitar esta situação de competição, porque ela existe de facto, onde muitas vezes a racionalidade e a análise objectiva não prevalecem, relativamente aos interesses particulares. Esta situação muda com os tempos e com as sociedades. A relação civil militar é muito sensível às mudanças conjunturais ou às modas culturais.
Quando se entra em linha de conta com estes problemas, isto é, quando se orienta o ensino para proporcionar uma licenciatura oficial, naturalmente que surge uma obrigatoriedade de submissão à legislação relativa ao ensino superior nacional, em vários âmbitos, incluindo métodos e perfis de qualidade, entrando portanto no sistema nacional de avaliação, segundo os critérios do ensino massivo.
É interessante, a este propósito, sublinhar a posição da Comissão de Avaliação do Ensino Superior para as licenciaturas em Ciências Militares, no seu último Relatório, quanto a especificidades. Segundo a Comissão e em relação às Ciências Militares, a sua primeira particularidade é o carácter militar, isto é, o facto dos estabelecimentos de ensino superior militar se situarem inseridos numa linha hierárquica de comando, com nomeação pessoal dos responsáveis aos vários níveis, com uma dupla tutela e dependentes do Chefe de Estado-Maior do respectivo Ramo, com professores civis e militares, com os alunos em regime de internato e sujeitos à disciplina militar, com condições de admissão específicas e exigentes.
Estas são particularidades importantes a ter em conta, quando se procuram generalizações, que não irão mudar, diremos nós.
Não deixa a Comissão de chamar a atenção para o facto de não estar legalmente contemplada a possibilidade do sistema de ensino superior militar criar mestrados, o que parece ser uma consequência lógica e natural.
Sublinha ainda a mesma Comissão que a inovação curricular é difícil de introduzir, pelos trâmites processuais a que está sujeita.
Se consultarmos os Relatórios da Comissão Nacional verificamos que estamos perante dois mundos perfeitamente diferenciados, e não parecerá desejável que essas diferenças se esbatam, porque são de facto identidades diferentes. Aliàs, nunca esteve em causa colocar em questão esta realidade, por qualquer entidade responsável, ao que julgamos saber.
Há um outro aspecto desta problemática que nos parece interessante, relativamente à especificidade do ensino superior militar. Dissémos que a formação dos oficiais se vai fazendo ao longo da carreira, através de cursos oficialmente aprovados e a cargo dos Institutos respectivos. Ora para que esta continuidade se garanta será desejável salvaguardar a logística do conhecimento, no sentido de determinar a estrutura desses cursos, em função da própria evolução do conhecimento, da tecnologia, da natureza da confrontação militar, entre outros factores, que é certamente o que está a ser feito nas sedes próprias da Instituição Militar.
A tendência que parece estar a verificar-se nas Forças Armadas do Ocidente é a de as remeter para uma função técnica, apenas, retirando-lhes as funções tradicionais que sociologicamente eram consideradas como de reserva, em vários planos, e de inculcação de valores ou dos ideiais de Pátria. Esta tendência produzirá inevitavelmente uma relação nova entre o político e o militar, com um novo processo de tomada de decisão, e continua sendo acompanhada por uma redução nos recursos atribuidos, que haverá sempre de ser calculada pelo método do orçamento por objectivos concretos, ou de base zero, o que significa que cada projecto de despesa será escrutinado ao mais pequeno detalhe, sem relação com as actividades passadas, procedimento que parece ser de aplicação única à Instituição Militar.
Por outro lado, a aplicação do vector militar já sofreu, num passado recente, e está a sofrer de novo com as experiências actuais de guerra e de manutenção de paz, uma mudança profunda, sem lhe retirar no entanto a capacidade da violência racionalizada, quando todos os outros instrumentos da política falharem e seja imperativo a realização de determinados objectivos, entre os quais o da sobrevivência. Essa mudança tem a ver com a natureza das operações militares, com o seu enquadramento na finalidade política, com os avanços da Tecnologia que permitem realizar alguns dos objectivos, que no passado se considerariam como utópicos. E ao contrário do que às vezes se quere fazer crer, os militares serão muito menos robóticos e muito mais julgadores, na manipulação daquilo que já se chamou as forças armadas de laboratório. E será preciso uma formação de base muito mais sólida, em áreas de conhecimento diversificadas e profundas.
Nestes termos, tendo ainda em conta a mobilidade imposta pela programação de carreira, torna-se de grande dificuldade para a Instituição Militar realizar os objectivos do ensino superior, da logística do conhecimento, da investigação, de forma totalmente autónoma, apenas com os seus quadros, que deverão estar dedicados a tempo completo, e numa percentagem elevada, às tarefas mais imediatas da prontidão, para o cumprimento da missão primária.
Sem prejuizo das finalidades sumariamente apresentadas, vai ser inevitável o recurso a um exercício exigente de optimização das potencialidades do sistema nacional do ensino, em proveito da formação superior militar, sem prejuízo da caracterização secular da Instituição Militar e das prerrogativas da definição da configuração do sistema de ensino militar pelas autoridades militares pertinentes.
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* Sócio Efectivo da Revista Militar. Vice-Presidente da Assembleia-Geral.