Para quem segue as grandes questões de Segurança e Defesa no mundo, há um documento que é, sempre, muitíssimo aguardado: A Estratégia Nacional de Segurança dos Estados Unidos da América (EUA) – National Security Strategy (NSS). Desde que Donald Trump assumiu a presidência dos EUA, vínhamos assistindo a vários anúncios de alterações profundas na estratégia de segurança dos EUA, pelo que foi com, ainda maior, expectativa que lemos a NSS publicada no passado mês de Dezembro de 2017 (disponível para consulta em: http://nssarchive.us/wp-content/uploads/2017/12/2017.pdf – ver figura 1). Vamos fazer uma leitura, necessariamente breve, dos tópicos que pensamos serem mais relevantes para entender as mudanças, ou em alguns casos, as não mudanças, na grande Estratégia dos EUA.
Logo no início do documento, num prefácio por si assinado, o Presidente é claro: “Os EUA estão a liderar” e é sua vontade que assim continue. Liderar no mundo é um objetivo apenas possível a uma superpotência como os EUA. Em muitas das declarações públicas que temos ouvido (e lido no Twitter ), ficamos com a impressão, provavelmente errada, que os EUA queriam isolar-se e ignorar muitas das questões globais, mas a clarificação implícita nesta estratégia força-nos a concluir o contrário, porque quem quer liderar têm de se envolver. Ninguém lidera se a equipa não estiver com o líder e devemos assim entender que esta declaração inicial vai nesse sentido (as recentes declarações do possível retorno dos EUA aos Acordos de Paris sobre o Clima e sobre a política nuclear do Irão parecem ser um bom indicador).
Figura 1 – A National Security Strategy (capa).
O Presidente afirma que vivemos (tendência que se manterá nos próximos anos) num “mundo extraordinariamente perigoso”. Esta caracterização é também evidente, se vivemos num mundo perigoso ter-se-á que lidar com as causas, com todas as causas, que o provocam. Por uma questão de precisão, Trump aponta as áreas mais críticas: o “regime rogue (desalinhado?) da Coreia do Norte” e a “ditadura do Irão”, aponta alguns caminhos estratégicos como as “parcerias no Médio Oriente para derrotar e expulsar os terroristas”, elenca inúmeras formas para “cortar o financiamento e desacreditar a sua ideologia perversa” e garante que pretende “continuar a perseguir o Daesh até este estar destruído”. Por fim, anuncia que deseja “mais contribuição coletiva e fortalecimento das alianças”, inclusivamente pedindo (exigindo?) “maior contribuição de cada um dos aliados”. Vamos entrar no documento e tentar entender, em detalhe, como estas grandes linhas se materializam (ou não) em estratégias possíveis.
NOTA: A tradução das expressões usadas no documento é da nossa inteira responsabilidade e é, mais do que uma tradução fiel das palavras, o que nós entendemos serem as ideias por detrás da anunciada estratégia.
Na introdução afirma-se que são precisos “resultados e não ideologias” colocando a tónica em estratégias pragmáticas e realistas. A “segurança e prosperidade depende de nações fortes” que garantam, por um lado, a segurança dentro cada território e, por outro, que cooperem para a “impor” fora. O nexus interno-externo, colocando o fim das artificiais fronteiras entre segurança e defesa, fica assim plasmado – a segurança garante-se, simultaneamente e complementarmente, dentro de e fora de cada território nacional. Os princípios americanos “são uma força duradoura para o bem”, adianta a estratégia. Reforçam-se os valores, a herança democrática americana e os princípios contando-os com as organizações internacionais mais relevantes: a ONU e a OTAN.
Na página 2 (p. 2) os EUA reconhecem que já “não são a única superpotência”. A China e Rússia desafiam os EUA e, lê-se, “querem tornar as economias menos abertas e menos livres”. Estas potências estão a “aumentar o seu poder militar”, a “controlar a informação”, a “reprimir os seus povos e a expandir a sua influência”. Por outro lado, as “ditaduras da Coreia do Norte e do Irão” querem “destabilizar as suas regiões”, “ameaçar os americanos e seus aliados” e “brutalizar os seus povos”. Na sequência das reflexões do Presidente detalham-se os adversários: Rússia, China, Irão e Coreia do Norte. As formas de colocar em causa a segurança dos EUA tem múltiplas formas. Elege-se o “o poder dos dados” (p. 3) que são considerados fundamentais para fazer crescer a economia americana. Quando os EUA não lideram, há “poderes malignos” que o fazem. Quando os “EUA lideram todos beneficiam”. “Competição não é hostilidade”1, clarifica-se, mas exige-se ao povo americano uma “determinação para vencer”. São depois descritas (p. 4) as quatro áreas principais da segurança:
(1) Defender a América (território, pessoas e modo de vida) – Essencialmente através do controlo de fronteiras, reformando o sistema de imigração, evitando ataques terroristas e defendendo as infraestruturas críticas. Um grande esforço contra ameaças cibernéticas e assegurando um sistema de defesa antimíssil abrangente. Há uma lista restrita de ameaças (p. 7) que aprofundam as que anteriormente foram apontadas de forma genérica. Com a Coreia do Norte alerta-se para as armas nucleares; com o Irão apresentam-se as alegações do apoio a grupos terroristas e, seguindo nesta linha, exige-se a “destruição dos Jihadistas” como a al-Qaeda e Daesh. Estes dois grandes grupos, para além de fomentarem ataques em todo o mundo, são mentores de vastas políticas de radicalização. Alerta-se para “atores não estatais” que destabilizam as sociedades através de redes de droga e de tráfico de seres humanos. Por fim, alerta-se para a inevitabilidade da ocorrência de “desastres naturais” (já não aparecem referências ao “aquecimento global” como nas NSS do anterior Presidente). Contra qualquer tipo de ameaça aos EUA tem que “deter, disrupt e derrotar” antes que estas se materializam. O que se propõe é atacar as várias ameaças logo na origem (como os Jihadistas e as redes criminosas) e, se possível, desmantelar as suas organizações. As organizações terroristas são a maior ameaça contra os EUA (pp. 10-11) e, como tal, são necessárias informações (intelligence) para se poder fazer “ação direta em qualquer parte do mundo”, ou apoiando parceiros locais ou indo diretamente para destruir “santuários, redes digitais, financiadores” e, simultaneamente, “combater a ideologia demoníaca” propagandeada. A estratégia passa por encorajar os aliados a atuarem sozinhos sem apoio dos EUA e, dentro de cada território, trazer as comunidades para a ação (p. 14), ou seja, através de uma “cultura de preparação das comunidades” contra ameaças e perigos, através de planos e exercícios.
(2) Liderar em prosperidade (“promover a” na tradução literal) – Consignando esforço, recursos e prioridades em atividades de Investigação e Desenvolvimento. Privilegiar aliados que partilham valores e princípios idênticos (p. 20), ou seja, garantir a reciprocidade. Grande enfoque na “ciência e tecnologia” para atrair e reter inventores e cientistas. Proteger a propriedade intelectual, data (dados) e infraestruturas (p. 22). Conseguir manter a autonomia e o domínio da energia através de um equilíbrio entre as fontes, o desenvolvimento e a proteção ambiental.
(3) Deter os adversários preventivamente (o título exato é “preservar a paz através da força”) – O princípio é de evitar que nenhuma região do mundo seja dominada por uma só potência. Reforçar as capacidades de resposta, incluindo o desenvolvimento nos domínios do espaço e do ciberespaço. Revitalizar os outros domínios (terrestre, marítimo e aéreo) que, segundo se entende e tem sido afirmado repetidamente por muitas das chefias militares, ao longo dos últimos anos, têm sido fortemente negligenciados. Aliados bem preparados e equipados aumentam o poder dos EUA, pelo que se espera (reforçando o aviso inicial do Presidente) que cumpram a sua parte dessa responsabilidade. A ambição é elevada: “ganhar sempre” (p. 25). Os “poderes revisionistas2 da China e da Rússia querem criar um mundo antiético”. A China “quer expulsar os EUA da região”, usa a “informação, o autoritarismo, a corrupção e espionagem” para exercer poder e tem as segundas melhores Forças Armadas (FFAA) do mundo (as primeiras são naturalmente as dos EUA). A Rússia quer “restaurar a sua influência perdida”, divide os aliados dos EUA, atacando a OTAN e a União Europeia, melhora as suas capacidades nucleares, cibernéticas e, quando necessita, não hesita em recorrer a “técnicas subversivas”. Lidar com os “Estados rogue do Irão e da Coreia do Norte (p. 26)” implica um “poder integrado com os aliados” fazendo-se uso de todos os instrumentos do poder. Com os diplomatas negoceia-se partindo de uma “posição de poder” (p. 27). Há um reconhecimento de uma fraqueza quando se lê que “acreditámos erradamente que o domínio da tecnologia poderia substituir a redução em meios humanos e equipamentos nas FFAA”, que “as guerras podiam ser ganhas rapidamente”, a distâncias seguras e sem baixas. Dedicou-se demasiado tempo e gastaram-se imensos recursos em conflitos de baixa intensidade e, assim, os outros poderes ganharam vantagens em todos os domínios (ar-terra-mar-espaço-ciberespaço). É preciso deterrence em todos os domínios, incluindo o nuclear. Atuar numa perspetiva abrangente implica juntar entidades privadas e públicas (p. 28) e trabalhar lado a lado com os aliados, para criar uma “força conjunta forte”. Só assim se poderá negar possibilidades aos adversários e, também, criar o sentimento da necessidade nos aliados para adquirirem, modernizarem, melhorarem a prontidão, aumentarem a dimensão das suas forças e afirmarem a vontade política para vencer. “A dimensão das FFAA conta” (p. 29), pelo que se terá que comprar e adquirir rapidamente novos e melhores equipamentos, aumentar e modernizar forças “full-spectrum” capazes de atuar, tanto em apoio a desastres naturais como em guerras simétricas contra adversários poderosos. Surgem os novos conceitos Multi-domain e não-convencionais, sem esquecer as técnicas para enfrentar “guerras irregulares” estando sempre preparados para as indesejadas “guerras prolongadas”. É preciso aumentar a competitividade das empresas tecnológicas dos EUA (p. 30) e conseguir proteger mais de trinta países com as capacidades nucleares dos EUA, porque, explica-se, “assim eles não precisam de as ter” (ou seja, as conhecida assurance measures (https://shape.nato.int/nato-assurance-measures). Dominar no Espaço (p. 31), nas comunicações, nos sistemas de informações, em geral, e nos militares, em particular, na navegação e nas armas antissatélite. O espaço é “um domínio prioritário”. Aumentar o poder de fazer operações cibernéticas contra adversários (p. 32) e continuar os sistemas que permitem “fundir informações civis, militares, diplomáticas e económicas”.
(4) Aumentar a influência dos EUA – Fundamentalmente na defesa da “liberdade, da democracia e do respeito pela lei”. Tudo se resume a uma equação simples de entender. Para haver cooperação é condição essencial haver reciprocidade e, no mínimo, lutar pela aceitação destes valores tão caros à política dos EUA. Os EUA têm que tirar melhor partido em todas as organizações multilaterais em que participam para, de facto, beneficiar da sua ação e empenhamento (p. 40). Apoiar as iniciativas das empresas nos países em desenvolvimento (p. 37) e apoiar/reformar Estados frágeis (p. 40). O Afeganistão é dado como um exemplo. Usar a diplomacia, a economia e as FFAA de forma sincronizada (também designado como WoGA – Whole of Government Approach) (p. 41). Garantir a liberdade do multi-domínio para proteger a dignidade humana, porque “não ficaremos silenciosos em face do mal” e os EUA continuarão a sua política de: assegurar a liberdade religiosa, dar mais poder às mulheres e à juventude e reduzir o sofrimento humano (p. 42).
No contexto regional (p. 45), mantendo-se a estratégia anterior no que toca ao continente americano, destacam-se as vantagens enunciadas “em liderar” nas regiões do “Indo-Pacífico, da Europa, no Médio Oriente, no Sul e Centro da Ásia e em África”, sustentando adequados balanceamentos de poder:
(1) Indo-Pacífico: Contrabalançar a China e derrotar Coreia do Norte (p. 46). Apoiar a Coreia do Sul, o Japão, a Austrália, a Nova Zelândia e a Índia como poderes regionais. Manter o apoio às Filipinas, à Indonésia, à Tailândia, a Singapura, ao Vietname e à Malásia. Assegurar a liberdade dos mares (p. 47), tentar a desnuclearização da península coreana, apoiar a Austrália e a Nova Zelândia em estabilizar “estados frágeis e desastres naturais”. Reforçar a presença militar. Apoiar Taiwan.
(2) Europa: Conter a expansão da Rússia, da China e da ameaça jihadista. A OTAN ficará mais forte quando os europeus contribuírem mais (em 2024, devem gastar 2% em defesa) (p. 48).
(3) Médio-Oriente: Apoiar o Egipto e a Arábia Saudita (p. 49), manter uma presença militar na área, neutralizar a ação do Irão e apostar em mais defesa antimíssil.
(4) Centro e Sul da Ásia: Apoiar o Afeganistão contra os Talibãs e o Daesh (p. 50) e insistir com a Paquistão para se tornar mais interventivo. Os EUA querem países na região “resilientes” na sua não dependência das potências regionais (subentenda-se a China e a Rússia).
(5) Em África (p. 52): A estratégia é de apoiar, de sancionar os que não cumprem e proteger os interesses dos EUA. Uma parte da estratégia é o de fazer ligações mais estruturadas com organizações em vez de estados e, se necessário, “suspenderemos ajudas se desconfiarmos que estas estão a ser mal utilizadas”. A aposta no treino e reforço das capacidades das forças locais (policiais e militares, ou seja, a Reforma do Sector de Segurança) é uma prioridade desta estratégia (p. 53).
A NSS traz novidades e confirma anúncios e avisos que os EUA tinham feito nos meses anteriores. Os adversários têm nome e são descritos com um detalhe, até hoje não visto. Percebe-se que haverá mais hard-power mas apela-se ao smart-power na forma de usar todos os instrumentos do poder: diplomático, económico e militar, entre outros. Fundamentalmente, e talvez a pequena-grande novidade desta estratégia, é que se afirma, de modo inequívoco, que todos os instrumentos do poder americano serão usados no pleno da ação multi-domínio. Todas as dimensões que a poderosa indústria, a inovação, a investigação, o desenvolvimento, a formação e ensino de excelência, os recursos humanos em quantidade, qualidade, motivados e dignificados, permitem aos EUA uma superioridade que desejam ver garantida em terra, no mar, no ar, no espaço e no ciberespaço.
Não se pretendeu fazer um artigo descritivo, pelo que há inúmeras áreas, especialmente as de política interna, que optámos por não destacar. Apenas uma leitura total do documento poderá dar o entendimento completo de cada um. Esta síntese é, simplesmente, as nossas escolhas e o que pensamos serem as grandes diferenças “realistas” (p. 55) para o futuro.
Claramente que esta não é uma estratégia para a simples aplicação do poder militar, é muitíssimo mais do que isso. Novidades estratégicas não há muitas, mas sente-se uma nova atitude menos multilateral e os adversários estão claramente identificados. A “orquestra” está montada para que todos os instrumentos de poder dos EUA se desenvolvam de forma sincronizada para tentar afirmar que os EUA são mesmo “first” no e para o mundo.
“American power, make the world more free, secure, and prosperous.” (p. 55).
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* Agradecem-se os comentários e sugestões do Major-general João Vieira Borges e do Major de Engenharia João Correia.
1 “Assure allies, dissuade competitors, deter aggressors/adversaries and defeat enemies” mostra as linhas de continuidade da matriz estratégica americana “no matter the party” (http://www.jcs.mil/Portals/36/Documents/Publications/2015_National_Military_Strategy.pdf). Já era claro nos mandatos de Obama e de Bush.
2 Uma das três linhas explicativas da postura americana na Guerra Fria é o “revisionismo”. O revisionismo é apontado a William Appleman Williams, em “The Tragedy of American Diplomacy” (1959) (https://www.goodreads.com/book/show/37659.The_Tragedy_of_American_Diplomacy), onde defende que, no imediato pós-guerra, os EUA não se tinham limitado a reagir contra acontecimentos ou situações criadas pelos soviéticos, contra a política externa soviética, sendo, pelo contrário, também eles uma nação expansionista com ambições imperiais e, por conseguinte, motivada por interesses próprios. Este aspeto é destacado também pelo Professor Doutor Luís Nuno Rodrigues (IUL-ISCTE) num dos seus artigos sobre a Guerra Fria “O debate sobre as origens da Guerra Fria”, de 2010 (https://www.academia.edu/238895/O_debate_sobre_as_origens_da_Guerra_Fria).
Diretor-geral de Política de Defesa Nacional. Doutor em História, Defesa e Relações Internacionais.