Introdução
A Segurança, assim como todas as actividades que para ela contribuem, visa as pessoas. A segurança das pessoas é o objectivo central que se procura. Se não for esquecido este princípio crucial, reconhecese facilmente que o território - o espaço físico onde as pessoas vivem, morrem, e prestam culto aos seus maiores - assume importância primacial. Tal como, aliás, se deduz do teor das intervenções que me precederam.
Nestas condições, pode afirmarse que, em termos de defesa, o território é o núcleo da decisão final. Onde se situam as estruturas físicas, de toda a ordem, que as pessoas utilizam. Onde se travam sempre os últimos combates. Onde nos submetemos à vontade de outrem, ou conseguimos imporlhe a nossa vontade.
Defesa afastada
Genericamente, a primeira finalidade da defesa do território é impedir que as ameaças que sobre ele se podem configurar não o consigam atingir. Daqui a importância daquilo que se designa por defesa longínqua ou afastada, a efectuar em qualquer teatro de operações distante onde elas possam surgir. Se possível, deve mesmo evitarse mesmo que tomem corpo os meios que as materializarão, caso saibamos que existe elevado grau de probabilidade de virem a ser desencadeados e os seus efeitos sejam incomportáveis. Sim, tratase de agir preventivamente, quando indispensável. Do que resulta o papel fulcral dos serviços de informações, que constitui factor chave, em todas as etapas do processo de defesa do território, do qual dependem todos os outros.
Pelo que ouvimos quanto às ameaças previsíveis no actual contexto estratégico, há ameaças que podem exigir respostas do tipo das que estou a falar. Falo especificamente das de origem não estatal - criminalidades transnacionais organizadas e, especialmente, o terrorismo internacional -, mas também das de proveniência estatal, nomeadamente as que se desenvolvem sobre interesses estratégicos que são vitais para nós.
A maior parte destas ameaças terão que ser tratadas no quadro das organizações internacionais em que nos inserimos e das alianças a que pertencemos. Falo nas Nações Unidas, NATO, União Europeia, CPLP, e acordos de outro tipo, nomeadamente bilaterais. Mas não podemos descartar actuações individualizadas, desde que tenhamos relações especiais com um determinado país e ele esteja necessitado da nossa colaboração.
Estou a pensar em operações humanitárias, de manutenção ou imposição de paz, de estabilização pósconflito, mesmo de outras operações de baixa ou média intensidade, e, embora muito pontualmente, algumas reduzidas participações nas de elevada intensidade - mais como afloramentos que surgem nas de intensidade inferior, do que em operações de envergadura, aliás cada vez mais de muito baixa quase nula probabilidade de ocorrerem, nos nossos espaços de interesse estratégico próximo e imediato.
Capacidades
As forças com que deveremos agir, em todas estas circunstâncias, devem ser escolhidas em função dos seguintes princípios: 1) corresponderem a capacidades que respondam às ameaças com maior probabilidade de se materializar; 2) o seu levantamento e operação devem encontrarse ao nosso alcance, em termos económicos e financeiros, tendo em atenção as prioridades nacionais e os meios disponíveis; 3) serem de elevada “produtividade”, isto é, conseguir resultados superiores (por exemplo, afirmação internacional) com menores custos; 4) sermos especialistas nas tácticas correspondentes, e como tal considerados internacionalmente; 5) estarem orientadas para a satisfação de capacidades onde existam forças escassas nas organizações e alianças de que fazemos parte, o que aumentará o seu valor específico e as tornará altamente desejadas.
Destes princípios, facilmente se deduz que o grosso das forças portuguesas projectáveis deve ser constituído por unidades do Exército, na sua maioria ligeiras e altamente móveis, organizadas e equipadas com estruturas e material tecnologicamente adequado, com núcleos reduzidos de mecanizados e blindados. Deverão conter especialistas em operações especiais e ser, na sua maioria, forças com preparação especial (páraquedistas e comandos). Os destacamentos de fuzileiros especiais e as companhias de fuzileiros inscrevemse nestas prioridades.
No mesmo patamar de prioridade deverão situarse unidades oceânicas de superfície com capacidade de projectar poder, e os meios aéreos de transporte estratégico e táctico, bem como o navio polivalente logístico, como meio de transporte e desembarque marítimo. Em igual nível, podem ser considerados elementos pontuais de combate aéreo, mais para participação quase simbólica, de natureza política, em esforços conduzidos por alianças a que pertencemos, do que como força de combate expressiva.
Todas estas capacidades terão de ser acompanhadas dos respectivos apoios de fogos, apoios de combate e apoios de serviços.
Outras capacidades, se bem que interessantes e desejáveis, por aumentarem o nosso potencial, devem ser remetidas para segunda prioridade, tendo em atenção o binómio “ambiente estratégico que nos envolve - situação económica em que nos encontramos”.
Defesa Próxima e Imediata
O recurso a operações de defesa afastada nem sempre consegue impedir a materialização das ameaças ao território. Frequentemente, elas tomam forma e dirigemse ao território a defender, através dos diferentes espaços físicos de circulação. Esta hipótese exige ser respondida com meios de vigilância e defesa nos espaços aéreo e marítimo, afim de as travar. As ameaças com mais elevada prioridade de se materializar localizamse no âmbito das criminalidades transnacionais e do terrorismo internacional. A sua dimensão encontrase ao nosso alcance em termos de podermos gerar e accionar capacidades para as deter. Teremos de dispor de capacidades, tanto no domínio marítimo como no aéreo, destinadas a essa finalidade, o que também se inscreve na primeira prioridade.
Chamo novamente a atenção para o facto de ser verdadeiramente crucial a eficiência dos serviços de informações.
Capacidades
Os sistemas de radar existentes permitem controlar os espaços - marítimo e aéreo - meios ligeiros aéreos e navais, equipados com adequado equipamento electrónico, têm a possibilidade de os vigiar e, em alguns casos, de combater as ameaças que neles se movimentam; e alguns meios de combate, aéreos e navais, são indispensáveis para as neutralizar. Além desta defesa a distância, para barrar as ameaças em profundidade, até ao seu eventual ponto de aplicação, teremos de dispor, nas proximidades das áreas e pontos sensíveis do território, de sistemas terrestres, costeiros e antiaéreos, também capacidades de primeira prioridade. Aqui, no final do percurso das ameaças, forças dotadas de “pessoal intensivo”, embora com equipamento sofisticado, tendem a substituir forças de “material intensivo”, cuja área de operações se situa nos corredores de acesso terrestres, aéreos e navais que conduzem àqueles pontos e áreas.
Relativamente a esta parte específica da defesa do território, convém abordar, mesmo que sucintamente, os seguintes aspectos: exercício do comando e respectivo estadomaior, legislação, planos de contingência, meios humanos, e socorro.
Comando
A resposta a ameaças tão complexas e interdisciplinares, que abarcam múltiplas áreas, são incompatíveis com actuações sectoriais. Exigem respostas globais.
Para formular as modalidades de acção capazes lhes fazer frente, é indispensável o conhecimento das ameaças, a sua abordagem integrada, e uma análise conjunta dos especialistas dos vários sectores nelas interessados. Ou seja, terá de existir um órgão de staff, embora aligeirado, com representantes dos principais sectores normalmente envolvidos nas respostas e daqueles que, conjunturalmente, também nelas deverão participar. Este órgão deverá situar se ao mais elevado nível do Estado, dependendo directamente do PrimeiroMinistro, que assessora, assim como assessora, em função das respectivas competências, o Presidente da República e o Parlamento, além do órgão de consulta do PR para os assuntos de Segurança Nacional.
A este espaço de análise, tenho dado o nome de Gabinete para a Segurança Nacional (GSN). As suas funções permitiriam avaliar permanentemente a situação estratégica do país, elaborar os cenários que nos podem afectar e propor respostas convenientes. Assim como, periodicamente, e sempre que existam alterações sensíveis que o aconselhem, formular a proposta de Conceito Estratégico (de Segurança) Nacional. Deveria abranger as funções actuais do Gabinete de Crise (como componente de topo do sistema de gestão de crises já existente), substituindoo, para evitar desperdícios e sobreposições, e para garantir acção coordenada, pois ele inscrevese na actividade do GSN.
Neste gabinete deveriam ser preparadas as Directivas do PrimeiroMinistro para a elaboração de planos de segurança, que originariam planos sectoriais específicos, também por ele coordenados, como os planos de defesa de áreas e de pontos sensíveis, a que poderão corresponder planos específicos das Forças de Segurança e das Forças Armadas. Por exemplo, no Exército, cada uma das três Brigadas seria certamente chamada a elaborar planos para intervir em áreas de acção que lhes fossem atribuídas.
Legislação
O combate às ameaças, no território nacional, que podem necessitar do uso da força militar, deverá ter cobertura legal suficientemente clara, para evitar situações ambíguas, no caso de ocorrer a utilização de acções susceptíveis de limitar as liberdades e garantias constitucionais dos cidadãos e/ou desrespeitadoras dos direitos humanos.
Dada a incerteza quanto à origem das ameaças que se venham a abater sobre o território nacional, não é confiável a ligação esquemática das Forças Armadas apenas ao combate das ameaças externas, e as Forças de Segurança às internas. Para as ameaças com que, presentemente e no futuro previsível, teremos que lidar, o mais acertado é distinguir o emprego de forças, não em função da origem da ameaça, mas sim do seu grau de intensidade.
Este facto aconselha, a meu ver vivamente, que seja estabelecido um novo estado de excepção (possivelmente, no texto constitucional), que defina as condições de emprego da força durante a sua vigência, os elementos da situação que exigem o seu estabelecimento, e o papel de cada um dos órgãos de soberania na sua definição e formalização. Tal como a lei prevê, para a Situação de Guerra e para os Estados de Emergência e de Sítio. Esse estado de excepção, que seria de grau de exigência inferior a todos os outros, poderia designarse “Estado de Crise Interna”, a exemplo de um outro, paralelo, destinado a abranger situações de forças expedicionárias empenhadas em operações humanitárias ou de paz, que, em qualquer momento, poderão ter que entrar em combate, a designar como “Estado de Crise Externa”.
Defesa contra ataques inopinados
Referi-me, até agora, à actuação durante os estados de excepção, que são susceptíveis de permitir acções planeadas, e entram em vigor em momentos a definir, de acordo com a avaliação das circunstâncias estratégicas conjunturais, onde tem peso decisivo a análise permanente dos serviços de informações, a quem cabe fornecer os elementos chave para o estabelecimento do grau de alerta.
Mas pode surgir, a qualquer momento, uma acção inimiga inopinada, relativamente à qual não existem informações, ou a avaliação das informações existentes não concluiu pela necessidade de estabelecer um estado de excepção.
Para fazer face a estas ocorrências imprevistas, deverão existir mecanismos e estruturas préestabelecidas, nomeadamente, definição de autoridade e de competências, linhas de comando e meios e procedimentos de comunicações a adoptar, assim como planos de contingência a entrar em vigor.
Sistema de Forças Permanente e Sistema de Forças Necessário
Uma questão muito sensível em toda esta problemática é a existência de meios humanos e materiais disponíveis, em graus de prontidão compatíveis com a resposta a dar às ameaças. Esta questão colocase essencialmente para as forças terrestres, já que as aéreas e navais, que forem tidas como necessárias para fazer face às ameaças consideradas prováveis, dificilmente precisarão de ser expandidas, porquanto a previsão efectuada deve ter em conta a dificuldade de uma expansão rápida, e ainda porque o tipo de ameaças espectáveis não exige meios vultosos.
Os sistemas de forças aprovados para as forças terrestres têm sido calculados especialmente para operações em teatros de operações situados no exterior do território nacional, ou seja, para a defesa afastada do território. Além das necessidades relacionadas com a estrutural territorial, de expressão mínima no contexto estratégico actual, bem como as dos serviços de obtenção e mobilização de pessoal, de formação, instrução e treino, de ensino, e toda a panóplia dos serviços logísticos. Nestas condições, os sistemas de forças permanentes (SFP) são reduzidos.
Para actuar em situações de violência de intensidade superior à normalmente exigida em termos de ordem pública, o sistema de forças português inclui um corpo militar específico, a GNR, cuja preparação abarca a execução de operações policiais, em situações onde aquela intensidade não tenha lugar, as mais comuns. Será esta força que seria empenhada em primeiro escalão contra as ameaças do tipo das que estamos a considerar (criminalidades transnacionais organizadas e acções terroristas). Ela seria suplementada por forças terrestres do Exército, se a situação o aconselhasse. Aproveito para registar a actual ambiguidade entre as competências e os dispositivos da PSP e da GNR, que não reflectem claramente os racionais que as justificam. Urge terminar com esta situação, que pode conduzir a medidas demagógicas.
As operações de mobilização para reforçar estas forças tenderão a ter cada vez menor expressão, uma vez que os cidadãos que efectuaram serviço militar são cada vez menos. E essa mobilização, a verificarse, aumentaria o SFP, mas introduzindo no serviço activo militares sem preparação e treino, portanto necessitados de tempo relativamente prolongado para se encontrarem em condições de operar.
Acresce o facto das Forças de Segurança se encontrarem dimensionadas em função das necessidades próprias de tempos de acalmia, durante os quais não existem alertas que exijam a colocação do pessoal nos seus postos, em tempos escassos para a sua ocupação. É do conhecimento geral que a segurança de pontos sensíveis normalmente não defendidos (como é o caso dos potenciais alvos de atentados do terrorismo espectáculo), é extraordinariamente exigente em pessoal.
Deduzse de tudo o que foi dito que, numa situação de alerta com elevado grau de prontidão, não existem efectivos suficientes para garantir segurança. E esses efectivos deverão ser do Exército. Isto é, o sistema de forças necessário (SFN) para fazer frente a determinadas ameaças, principalmente ao terrorismo, precisa de muitos mais efectivos do que o existente no Sistema de Forças Permanente (SFP), mesmo que ele esteja totalmente presente no território nacional, o que poderá não ser o caso. E estes efectivos terão de estar devidamente armados, municiados e enquadrados e com grau de prontidão suficiente.
Presentemente, o país não está em condições de resolver este problema. Conforme vimos, a mobilização, tal como existe, não é satisfatória.
A solução terá de passar por uma estrutura parecida com a que os Estados Unidos possuem, embora à nossa dimensão. Organizar uma força tipo Guarda Nacional, constituída por voluntários, que sejam preparados e permanentemente treinados para responderem às necessidades apontadas, e ainda estabelecer mecanismos de treino, que permitam aos militares que passem à disponibilidade estarem em condições de serem mobilizados com elevados graus de prontidão.
Socorro
Quanto ao socorro, apenas um apontamento para lembrar que, falhados todos os métodos de prevenção e detenção, e concretizada a ameaça, tornase indispensável um socorro eficaz. Isto exige medidas alargadas e complexas de preparação, grande actividade de planeamento e treino, e grande agilidade na execução. A sua responsabilidade pertence ao Sistema Nacional de Protecção Civil, do qual fazem parte as Forças Armadas, que podem ser chamadas a participar com alguns dos seus meios.
Síntese conclusiva
1. A defesa militar do território, efectuada a distância contra ameaças que sobre ele há probabilidades de serem desencadeadas, é razoavelmente ávida de forças terrestres, especialmente daquelas que têm preparação especial (comandos, páraquedistas e fuzileiros), assim como de forças especiais. Nas alianças a que pertencemos, forças terrestres são raras, portanto um “bem escasso”, o que aumenta os resultados (em termos de afirmação internacional) do seu emprego, para o país que estiver em condições de as disponibilizar. A “produtividade estratégica” destas forças será superior à generalidade de outros tipos de forças.
Acresce que as forças terrestres portuguesas são internacionalmente reconhecidas como especialistas nas operações de contrasubversão, e de elevada qualidade nos diversos aspectos em que têm sido chamadas a actuar.
Por outro lado, as forças terrestres, mesmo equipadas com material tecnologicamente adequado e actualizado, como devem ser, podem ser consideradas relativamente económicas, em comparação com os equipamentos normalmente muito dispendiosos das forças que agem nos ambientes marítimo, aéreo e espacial. O que reforça o acerto de lhes conferir prioridade nos Sistema de Forças, tendo em atenção a dimensão económica do nosso país, especialmente agravada no curto/médio prazo.
2. Relativamente às ameaças que se movimentam pelos corredores de acesso ao território e por aqueles que lhes permitem alcançar as áreas e pontos sensíveis susceptíveis de ser visados, haverá que dispor de capacidades para as barrar com eficiência. Tanto capacidades aéreas e navais, como terrestres, embora as ameaças mais prováveis exijam prioritariamente capacidades não militares (de natureza política - externa e interna - ideológica, económica, social, etc.) e policiais, desempenhando as capacidades militares um papel mais supletivo do que primário (embora, em alguns casos, quando as capacidades existentes são exclusivas, também o desempenhem).
A existência de um órgão de staff com capacidade de assessorar o PrimeiroMinistro é essencial, além do Presidente da República, da Assembleia da República e do órgão de consulta do PR em assuntos de Segurança Nacional.
Esta linha de comando interdisciplinar, coordenando estreitamente as várias actividades sectoriais, terá de prolongarse com: 1) legislação adequada, definindo regras de empenhamento, com clareza e sem ambiguidades, e estados de excepção precisamente delimitados relativamente a quem e como são estabelecidos; 2) normas de execução permanente prévias, que permitam responderem, rápida e eficazmente, a ataques inopinados; 3) sistemas de forças necessários ajustados, em pessoal, às exigências da defesa de áreas e pontos sensíveis, o que aconselha a prever outras fontes para a sua obtenção, para lá do sistema de forças permanente; 4) actividades de socorro correctamente comandadas, coordenadas, treinadas e motivadas.
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* Conferência proferida no seminário “Portugal - Território, Segurança e Defesa”, na Academia Militar, em 21 de Maio de 2005.
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** Sócio Efectivo da Revista Militar.