Nº 2596 - Maio de 2018
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Nuno Álvares Pereira. Guerreiro, Senhor Feudal e Santo

Nuno Álvares Pereira.
Guerreiro, Senhor Feudal e Santo

Os Três Rostos do Condestável

João Gouveia Monteiro

 

O Professor João Gouveia Monteiro concedeu aos leitores a biografia de Nuno Álvares Pereira, a figura histórica mais conhecida e admirada do nosso tempo medieval, depois de D. Afonso Henriques. Ícone Português, o seu tempo fechou o ciclo fundacional da Nação Portuguesa, um espaço temporal de dois decénios firmado pela espada e pela cruz e que tem no Condestável que foi e no Santo que é a simbiose perfeita do Estado-Nação que somos! A sua vida e obra cala fundo no imaginário português, sendo o homem um modelo de virtudes, o militar um «saber de experiência feito» e o santo a exaltação espiritual de um humilde.

Poder-se-ia supor que abundam os estudos biográficos de largo espectro do Condestável, sobre o senhor nobiliárquico, o santo carmelita ou, até, assente numa abordagem multifacetada do personagem. De todo, sobressaindo as representações iconográficas, exaltações patrióticas de púlpito ou publicadas, artigos sobre esta ou aquela faceta, obras de carácter geral ou publicações populares. A Instituição Militar, em particular o Exército, destaca-o enquanto modelo de comandante militar, ensinando nas escolas militares a inovação táctica revelada pelo Fronteiro do Alentejo, na Batalha de Atoleiros (6 de abril de 1384), a concepção estratégica e a ordem de batalha delineadas em Aljubarrota (14 de agosto de 1385), coroa de glória do Condestável, e a audácia ofensiva de um chefe militar consagrado, desencadeada em Valverde (14 de outubro de 1385). D. Nuno Álvares Pereira é o patrono da arma de Infantaria do Exército Português, o 14 de agosto é assinalado como dia da Arma e Atoleiros marca a efeméride da Brigada Mecanizada do Campo Militar de Santa Margarida. Mas o meio castrense não distinguiu o comandante militar com uma monografia a contento. O mesmo acontece com a Igreja, que cinge o homem de fé a pequenos ensaios, para já não falar do vazio existente sobre o senhor nobiliárquico.

Talvez por se tratar de uma figura temporalmente longínqua, afinal viveu há 600 anos, discernir documentalmente sobre a complexidade biográfica de D. Nuno implica ter ciência, arte e conhecimento de causa para trabalhar o seu vasto e multifacetado canteiro. Foi esta dimensão intelectual que permitiu ao Professor João Gouveia Monteiro (JGM) ir «mais fundo», por exemplo, que o quadro épico e ético traçado por Oliveira Martins, em A Vida de Nun’ Álvares (1893), não sucumbir aos méritos do personagem, romanceando-o, como acontece em A Vida Grandiosa do Condestável, de Mário Domingos (1957) e chegar «mais longe» relativamente à interessante biografia desenhada cronologicamente por Jaime Nogueira Pinto, em Nuno Álvares Pereira (2009). JGM escreveu a biografia de Nuno Álvares Pereira. Uma biografia, como o próprio informa, não circunscrita à sua vertente militar, à sua figura religiosa ou à sua condição de grande senhor feudal e de actor político de uma época decisiva da história portuguesa. A sua vida, analisada e descrita com profundidade académica e distensão literária, é apresentada em forma de tríptico, os “Três Rostos do CondestávelGuerreiro, Senhor Feudal, Santo”. Cientificamente sustentável e com preito de cidadania, o autor apoia-se em fontes coevas e em exaustiva documentação disponível (oportunamente explicada no primeiro capítulo), escrevendo na primeira pessoa, de forma espontânea e em tom intimista. No fundo, JGM submete a vida do D. Nuno chefe militar, senhor feudal e santo à crítica da Academia e à apreciação do público em geral.

O capítulo 2. “O General Invencível e o seu Exército” releva, ao longo de cerca de 90 páginas, a faceta mais conhecida e heróica de D. Nuno, temática de que o autor é mestre reconhecido, através de obras sobre a Guerra em Portugal em Finais da Idade Média e a Batalha de Aljubarrota, por exemplo. D. Nuno é colocado, inicialmente, no ambiente familiar de proveniência e no contexto bélico da corte de D. Fernando, onde fez o tirocínio de armas. Segue-se, no âmbito da crise despoletada em 1383, a sua adesão ao partido de D. João, Mestre de Avis, e a sua oportunidade de se mostrar militarmente enquanto Fronteiro do Alentejo, onde se notabiliza contra a hoste castelhana, através da vitória dos Atoleiros. Doravante, D. Nuno é um comandante militar sempre em actividade, pelejando nas imediações de Lisboa, onde D. João está a braços com apertado cerco castelhano, no Alentejo, a organizar gente para a guerra ou a controlar a raia ou, no Minho e em Trás-os-Montes, na procura de submissão de praças à vontade do Mestre de Avis. Entretanto, já como condestável, os feitos de Aljubarrota, a mãe de todas as batalhas do Exército Português, conforme o autor gosta de se lhe referir, e Valverde, são-nos descritos com minúcia técnico-militar. Neste particular, o autor lembra que D. Nuno, mais do que um inovador, foi um comandante que soube aplicar no terreno o “modelo tático inglês”, fazendo uso judicioso dos parcos recursos humanos, técnicos e logísticos ao seu dispor. Um modelo triunfante na Guerra dos Cem Anos face à França.

O estado de guerra com Castela continua até ao virar do século, sendo possível ver quão audacioso D. Nuno é no comando das suas tropas e generoso para os seus homens, por um lado, e implacável durante as pelejas, mas com falta de tacto diplomático nas negociações com o inimigo, por outro. A relação comprometida, mas nem sempre convergente, de D. Nuno com o D. João I, é um dos temas mais enigmáticos e interessantes com que somos confrontados, que não são do senso comum, em que o choque de personalidade entre o líder político e o chefe militar mergulha o reino, a espaços, numa crise interna. Que vai sendo sanada a bem do interesse público, como o demonstra, por exemplo, os laços de sangue firmados com o casamento de D. Afonso com D. Beatriz, filhos de ambos. Antes de terminar o capítulo, com um oportuno e impecável “Balanço de um chefe militar”, o autor explica em que medida D. Nuno Álvares Pereira foi tido e achado na conquista de Ceuta, em 1415.

O Senhor Feudal e o seu Património” é a faceta número dois de D. Nuno. Analisada no capítulo 3., pormenoriza os bens patrimoniais, financeiros e nobiliárquicos angariados, e mais tarde despojados, ao longo da sua longa e venturosa carreira política e militar. Esta é, porventura, a faceta que menos tem apaixonado os historiadores, que usualmente saltam do guerreiro para o santo e deixam ficar inculta uma «terra de ninguém», que é também sua imagem de marca. Em mais de 50 páginas, JGM identifica e caracteriza o mais importante senhor feudal do seu tempo, que marcou indelevelmente a nobreza portuguesa dos vindouros.

Emerge com a ligação à família dos Pereira e ao progenitor, Álvaro Gonçalves Pereira, grande senhor e prior da Ordem do Hospital, que o encaminhou para os meandros da esfera do poder real na corte de D. Fernando, o colocou num contexto de herança patrimonial e de interação no Alentejo e o mergulhou na influência sócio religiosa. Depois, com as vitórias alcançadas nos campos de batalha contra os castelhanos, D. João I reconhece o inestimável papel desempenhado pelo Condestável, concedendo-lhe um património e respectivas mercês e rendas, de tal dimensão que o torna no homem mais poderoso e rico do reino, depois do próprio monarca. D. Nuno é Condestável do reino, Mordomo-mor do rei e conde de Ourém, de Arraiolos e de Barcelos, proeminência que o torna admirado, mas também temido e invejado, nomeadamente pelos seus pares da corte. D. Nuno era cioso dos seus pergaminhos de casta e o choque com o rei, entretanto receoso da dispersão da sua autoridade e centralidade régia, acontecem e são novamente dissecados no livro.

Com o virar do século, vemos D. Nuno numa fase de despojamento material, através de doações: primeiro, como dote pelo casamento da filha Beatriz com Afonso, filho mais velho e entretanto legitimado de D. João I (1401); depois, ao Convento do Carmo (a partir de 1404); e, por fim, aos netos Afonso, Fernando e Isabel, antes da entrada no Carmo (1422). O capítulo encerra com uma minuciosa descrição da idealização, projecção e construção do Convento do Carmo, o legado mais importante do Santo Condestável, no dizer do autor. Por fim, à semelhança do capítulo anterior, o autor presenteia o leitor com um “Comentário Final”.

O Capítulo 4. “Um Eremita da «Pobre Vida» no Mosteiro” distingue-se pela robustez do número de páginas, a abrangência e profundidade da abordagem religiosa da época em apreço e a especificidade original da vida monástica do donato carmelita. Em jeito de cenário enquadrante das “motivações profundas” da opção religiosa de D. Nuno, o ambiente, as ordens e as vivências religiosas medievais são amplamente dissecadas, exemplificadas com “fuga mundi – histórias de vida exemplares” portuguesas. Segue-se a “Ordem do Carmo – fundação, percurso e instalação em Portugal”, avança para “O Sul e o santoral guerreiro”, fazendo assim ligação com o caráter religioso e guerreiro (Ordem do Hospital/Crato) da família de Nuno Álvares Pereira. Neste contexto, o estudo feito a São Jorge e a Santiago, santos invocados como intermediários de Deus para a justiça nas batalhas, merece um particular aplauso, pois permite perceber os “quês e os porquês” de portugueses e castelhanos darem o grito de guerra «por Santiago ou São Jorge» antes de arremeterem contra o inimigo. JGM prossegue com a religiosidade a sul do Tejo, vai ao encontro dos “eremitas em Portugal” e as benfeitorias da Casa de Avis e «descobre», então, os eremitérios da Serra da Ossa e da região de Setúbal, cujos religiosos terão tido uma influência decisiva no «mergulho» de D. Nuno na pobreza, oração, castidade e caridade monásticas. Nas 40 páginas seguintes do capítulo, o autor desenvolve “A religiosidade de Nun’Álvares: uma reinterpretação”: a decisão de abraçar a causa monástica e entrar no convento e os esforços feitos por terceiros para o demoverem; a vida no Carmo, as “luzes e sombras” da sua vida religiosa, o passamento, a sepultura e o culto popular do Santo Condestável. São páginas únicas (e pouco conhecidas) de uma vida espiritual que dá a conhecer, com todo o seu esplendor e rigor, a memória de um santo homem que percorre os séculos até atingir a beatificação e a canonização. Por si só, este capítulo é uma pérola literária.

Esta biografia de Nuno Álvares Pereira é de autor. João Gouveia Monteiro, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, é um insigne académico, reputado historiador e referência maior da História Militar Medieval Portuguesa. Estudando há três décadas o ambiente medievo em que se movimentou D. Nuno, ninguém melhor do que ele para esculpir biograficamente um personagem que «alimenta» muita da investigação que tem desenvolvido. Este estudo pode bem ser encarado como um ponto de chegada biográfico sobre Nuno Álvares Pereira. O autor refere no Posfácio que “o meu objetivo foi (…) oferecer a um público alargado uma obra abrangente e tão fundamentada quanto possível”, acrescentando que “este é um livro para todos, admiradores ou não da figura histórica do Condestável, adeptos ou adversários da sua canonização, crentes ou não crentes”. O mérito maior da presente obra (e tem muitos) é o de finalmente conhecermos D. Nuno para além do nome feito de epopeias e santidade; ele é o guerreiro, o senhor feudal e o santo, três rostos que esculpem um homem histórico extraordinário apresentados num livro de exceção.

 

Tenente-coronel
Abílio Pires Lousada
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2018-09-19
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Tenente-coronel

Abílio Pires Lousada

Militar Historiador. Sócio Efetivo da Revista Militar. Co-Diretor da Revista Portuguesa de História Militar.

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