“Foi mister esperar até aos começos do século XX para que se presenciasse um espectáculo incrível:
o da peculiaríssima brutalidade e agressiva estupidez com que se comporta um homem
quando sabe muito de uma coisa e ignora de raiz todas as outras.”
A Missão da Universidade, Ortega y Gasset 1
Introdução
Como outros aspectos da integração europeia, o Processo de Bolonha faz sobressair as tensões entre os desígnios europeus e as soberanias nacionais; a óbvia ligação destas ao ensino superior militar (ESM) obriga a reconhecer a tensão entre Bolonha e este regime. Talvez tão relevante, é a tensão entre Bolonha e a tradicional autonomia universitária, de que, embora dum modo muito especial, o ESM gozava.
De facto, ao visar o incremento da mobilidade dos estudantes universitários na Europa, Bolonha colide directamente com princípios tradicionais e estruturais do ESM; entretanto, na Marinha, reforma o velho debate “mais académica versus mais técnica” formação dos oficiais. Com outra origem, e coerente com Bolonha, o sistema de avaliação do ensino superior veio também ajudar a reformar este debate.
Neste artigo, o autor propõe-se analisar os traços essenciais do enquadramento do ESM na Marinha, reconhecendo os seus antecedentes históricos e as condicionantes actuais; conclui que a Marinha melhora se passar a adoptar um modelo novo consistente com as actuais realidades: a Escola Naval (EN) deixará de ministrar cursos de licenciatura, e passará a ministrar só pós-graduações profissionalizantes; assim, a Marinha recrutará só licenciados para o ingresso na categoria de oficial dos Quadros Permanentes (QP) e dos Regimes de Voluntariado (RV) e de Contrato (RC).
O autor tem consciência do choque cultural e material que supõe na Marinha (e nos outros ramos) a conversão dos Estabelecimentos Militares de Ensino Superior (EMES) em escolas técnicas de oficiais; e tem consciência da originalidade da solução que propõe. Apesar da provável redução de despesas para o país, e a necessidade de integrar em pleno o modelo de formação superior militar nacional nos sistemas nacional e europeu, a perda do poder de direcção dos ramos sobre a formação dos futuros oficiais e um downgrade dos EMES chocam muitas pessoas. Por isso, o autor acha provável que esta seja uma reforma para uma década e, além disso, que exige o maior empenho ao mais alto nível.
Alguns Antecedentes Históricos Relevantes 2
Com Bolonha, fica resolvida em definitivo a polémica sobre a utilidade do grau académico na carreira dos oficiais. Esta polémica, entre “homens do mar” e “matemáticos”, tem a sua raíz nas Descobertas: Pedro Nunes3 (1502-1578) criticou a ignorância dos homens do mar; e estes criticavam-no por “debitar sabedoria” sobre a arte de navegar, sem nunca ter posto os pés num navio. D.Maria I resolveu a polémica determinando que os “homens do mar” passassem a estudar matemática: “vencidos mas não convencidos” - tal como ainda hoje os herdeiros desta polémica4.
Até finais do século XVIII, as funções militares e diplomáticas hoje desempenhadas por oficiais da Marinha estavam nas mãos da nobreza, e os navios eram plataformas de transporte de soldados; por isso, os oficiais pouco sabiam de arte náutica - a manobra e a navegação eram conduzidas por homens para quem o mar era o sustento de toda a sua vida e cujos conhecimentos eram transmitidos pelos mais velhos. Com o desenvolvimento da artilharia e sendo a táctica bastante dependente da perícia da manobra, os nobres passaram a sentir a necessidade de desenvolver os seus conhecimentos sobre náutica. Mas o seu processo de aprendizagem era semelhante ao dos pilotos: o jovem nobre embarcava para se formar como marinheiro a bordo.
Com o final do século XVIII, as reformas do ensino do Marquês de Pombal e os desenvolvimentos científicos e tecnológicos já então sentidos, surgiu a profissão de engenheiro5. Pelo seu lado, a condução dos navios também evoluiu, tornando-se cada vez mais dependente de conhecimentos de matemática, os quais implicavam uma formação pouco compatível com a vida a bordo. Surgiram assim três entidades vocacionadas para a formação académica de oficiais da Marinha:
• Academia Real de Marinha (Lisboa, 1779). Não visava apenas formar pessoal destinado a servir a bordo, mas sim ministrar a formação académica necessária a vários ofícios, incluindo o de oficial da Marinha; por alguns anos, a sua frequência foi condição de acesso a esta carreira.
• Academia Real de Guardas-Marinhas (Lisboa, 1796). Em 1762 foi criada a Classe de Guardas-Marinhas (equiparados a alferes do Exército) para enquadrar os jovens nobres que iam servir como oficiais da Marinha. Dada a fraca adesão, foi extinta em 1764, sucedendo-lhe os Voluntários da Armada, os quais, ao ser criada a Academia Real de Marinha, passaram a ter de frequentá-la. Em 1782, o ministro Martinho de Melo e Castro criou a Companhia Real de Guardas-Marinhas, uma estrutura militar destinada ao enquadramento dos futuros oficiais da Marinha. Os seus membros frequentavam a Academia Real de Marinha, transferida em 1792 do Colégio dos Nobres para a Sala do Risco do Arsenal, onde funcionava a Companhia Real de Guardas-Marinhas. Com a criação, em 1796, da Academia Real de Guardas-Marinhas, as estruturas militar e académica reuniram-se.
• Academia Real da Marinha e Comércio (Porto, 1803). Criada por comerciantes que sentiram que o desenvolvimento da profissão de oficial da (futura) marinha (mercante) era essencial à evolução e ao crescimento do comércio.
Na Academia Real de Guardas-Marinhas dava-se formação académica e militar, incluindo natação, esgrima e exercícios militares. Mas a componente mais importante continuava a ser a prática no mar, transmitida pelos oficiais mais antigos. Além disso, ser oficial de Marinha obrigava a saber etiqueta; mas como a Academia recebia alunos sem tal educação, a formação dos jovens mancebos incluía a frequência de eventos sociais, organizados pelo comandante da Companhia de Guardas-Marinhas.
As principais instituições portuguesas, entre as quais a Academia Real de Guardas-Marinhas, com todo o seu espólio e corpo docente, seguiram com a família real para o Brasil. Com a independência do Brasil (1822), muitos dos seus professores optaram por ficar na escola brasileira.
Terminada a Guerra Civil (1834), a educação tornou-se uma prioridade. Em 1836, Passos Manuel criou os liceus e, assim, uma rede de ensino médio no país; em 1837, foram criadas em Lisboa6 duas escolas superiores com vocação técnica7: a Escola Politécnica, sucessora da Academia Real de Marinha; e a Escola do Exército, sucessora da Academia Real de Fortificação e Desenho. Finalmente, em 1845 foi criada a Escola Naval, que substituiu a Academia Real de Guardas-Marinhas.
Na base desta estrutura estava a Escola Politécnica, complementada por “escolas práticas”. Na Escola Politécnica, como instituto de ciências físicas e aplicadas, ministrava-se a formação académica de base, “os preparatórios”, aos engenheiros militares e civis, aos oficiais e construtores da marinha, e aos oficiais de artilharia e de estado-maior; e ainda conhecimentos auxiliares e indispensáveis ao estudo da medicina, da farmácia, do comércio, e da agricultura e da indústria8. Este processo de criação da Escola Politécnica e das escolas práticas foi sentido pela Universidade de Coimbra9 como uma ameaça: apesar destas novas escolas não se chamarem universidades - e terem demorado muitas décadas até obterem esse estatuto - não aderia à ideia doutras entidades criarem doutores. Ainda assim, os que nelas eram formados gozavam de prestígio social10, combinando uma boa base científica com um bom domínio na execução e na prática da sua profissão.
Este conflito veio a reflectir-se também na EN, reaparecendo, com outros nomes, as grandes correntes a respeito da formação nela ministrada11:
“A criação da Escola marca uma época de crise na formação dos oficiais, como consequência da luta entre duas tendências que ainda hoje [1945], sob certo aspecto, perduram; uma que, pretendendo agarrar-se ao passado, entendia que era no mar que se formavam os oficiais, que os conhecimentos práticos da vida do mar no mar se adquiriam e devia prevalecer, se não bastar, na formação do oficial; outra que considerava já indispensável uma base de sólida cultura politécnica e de preparação tecnológica, que só em terra, numa escola e com cursos organizados para o fim específico da formação do oficial de marinha, podia ser adquirida. Uma, a escola dos marinheiros; outra, a dos politécnicos.”
Em todas as reformas do ensino na EN se sentiram e se sentem essas correntes (com estes ou outros nomes) em confronto. As “vitórias” de cada uma reflectiram-se no modelo de ensino seguido na EN; mas sempre que uma das correntes se tornou demasiado dominante sobre a outra, criou-se um desequilíbrio acentuado, rapidamente “corrigido”. Por exemplo, em 1846 houve uma tentativa, que não chegou a durar 3 meses, de abandonar a frequência dos preparatórios na Escola Politécnica, que fracassou por não existir alternativa à formação académica e acabar por se formar consenso sobre a sua necessidade. Noutro caso, foram alteradas as condições de recrutamento, o que exigiu uma rápida revisão12:
“ [...] a organização de 1864 obrigava os candidatos a aspirantes de marinha a terem já habilitação de um ano de estudos nas escolas superiores. Esta disposição concorreu para que o alistamento na companhia de guardas marinhas, e portanto a frequência do primeiro curso da Escola Naval, diminuíssem muito, pois que, sendo os candidatos a alunos obrigados a habilitarem-se nos estudos superiores preparatórios sem subsidio pecuniário, preferiam seguir as carreiras do Exército, onde esse subsídio, ainda que pequeno, se dava aos alunos militares [...]”
Outro exemplo foi a reforma de 1895, marcada pela rápida evolução tecnológica, em especial com a transição da vela para o vapor, exigindo dos oficiais um domínio acrescido das novas tecnologias, sem prejuízo dma sólida formação científica de base. Adoptou-se então um modelo de frequência de três anos lectivos na Escola Politécnica, seguidos de três anos académicos na EN, mas à custa da redução do ensino prático no mar. Esta reforma durou apenas dois anos.
Vêm a propósito as palavras do Comandante da EN em 1945, por ocasião do seu primeiro centenário13:
“Desde então14 as duas escolas - no mar e em terra - passam a coexistir, devendo o ensino ser nelas ministrado, sem que a uma ou outra se reconheça mais ascendente, isto é, buscando o justo equilíbrio entre a Escola Naval e a Escola do Mar.”
Com três reformas recentes, em 1998, 2002 e 2004, não pode deixar de se observar o passado para com ele aprender. Hoje, como então, as vertentes académica e profissional são essenciais à formação do oficial da Marinha, para melhor poder servir o país; hoje, como então, não se pode ignorar a integração do ensino superior militar no ensino superior nacional, embora agora haja que alargar o horizonte à Europa; hoje, como então, há diversos modelos possíveis, embora seja indispensável - de resto como em qualquer outro ofício - assegurar um equilíbrio adequado entre as duas vertentes.
Por isso, é errado dizer que à Marinha não interessam graus académicos (ou que a licenciatura é o mesmo que o bacharelato), ou que lhe basta dar uma formação suficiente para que um oficial desempenhe as suas missões. Acresce que o Estado de direito democrático, o Processo de Bolonha e a avaliação do ensino superior só são compatíveis com uma formação academicamente mais sólida dos oficiais.
Enquadramento
Além de Bolonha, há mais quatro factores que condicionam fortemente o ESM, e a EN em particular: a oferta de licenciaturas civis; os custos do actual modelo; a sua inserção no sistema de avaliação do ensino superior; e o exercício da profissão.
A oferta de licenciaturas civis
As organizações produzem internamente aquilo que não conseguem obter melhor externamente; ou é porque sai mais barata a produção interna ou porque só internamente conseguem obter exactamente o que querem. Por isso, a Marinha, primeiro na Academia Real de Guarda-Marinhas e depois na EN, tratou de passar a ministrar cursos que considerou serem-lhe necessários e que não existiam então no país15. Mas hoje há cursos que concorrem com o curso de Administração Naval (AN) e com os cursos de Engenharia Naval (Mecânica, EN-Mec; Armas e Electrónica, EN-AEl); logo, a Marinha só depende totalmente da EN em relação às classes de Fuzileiros e de Marinha. A oferta de licenciaturas civis tornou viável abrir duas vias de recrutamento de licenciados para alimentar os quadros de oficiais: uma, de longo compromisso, para funções estruturais e duradouras (QP); outra, de compromissos flexíveis e de média duração, para funções periféricas e de apoio (RV e RC).
Este é ainda um momento oportuno para repensar a criação da classe única. Mas neste artigo não se vai tão longe, e assume-se que se mantêm os quadros especiais de AN e EN.
À partida, só parece viável recrutar licenciados directamente para os quadros especiais de AN, EN-AEl e EN-Mec, pela oferta de licenciaturas civis próximas dos conteúdos técnicos dos quadros da Marinha. Mas esta é também uma boa oportunidade para avaliar se o modelo de recrutamento de licenciados sem conteúdo específico para ingresso em todos os quadros apresenta uma boa relação de custos-benefícios. Mais do que as conclusões a que se chegar, importa saber com rigor que tipo de impactos, positivos e negativos, estão em causa. Citando de novo Gasset16:
“Não censuro que nos informemos, pondo os olhos no vizinho exemplar; pelo contrário, há que fazê-lo, mas sem que isso nos exima de resolver, por nós mesmos, originalmente, o nosso próprio destino.”
O fim da formação interna permite eliminar o incentivo perverso de baixar a qualidade para resolver dificuldades de alimentação dos quadros da Marinha. A avaliação externa não é suficiente para eliminar este incentivo perverso, pois as conclusões da avaliação externa (ainda) não afectam muito quem decide e o conteúdo da decisão, nestas matérias; nem é garantido que, mantendo-se o enquadramento normativo vigente, venham alguma vez a afectar.
Os custos do actual modelo
Não é simples, mas é indispensável, a análise de custos do modelo dos EMES. À crítica de que colocar a questão nestes termos enferma de “economicismo” há que contrapor o dever constitucional de usar bem e eficientemente os recursos postos à disposição da Administração Pública17 (AP), na qual as Forças Armadas (FA) e o ESM estão inseridos, como é devido num estado de direito. Dum modo mais geral, há sempre uma responsabilidade fiduciária nos que recebem recursos de outros para realizar os fins destes; nesse sentido, é até mais uma questão moral do que legal, económica ou economicista18.
Custa a aceitar que ter três instalações e corpos docentes distintos saia mais barato, para um mesmo padrão de qualidade da formação, do que a combinação numa única escola, pelo menos, dos 1º e 2º anos das licenciaturas19. Nem se percebe bem como, numa era de integração, se preferem autonomias sectoriais numa área cuja natureza profunda e finalidade são comuns - há diferenças nas tarefas e nalguns métodos, mas não no essencial, designadamente naquilo que é o núcleo da profissão e da ética militares20.
E não é evidente que as FA e o país estarão melhor servidos se os EMES formarem academicamente os futuros oficiais. Por que não obter o grau académico nas organizações que nisso se especializaram (as universidades) e fazer depender o ingresso na categoria de oficial das FA de formação profissionalizante e doutrinária nos ramos21? As conclusões da avaliação universitária mostram a desvantagem comparativa dos EMES na formação académica, mesmo reconhecendo as boas instalações e os elevados quocientes docente/aluno. Contudo, os EMES são insubstituíveis na formação profissionalizante. Estas conclusões já foram tiradas noutros países, como os EUA e o Reino Unido22:
“In their earlier years the service academies had a relatively clear mission: to produce technically competent engineers and seamen. The professionalization of officership substituted for this single technical goal the dual purposes of liberal education and basic military education. […]
In attempting to crowd these two discordant elements into a single curriculum, the service academies did not succeed in doing either job as well as could have been done if each had been performed separately.”
Importa notar que a boa análise nesta matéria rejeita a atribuição criteriosa de pesos elevados a factores dificilmente quantificáveis, pelo enviesamento que daí resulta, e que servirá a racionalidade dos interesses instalados mas não o país. Por isso, a melhor análise raramente é conduzida por quem tem interesses na matéria (“ninguém é bom juiz em causa própria”), porque tende a vê-la - racionalmente - na perspectiva dos seus interesses. A avaliação externa resolve este problema, na parte que respeita à qualidade da formação; é, por isso, insubstituível.
A avaliação externa
A integração da EN no sistema de avaliação universitária continha a ameaça óbvia da humilhação e da desmotivação de docentes e discentes, e da própria Marinha. Mas toda a ameaça tem uma oportunidade escondida, à espera de ser descoberta. No sector público, a pressão externa é crucial para concretizar esta descoberta, pois ela pode fomentar o orgulho próprio que anima e motiva a mudança. Só que cada um pode tratar o problema de acordo com as suas visões pessoais, desvalorizando o necessário e a visão do conjunto. Por isso, a pressão externa será uma condição necessária, mas não suficiente.
De facto, as comissões de avaliação externa (CAE) que visitaram e avaliaram os cursos de licenciatura da EN procederam com independência e rigor, e foram delicadas nas suas, incontornáveis, conclusões23:
• relativamente ao curso de AN, avaliado em 2002, a CAE24 concluiu que a falta de doutorados e de investigação colocavam o curso abaixo dos requisitos do ensino universitário;
• relativamente ao curso de Marinha e de Fuzileiros, avaliado em 2003, a respectiva CAE25 disse o mesmo, só que usou uma linguagem extraordinariamente suave26.
Não duvido que, quando forem sujeitos à respectiva avaliação externa, os cursos de engenharias navais da EN serão objecto de conclusões substantivamente análogas, pelas mesmas razões de fundo.
Apesar da lei atribuir a classificação de licenciatura aos cursos da EN27, as CAE concluíram que não é sustentável reconhecê-lo. Pode apelar-se às especificidades do ESM e tentar que as CAE usem um nónio calibrado com a nossa escala. Só que quem avalia, usa o seu nónio; e, mesmo que use o nosso, não deixa de concluir pela sua cabeça. E aquelas especificidades não eliminam as vulnerabilidades da EN quanto ao nível académico, que é o objecto da avaliação. A consolação com o facto de haver piores só merece um comentário: ou se é profissional e se procura ser dos melhores, ou deve-se mudar de ofício. Que acharão o país e os jovens à beira da escolha da profissão da alternativa ao profissionalismo?
Por isso, é essencial a pressão externa: sendo a realidade conhecida fora é mais difícil ceder à tentação de pintar um quadro que adie decisões difíceis. Não basta to go through the motion: mudanças na imagem ou logo antes da chegada das CAE revelam-se na volta seguinte; as CAE são substancialmente neutras, e não deixarão de o notar, e de o sublinhar, com cada vez menos suavidade - sem perda de pedagogia.
Mas a pressão externa só dissuade se tiver consequências objectivas nefastas, segundo os valores que contam para quem pode mudar e é visado pela avaliação desfavorável. Ainda assim, o emprego para toda a vida, e as remunerações e promoções insensíveis aos percursos e às avaliações académicas legitimam a sensação de invulnerabilidade às pressões externas e a tendência para olhar para dentro. Restarão as comissões de benefício, louvores e medalhas para incentivar os empenhos nas acções recomendadas. Mas é mais fácil escrever e falar sobre isto do que aplicá-lo a pessoas concretas, com quem nos relacionamos muitas vezes, e com quem temos laços afectivos.
Talvez as conclusões das CAE não devessem ter causado grande surpresa e nos tenham dito o que já sabíamos - só que se tornou incontornável e doloroso enfrentá-las sob a atenção geral. Se muitos oficiais subalternos se procuram licenciar e pós-graduar-se pouco após o ingresso nos QP, isso indiciará a procura de alargamento de horizontes - o infinito horizonte que se vê da ponte do navio não lhes parecerá muito largo. E indiciará que as conclusões das CAE ecoam há muito. Parece ser mais raro que um licenciado numa universidade civil vá obter a curto prazo mais um grau académico, excepto para seguir a carreira académica ou se está sem emprego. Talvez no passado tenha havido uma inclinação natural para procurar apenas alargar horizontes com a formação adicional; mas a corrente acumulação de graus académicos em oficiais jovens exige uma reflexão sobre o que buscam: (só) uma ocupação complementar do intelecto e do tempo? Uma elevada qualificação para aplicação na Marinha28? Ou uma certificação reconhecida?
O exercício da profissão
Tendo o nível e a qualidade do ensino na EN sido postos em causa por entidades credíveis é preciso actuar, para que não assente a ideia de fraca qualificação dos oficiais da Marinha. Vem a propósito repetir que é um erro defender que à Marinha não importa o grau académico, mas tão-só que o conteúdo técnico-profissional da formação sirva as suas missões; esta visão errada, além de ser introspectiva e fechada num mundo em globalização e dominado pelo conhecimento, simplesmente não é verdadeira: há implicações graves para as pessoas e para a Marinha.
No plano positivo imediato, o Estado exige a licenciatura como mínimo para o exercício de funções de chefia na AP; as tabelas remuneratórias e as carreiras reflectem essa filosofia e esses requisitos. Nem sequer é matéria que esteja disponível para decisão interna na AP, por duas razões:
• A Marinha pertence à administração directa do Estado e, por isso, está obrigada a cumprir a lei, sem prejuízo de poder e dever pugnar pelo reconhecimento das suas especificidades29; não é uma questão de pragmatismo e de saber “contornar” as leis conforme interpretações circunstanciais.
• Que sentido faz ter um órgão do Estado cujos dirigentes têm um nível inferior ao dos seus pares no Estado? Mais: que mensagem emite um órgão que pugna por dirigentes menos habilitados? E como manter a paridade entre as remunerações dos dirigentes civis e militares da AP, se estes desdenham qualificações reconhecidas e apreciadas socialmente?
Há ainda a considerar, pelo impacto no recrutamento, o interesse dos jovens pela carreira de oficial. Os jovens procuram realização e satisfação, mas muitos reconhecem a importância do sinal que os diplomas universitários dão em relação à sua empregabilidade30, e tentam usar a concorrência na oferta de formação superior para aumentar a sua mobilidade formativa e profissional31. Como se podem recrutar jovens de alto nível32 se eles souberem que não podem mudar (por falta de nível ou equivalências), caso se tenham enganado na carreira, ou por pensarem que só são empregáveis na Marinha? Ou quantos potencialmente bons oficiais da Marinha se perdem, por a única forma que têm de ingressar ser através da frequência integral e com aproveitamento dos cursos da EN?
O Processo de Bolonha
O Processo de Bolonha está em curso e não vai ser atrasado pelo ESM. Não é por ter arrancado por via intergovernamental que terá menor eficácia ou menos força. Por isso, a quem não procurar adaptar-se, o modelo de Bolonha acabará por ser imposto pela lei, sem garantia do reconhecimento de especificidades. Ignorar a lei ou pôr-se à margem é inaceitável, pois não cabe aos órgãos da AP decidir o que não cumprir - mas tão-só cumprir a lei e executar as políticas públicas. Noutro plano, é bom notar que até os mais nacionalistas reconhecem o valor da mobilidade e das liberdades de circulação, que presidem à integração europeia e que constam do direito europeu originário33.
Embora reconhecendo o seu valor, os fins da mobilidade e da uniformização dos ciclos de formação superior são os que vão colocar desafios de mudança mais fortes ao ESM, e à EN em particular, tal como eles são e funcionam hoje:
• a mobilidade geográfica e formativa34, ao sugerir a possibilidade dum aluno frequentar parcialmente o ensino superior num país e graduar-se noutro, na mesma ou noutra área;
• o fim dos bacharelatos e do ensino politécnico, introduzido no ESM há uma década;
• a fixação da duração do primeiro ciclo ou licenciatura em 3 ou 4 anos, abaixo dos 5 ou mais que já há três décadas se tornaram a regra do ESM.
Bolonha propõe ainda uma uniformização europeia nos ciclos, no sistema de créditos e na certificação dos cursos, em linha com o processo típico de integração europeia, no qual à fase de remoção de barreiras entre estados (integração negativa) se segue uma fase de criação de normas comuns (integração positiva).
A uniformização de ciclos, de origem política e não de resposta a uma necessidade manifestada pelas universidades ou pelos estudantes, poderá prejudicar os mais altos e gerais fins de autonomia universitária e de inovação que esta autonomia incentiva; em contrapartida, pode servir antes um estatismo obsoleto, ou uma tentativa subtil de redução das despesas públicas no ensino superior35. O autor, entre muitos, crê que a uniformização do primeiro ciclo em 3 ou 4 anos é boa para Portugal, para o ESM, e para a Marinha.
Também a criação dum subjectivo sistema geral de créditos (European Credit Transfer System, ECTS) e o Suplemento de Diploma são discutíveis. Desde 1980, os cursos superiores têm sido organizados por unidades de crédito36, as quais estavam directamente relacionadas com a carga horária realmente atribuída (e observável) a cada disciplina nos planos dos cursos. Com os ECTS abrem-se oportunidades para que o declarado e o realizado divirjam, porque cabe apenas aos docentes a muito subjectiva atribuição de cargas de trabalho médias aos alunos em cada disciplina e ano curricular37; isto implica maior responsabilidade da avaliação universitária, pois só esta, e com grande empenho e rigor, pode evitar sérios enviesamentos. Tal como o Suplemento de Diploma, estas medidas de integração positiva acrescem apreciavelmente a carga burocrática que pesa sobre as escolas universitárias; tal carga tem custos de oportunidade e ocupará muito tempo a docentes e pessoal administrativo, possivelmente com melhores usos alternativos.
Voltando à mobilidade, o normativo que regula a EN não admite que um aluno entre a meio do curso, reconhecendo-se-lhe equivalência de formação universitária obtida anteriormente, quiçá no estrangeiro; é fácil antecipar a complicação burocrática e o aumento de formação especializada e de pessoal que serão precisos para gerir um tal sistema. E é hoje muito difícil de conceber que haja alunos que entrem a meio do curso, sem separar bem a parte académica da parte profissionalizante (específica da Marinha). Mais do que uma maior e ineficiente carga burocrática (sem contrapartida proporcional no aumento de alunos, isto é, piorando a eficiência), está em causa uma total mudança cultural, e diluição da soberania, com o que isso implica de gestão da mudança. Por estas razões, o ESM só pode integrar esta vertente de Bolonha com uma abordagem totalmente diferente de raiz.
E há ainda a questão, não menos importante, do reconhecimento da formação ministrada na EN e que ex-alunos visarão ver reconhecida na procura de universidades, nacionais ou estrangeiras, uma vez saídos da EN. Se a mudança incide apenas nos aspectos formais, como a duração dos cursos e a classificação por ECTS, a difusão das fraquezas apontadas pelas CAE só permite antecipar que um dia venham a ser postos em causa os certificados de habilitações da EN.
Bolonha assenta ainda, implicitamente, no modelo de universidade moderna, que forma alunos que se destinam ao mercado de emprego. Pelo contrário, a EN forma alunos para apenas um empregador, e está obrigada cumprir os seus requisitos, não dispondo da ampla autonomia que caracteriza as universidades; a EN é um órgão da Marinha e está, portanto, sujeita à autoridade do Chefe do Estado-Maior da Armada; órgãos universitários deliberativos, como o Conselho Científico, não são admitidos numa organização tão hierarquizada. A autonomia acima referida é mais um regime especial dentro do ensino superior, do que um modelo de governo.
Pelas razões apontadas e brevemente analisadas, ou o modelo da EN se altera radicalmente - e será o fim da EN as we know it - ou para se manter não é possível realizar em pleno Bolonha no ESM e na EN.
A Mudança Proposta
Já passou o tempo de aplicar pequenas e half-hearted mudanças na EN. Agora é fundamental dar um salto qualitativo que adapte a EN (o ESM em geral) a Bolonha, aproveitando as condicionantes e pressões que obrigam a Marinha e a EN a mudar. Há boas razões para acreditar que esta situação é favorável a uma mudança para melhor, com ganho para a Marinha e para o país. A mudança que parece melhor satisfazer todos os factores relevantes assenta nos seguintes três pontos:
1. Recrutar licenciados directamente das universidades para o ingresso na categoria de oficial
Em vez da Marinha recrutar jovens que concluíram o ensino secundário e assumir o risco da atrição ao longo dos cursos da EN, passaria a recrutar licenciados38, da universidade das FA (ver a seguir), e outras, inclusivamente estrangeiras; isto é, num mesmo quadro especial, de Marinha por exemplo, poderão ingressar licenciados pela universidade das FA, pela universidade marítima (ver a seguir) ou por uma universidade estrangeira. Pendendo um estudo profundo, sugere-se aqui a anaálise do recrutamento apenas pelo grau ou então com base em áreas próximas do quadro especial de destino.
Há hoje licenciaturas de gestão e engenharia melhores do que as da EN. Para passar a recrutar só licenciados civis para os quadros especiais de AN, EN-Mec e EN-AEl o EMFAR tem de mudar39; isso não deverá ser difícil, pois a racionalização de recursos é o fim visado, e os meios são lícitos e proporcionais aos fins.
Não é claro em que direcção esta mudança altera o risco do recrutamento: podem aumentar as vagas por preencher, por os licenciados, menos moldáveis, preferirem outras carreiras; ou pode baixar o risco, por os licenciados sentirem que passaram a ter mais alternativas, e recorrerem a elas. Não se afigura que o risco mude muito, pois quem tiver vocação continuará a procurar a carreira militar; e quem só procura um emprego seguro no Estado continuará a ter essa opção. Tradicionalmente, tem-se acreditado que se devem recrutar jovens o mais cedo possível, para que sejam mais receptivos e adaptáveis40. Além desta ideia e os seus pressupostos estarem por provar, pelo menos nos tempos actuais, a aversão à exigência e à profissão militar que parece enformar as sociedades modernas41, e os mais jovens em particular, poderá ser mais bem enfrentada pelo recrutamento de jovens mais maduros e mais seguros das suas vocações; é preciso dar-lhes tempo para negociarem e escolherem o seu percurso na floresta de cursos e profissões que se lhes depara hoje.
Entretanto, um saldo negativo consistente no preenchimento de vagas deve obrigar à reformulação dos quadros ou até ao recrutamento de estrangeiros, como alguns países - embora de forma limitada, nem sempre com sucesso - têm estado a tentar.
2. Criação duma universidade das Forças Armadas
Admitindo que se opta pela coerência entre a área da licenciatura e o quadro de destino, e acabando os EMES, faz sentido criar uma universidade das FA para ministrar licenciaturas que sirvam os três ramos; em especial, a universidade das FA ministraria os cursos de licenciatura de Marinha e de Fuzileiros (podendo este diferenciar-se daquele só no fim do curso, como uma especialização).
É muito provável que a eficiência económica justifique a centralização da formação dos cursos específicos dos três EMES, na formação científica e cultural de base, até ao 2ºano (a matemática e a estatística, a física, a química, a medicina de guerra, a história, a ética, a teoria de organização, o comportamento organizacional, e o direito público), e explorando algumas sinergias pontuais ao longo dos cursos (por exemplo, os fundamentos da navegação são comuns à Marinha e à Força Aérea, e os da meteorologia ou dos sistemas e tecnologias de informação aos três ramos).
Entretanto, o melhor modo de garantir a qualidade da formação superior é pela integração material, e não só formal como até agora, do ESM no sistema universitário. Para isso, é essencial que o ESM se funda numa universidade cujos requisitos, orientações estratégicas e gestão superior dependam das, e sirvam as, FA (sob a tutela conjunta do Ministério da Defesa Nacional e do Ministério do Ensino Superior), mas cujo funcionamento corrente seja regido pelas normas universitárias.
Os oficiais com adequado nível académico ou notável perfil profissional, e se forem aprovados pelo respectivo consleho científico, podem ser docentes - e assim manter a ligação das FA à formação académica dos futuros oficiais. Por outro lado, podem assim aproveitar-se melhor os oficiais com mais vocação académica do que para o comando e direcção superiores e que trocariam a possível progressão até ao estrelato pela remuneração da carreira docente universitária.
Ao ser uma universidade como as outras, em que os alunos seriam civis e pagariam as suas propinas - e poderiam obter bolsas de estudo, suportadas pelo Estado, para continuar a poder garantir a todos os cidadãos o acesso às suas FA - pode acolher alunos que pretendam ingressar na categoria de oficial mas não só: também pode formar pessoal para empresas de segurança e militares privadas, sector que está em ascensão e que chegará a Portugal a seu tempo. A regulação deste sector tornar-se-ia mais fácil, por haver uma formação definida que serve o sector.
Analogamente, merece análise mais profunda a alternativa de uma (por criar, com esta identidade) universidade marítima, na qual se formem pessoas orientadas para o mar42.
Tanto no caso da universidade das FA como da universidade marítima, a admissão à universidade não implicará o ingresso nas escolas técnicas de oficiais; este manter-se-á dependente da aprovação em exames médicos, testes psicotécnicos e provas físicas, além da classificação da licenciatura. Os licenciados que não coubessem nas vagas num concurso de ingresso (que poderia ser anual ou mais frequente), e que não superassem os limites de idade fixados, poderiam concorrer em concursos sucessivos, ou obter créditos adicionais, por exemplo, frequentando pós-graduações a seu cargo (a ministrar nas FA ou na universidade) que aumentassem a sua empregabilidade nas FA.
Ao longo dos cursos na universidade, podem ser criadas condições para os alunos contactarem com as escolas técnicas de oficiais, participando em actividades práticas e desportivas, e dessa forma socializando-se. As infrastruturas de alojamentos existentes poderão ainda ser disponibilizadas para alojar os alunos da universidade que tenham menos recursos ou que tenham residência muito longe, e que pagariam os próprios alunos, embora podendo ser apoiados por bolsas de estudo.
3. Conversão da EN em escola técnica de oficiais
A EN43 passará a ser uma escola técnica de oficiais, que ministrará, a jovens licenciados, cursos de natureza profissionalizante, que habilitam ao ingresso na categoria de oficial44. Estes cursos deverão estar centrados nas técnicas e cultura específicas da Marinha, e no direito administrativo militar, nas lideranças, nas marinharias, nas infantarias, e nas tácticas e operações navais, e incluindo viagens de instrução. Os cursos para ingresso nos QP serão de um ou dois anos, e deverão ter duas viagens de instrução com durações de dois ou três meses; enquanto os cursos para ingresso nos RV/RC serão idênticos aos que existem actualmente. A EN poderá ainda realizar pós-graduações com nível (mas sem grau) académico, preferindo a aplicação profissional à abstracção e à profundidade académica, tanto para militares como para civis.
Assim, a EN passará a ocupar-se apenas daquilo em que é insubstituível: a formação militar-naval e, quando não seja possível obter formação adequada nas universidades, a formação técnico-naval.
Conclusão
Neste artigo propôs-se o fim da EN, as we know it, e a sua conversão numa escola técnica de oficiais, que ministraria apenas cursos profissionalizantes que habilitariam ao ingresso na categoria de oficial. A Marinha passaria a recrutar só licenciados para o ingresso nos quadros de oficiais, admitindo a concurso jovens licenciados pela universidade das FA, pela universidade marítima, por universidades civis ou por universidades estrangeiras.
A realização plena deste modelo exige que existam cursos fora da EN que habilitem ao ingresso nos quadros de Marinha e Fuzileiros. Quanto aos cursos de AN e de Engenheiros Navais, este modelo pode começar a realizar-se logo que se altere o EMFAR. A universidade das FA ou a universidade marítima oferecem o meio de integrar substantivamente o ESM no sistema universitário e no Processo de Bolonha. Apesar das vertentes mais polémicas, como a excessiva uniformização (por exemplo, os ECTS), Bolonha é essencial como meio de pressão para desencadear e motivar a mudança em direcção à melhoria de qualidade e ao aumento de eficiência na afectação de recursos da formação dos oficiais. Em particular, a separação entre a formação académica e a formação profissionalizante permitirá que cada uma se realize em pleno, sem compromissos ou tensões indesejáveis entre ambas.
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* Artigo entregue para publicação em 11 de Abril de 2005.
** Engenheiro Construtor Naval. Professor de várias disciplinas de economia e gestão, no Departamento de Formação de Administração Naval, na Escola Naval.
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1 Cf. Gasset, José Ortega y (2003) A Missão da Universidade, Coimbra: Angelus Novos Editora (ed.original: 1930), p.52.
2 Com a prestimosa colaboração, que o autor aqui reconhece e agradece publicamente, do Comandante Costa Canas, historiador e professor de várias disciplinas de navegação, no Departamento de Formação de Marinha, na Escola Naval.
3 Um dos maiores cientistas portugueses, que dedicou grande parte da sua obra a teorizar sobre problemas de astronomia e de matemática relacionados com a navegação.
4 Esta polémica foi comum aos EUA e à França; ver Huntington, Samuel (1957) The Soldier and the State, New York: Vintage Books, cap.9.
5 Nesta altura, o termo engenheiro aplicava-se apenas a militares. A necessidade de engenheiros com habilitações académicas adequadas vinha-se sentindo desde o século XVII. Merece especial destaque a acção de Manuel de Azevedo Fortes que, no início do século XVIII, propôs um verdadeiro programa para formação de engenheiros militares. Mas apesar da sua componente científica, esta formação não era feita nas universidades (nem era essa a vocação destas), mas sim em Academias Militares que funcionavam junto de certos regimentos.
6 Foram criadas escolas superiores destinadas a cursos de aplicação também noutras cidades; assim, no ano de 1837 foi criada a Academia Politécnica do Porto, que sucedeu à Academia Real da Marinha e Comércio. Lisboa é uma referência incontornável, porque as escolas superiores de ensino militar se instalaram apenas nesta cidade e, mais tarde, nos seus arredores.
7 Este modelo tem raízes em França, onde a École Polytechnique foi criada, com fins idênticos, em 1794; ver Huntington (1957) pp. 42-43.
8 Ver Ribeiro, José Silvestre (1878) História dos Estabelecimentos Científicos, Literários, e Artísticos de Portugal, nos sucessivos reinados da monarquia, tomo VII, Lisboa, Tipografia da Academia Real das Ciências, p. 122.
9 A única então existente. A Universidade de Évora fora encerrada, na sequência da expulsão dos Jesuítas pelo Marquês de Pombal.
10 Possivelmente, em contraste com os tempos actuais, como o caso de Filipe Folque ilustrará: Filipe Folque foi um dos notáveis engenheiros do século XIX; doutor em matemática, pela Universidade de Coimbra, aos 26 anos, dedicou toda a sua vida a actividades “práticas”, como a astronomia, a geodesia, a hidrografia e a cartografia, bem como ao seu ensino na Escola Politécnica; depois de se formar em Matemática, serviu na Marinha e no Corpo de Engenheiros do Exército. Ele, por certo, preferiria ser chamado “engenheiro” e não “doutor”.
11 Cf. Sousa, Alfredo Botelho de (1945) “Oração proferida por S. Exa. o Major General da Armada - Vice-Almirante Alfredo Botelho de Sousa”, Os primeiros cem anos da Escola Naval, Lisboa, [s.n.], p. 431.
12 Cf. d’Eça, Vicente Almeida (1892) Nota sobre os estabelecimentos de instrução naval em Portugal, especialmente sobre a Escola Naval, Lisboa, Imprensa Nacional, pp. 10-11.
13 Cf. Pinto, Fernando de Oliveira (1945) “Escola do Mar - Escola Naval”, Os primeiros cem anos da Escola Naval, Lisboa, [s.n.], p. 77.
14 Referia-se à mais recente reforma, de 1938, com a qual a formação se passou a dividir por vinte e cinco meses na EN e dezoito no mar.
15 Apesar de serem essenciais, a Marinha nunca deu licenciaturas em medicina. Mas já formou enfermeiros, ainda que sem grau académico.
16 Cf. Gasset (2003) p. 39.
17 Assegurar a plena utilização das forças produtivas, designadamente zelando pela eficiência do sector público. Cf. alínea c) do artº81º da Constituição da República Portuguesa.
18 É raro que quem fala em “economicismo” ou “mercantilismo” (como sinónimos, ou significando a aplicação do raciocínio económico a problemas humanos) saiba um mínimo de economia ou conheça o significado científico daqueles termos, de conteúdos bem distintos.
19 É bem sabido que a experiência do 1ºano comum (1992-1997) foi um fracasso, mas não se sabe porquê com objectividade; não será que um processo desta natureza deve ser imposto aos ramos, e controlado por algum tempo, por an authority with authority? Os ramos não têm incentivos fortes para se ajustarem mutuamente; a mudança ou é imposta e controlada superiormente, ou dificilmente poderá vingar.
20 Ver Huntington (1957) p. 254.
21 Este modelo nem é novo, pois o ingresso nos quadros de médicos navais (QP), no RC ou na Reserva Naval (classe de Marinha) seguiram-se sempre a cursos profissionalizantes, cuja duração reflectiu o valor da cultura organizacional nas carreiras e actividades daqueles oficiais.
22 Cf. Huntington (1957) p. 295.
23 Dir-se-á que fizeram um esforço notável para não humilhar ninguém, sem deixar de afirmar o essencial.
24 A CAE do curso de AN foi composta por professores universitários civis de todo o país, com carreiras académicas notáveis, e o curso foi apreciado a par dos melhores cursos das melhores universidades portuguesas. Este aspecto não ajudou a ter conclusões favoráveis.
25 A CAE dos cursos de Marinha e Fuzileiros contou com militares dos vários ramos, com carreiras académicas notáveis.
26 É justo reconhecer que o muito restrito universo de comparação e a inovação que foi avaliarem-se cursos e escolas militares favoreceram a suavidade das conclusões; esta suavidade traduzirá uma atitude marcadamente pedagógica. Mas não se vê que benefícios de longo prazo se poderão obter por ceder à tentação de “tapar o sol com a peneira” e procurar ler na linguagem formal escrita mensagens que não constam do espírito nem da letra daqueles relatórios - mas que são reconfortantes.
27 No decreto-lei 48/86, de 13 de Março, que procede à integração formal dos cursos dos EMES no ensino superior universitário português.
28 O argumento de que os cursos da EN são de banda larga e que as pessoas querem aprofundar temas técnicos para um melhor desempenho confirma a tese exposta: nada impede a qualidade e a suficiência de serem reconhecidas, mesmo em cursos de banda larga; além disso, se as pessoas achassem que o seu curso de banda larga as satisfazia nas suas funções ou necessidades de realização não procuravam mais.
29 O que não se confunde com decidir internamente que normas legais e administrativas são para cumprir.
30 Isto é, chegar a um bom emprego com o diploma de uma boa universidade/melhor nota é melhor do que chegar com um/a mau/má.
31 Isto é, ter um maior leque de escolha de cursos e de empregos é melhor do que um menor.
32 Na ausência de um perfil superiormente aprovado com o qual validar o recrutamento, afigura-se que os critérios críticos serão: não desistir a curto prazo; e conseguir superar as dificuldades académicas e culturais dos dois primeiros anos.
33 Desde logo no Tratado da Comunidade Económica Europeia (1957), e aprofundado nas sucessivas revisões, e reforçado com o conceito de cidadania europeia, criado pelo Tratado da União Europeia (1991), e mantido nas sucessivas revisões.
34 Um aluno poderá obter um grau académico fraccionado por várias universidades, segundo um menu definido por si.
35 Sendo, por princípio, favorável ao alargamento do sector privado na Europa, neste domínio, não será preocupante a redução das despesas públicas visadas, mas antes os custos de oportunidade da uniformização.
36 Modelo regulado no decreto-lei 173/80, de 29 de Maio, e que vigorou em Portugal desde então.
37 Por exemplo, com os ECTS é possível que apenas uma ínfima fracção das aulas seja efectivamente leccionada pelos docentes, ou apenas um pequeno número de horas de aula seja previsto, aproximando o ensino presencial do ensino à distância.
38 Com menor imperfeição da informação relativa à selecção, ao contrário do que sucede hoje, em que os resultados do ensino secundário não constituem um indicador fiável e credível do desempenho nos cursos da EN, e menos ainda das carreiras dos oficiais.
39 Este deve apenas exigir que o recrutamento se faça entre licenciados numa área relevante para o quadro em causa, atribuindo aos chefes de estado-maior a competência para fixar para cada concurso as áreas científicas admissíveis, e as provas a realizar no concurso de admissão (que podem ser também exames, à semelhança do que se faz hoje com o recrutamento de médicos).
40 “If recruitment were postponed until after college, military opinion feared that […] the unattractiveness of the military career would make it impossible to get officers of sufficient quality and quantity. In the unsympathetic [...] environment it was necessary to begin the military indoctrination and training of the future officer before he completely absorbed the prevailing antimilitary values and motivations.”; cf. Huntington (1957) p.295-296.
41 Na verdade, já vem de longe: Huntington (1957) p.288 relata casos desses nos EUA, até à II Guerra Mundial.
42 Agradeço ao Comandante Novo Palma ter-me chamado a atenção para esta possibilidade.
43 O que aqui se diz é aplicável, com as devidas adaptações, aos demais EMES.
44 Está implícito o fim da formação politécnica na Marinha e o fim do ingresso nas classes de oficiais baseados no bacharelato.