Nº 2597/2598 - Junho/Julho de 2018
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Comemorações do Tricentenário do Lançamento da Primeira Pedra do Real Edifício de Mafra (17 de novembro de 1717)
Tenente-coronel
Abílio Pires Lousada

“No Tempo do Régio Prestígio de D. João V

Contexto Militar e edificação do Monumento de Mafra” *

 

1. Que (justos) motivos?

Os acontecimentos relativos a determinações régias e a mercês papais estão relacionados e orientam-se todos no sentido do Portugal magnânimo e do prestígio real, pela graça de Deus.

São quatro os momentos que merecem ser discriminados: (i) em 26 de setembro de 1711, D. João V mandou exarar o alvará que determinava a construção do Convento de Mafra para habitação e oração dos frades franciscanos da Arrábida. Manuel Gandra refere-se-lhe como “a certidão de nascimento do Monumento de Mafra[1]. A intenção régia foi confirmada pelo alvará de 19 de julho de 1714, com especificações que vão para além de uma simples dádiva aos franciscanos; (ii) a 7 de novembro de 1716, Roma atribuiu o estatuto de Patriarcal à cidade de Lisboa e a dignidade cardinalícia ao patriarca foi concedida a 17 de dezembro de 1737; (iii) a 17 de novembro de 1717, foi finalmente colocada e benzida a primeira pedra da Basílica, que foi consagrada Nossa Senhora e a Santo António, em 22 de outubro de 1730, ao som dos seis órgãos e com o reino político, militar e religioso presentes; (iv) por fim, a 23 de dezembro de 1748, D. João V foi distinguido pelo papa com o prestigiado título Fidelíssimo.

Conforme referido, data de 17 de novembro de 1717 o lançamento da primeira pedra da edificação do Monumento, que reúne na imponência de um edifício de estilo Barroco a Basílica, o Convento e o Palácio. Um tríptico feito em pedra lioz, atualmente com função religiosa, militar e cultural, a que se junta a Tapada. Grosso modo, o Monumento foi concluído à data da morte de D. João V (1750), embora os acabamentos continuassem. Alexandre Herculano olhou para o Monumento como «uma sensaboria de Mármore», Sousa Viterbo referia-se-lhe como o de maior grandeza em Portugal, digno de rivalizar com o Escorial, Eduardo Brazão lembrou que «D. João V transformou o ouro do Brasil num rico património de arte e cultura» e Paulo Pereira afiança que «será a lembrança de São Pedro de Roma, como arquétipo da cristandade, na sua simbologia e na sua dimensão». Na verdade, o Monumento rejuvenesceu Mafra, uma pequena localidade em processo de erosão humana, que vivia à sombra da Igreja de Santo André e do palácio dos marqueses de Ponte de Lima.

Tão antiga como Portugal, a urbe foi conquistada por D. Afonso Henriques aos mouros, em 1147, e recebeu Foral, em 1190, no reinado de D. Sancho I. Em 1513, quando Mafra viu o Foral confirmado por D. Manuel I, tinha menos de 200 fogos e pouco mais de 800 moradores, dispersos pelos lugares do Longo da Vila, Zambujal, Gonçalvinhos, Gorcinhos, Cachoça, Rochera, Amoreira, Póvoa, Quintal e Vale de Carreiro. Situação que se alterou quando D. João V mandou assentar mármore no sítio do Alto da Vela e ali erguer o símbolo maior do seu magnânimo reinado. Dessa forma, e conforme refere Manuel Gandra, “Mafra atingiu a maioridade à sombra do convento[2], emergindo paulatinamente uma «vila nova» à conta da chegada de milhares de trabalhadores, de militares e da abertura de acessibilidades. Situação que obrigou a “consertar as estradas que iam da corte para Torres Vedras e o Convento do Varatojo, a fim de neles poderem circular os coches. Com isso beneficiaram os caminhos de Sintra a «Pedro» Pinheiro, de Lisboa para Belas e de Loures para o Zambujeiro, as calçadas de Lousa de Cima e de Baixo, o rio Frielas, que foi limpo para a navegação, a ponte de Santo António do Tojal, onde se mandou abrir um porto e fabricar um cais[3].

Muita tinta tem sido vertida para explicar as razões que motivaram D. João V a erguer o colossal monumento do Barroco na árida vila de Mafra. Refere a tradição o cumprimento do voto feito por D. João V à divina Providência para lhe garantir descendência (1711) e em preito de agradecimento por assim lhe ter sido concedido (1717). Tradição que se inicia com as memórias manuscritas de D. Jaime de Mello, 3.º duque do Cadaval (1730)[4], e que serviram de inspiração a frei João de S. José do Prado para escrever a obra de referência sobre a sagração da Basílica, datada de 1751[5], em jeito de memorial a D. João V (morto no ano anterior) e, mais tarde, a frei Cláudio da Conceição (1820)[6] que, embora reconheça contradições sobre o assunto, não só não as deslinda como vinca a questão com a série «Gabinete Histórico», escrita com patrocínio régio e dedicada a D. João VI. Portanto, o Convento de Mafra e demais complexo que lhe está associado resultaram da urgência e necessidade de perpetuar a dinastia de Bragança, algo que só os bons ofícios do Altíssimo poderiam garantir. Mais recentemente, o escritor José Saramago escreveu o laureado «Memorial do Convento» (1982) onde, em jeito de romance histórico, alinha pelo mesmo diapasão; menos com a intenção de enaltecer o Monumento ou distinguir Mafra, e mais com intenção ideológica de menorizar o reinado de D. João V e apoucar a Igreja Católica.

Os justos motivos do alvará de 26 de setembro de 1711 até podem ser os da sucessão, suplicados menos de três anos após ter contraído matrimónio com Maria Ana da Áustria. Mas convém anotar cronologicamente a prole legítima de D. João V – cinco filhos, todos nascidos antes da colocação da primeira pedra do Convento e dos quais só o segundo morreu de tenra idade: (i) D. Maria Bárbara, que nasceu em 4 de dezembro de 1711 (dois meses após o alvará), morreu em 1758 como rainha consorte de Espanha; (ii) D. Pedro, príncipe do Brasil, nasceu a 19 de outubro de 1712 e morreu de tenra idade, em 29 de outubro de 1714 (três meses após a o alvará de confirmação); (iii) D. José, nasceu em 6 de julho de 1714 (dias antes do alvará de confirmação) e morreu no trono em 1777; (iv) D. Carlos, nasceu em 2 de maio de 1716 e morreu jovem, em 1730 (antes da sagração da Basílica); (v) D. Pedro, nasceu a 5 de julho de 1717, foi rei de Portugal, casado com a rainha D. Maria I, e morreu em 1786.

Replicamos a questão: D. João V decretou a construção do Real Edifício porquê e para quê? Atentemos no alvará de 1711: “Eu El Rey faço saber, que por justos motivos, e por especial devoção que tenho ao glorioso Santo António, e por honrra sua. Hey por bem conceder lisenca por esmola que no destricto da Villa de Mafra se funde hum convento dedicado ao mesmo santo; lotado para assistirem nelle treze relligiozoz somente; com declaração que o ditto convento há de ficar pertencendo à província dos rellegiozoz capuchos Arrabidos (…)”. D. João V refere explicitamente “justos motivos”, guardando para si o conteúdo dos mesmos, acrescentado a “especial devoção ao glorioso Santo António”.

A questão centra-se nos justos motivos: (i) segundo António Caetano de Sousa[7], trata-se da promessa feita (e não cumprida) aos senhores de Mafra, por parte de D. Pedro II (a que o filho D. João V deu seguimento) de construir um convento em zona arborizada, recatada e sobranceira ao mar, como convém a um local de oração franciscana. A mesma razão, cumprimento de um voto formulado por D. Pedro II, aventa monsenhor José de Castro na sua obra «O Cardeal Nacional» (referente a Vincenzo Bicchi), depois de analisar as cartas existentes no arquivo secreto do Vaticano[8]; (ii) o médico naturalista suíço Charles Frédéric de Merveilleux, que esteve em Portugal entre 1723-1726, a convite de D. João V, alude que a origem do voto do rei prende-se com os seus problemas de saúde, sentidos desde muito cedo e até 1726, mas com especial gravidade em 1711. Correndo risco de vida devido à tísica, foi-lhe aconselhado o ar mais puro do campo, indo para Azeitão (14 de Junho de 1711) e depois para a Arrábida, a 20 do mesmo mês, onde esteve com os monges franciscanos. O Núncio Apostólico em Lisboa, monsenhor Vincenzo Bicchi, também menciona os problemas de saúde de D. João V e as preocupações dos médicos, nesse ano de 1711, diagnosticados como flatos hipocondríacos e aconselhando passeios campestres nos locais referidos, a que se acrescenta Sintra e Mafra[9]. Manuel Gandra, talvez o autor que mais veementemente tem rebatido a tese da descendência, é mais específico na identificação dos problemas de saúde do rei, frisando que os flatos hipocondríacos do rei nada mais eram do que sífilis[10]. Assim, o receio pela vida, os contactos com os monges da Arrábida, as melhoras a partir de julho de 1711 e a gravidez da Maria Ana, visível pouco depois, motivaram D. João V ao voto do convento, escolhendo Mafra para o efeito; (iii) por fim, Paulo Pereira, mais pragmático, refere que a construção de um convento em Mafra, decidido por D. João V e dedicado por esmola a Santo António, foi ao encontro de um desejo dos franciscanos, datado do século XVII. Mafra tinha todas as condições para acolher um convento rudimentar com as características dos muitos que há mais de um século pejavam a Arrábida: simplicidade dos edifícios, pobreza material, contacto com a natureza, proximidade ao mar e o recolhimento contemplativo e silencioso, subjacente à oração e à devoção. O problema, destapado com o alvará de 1714 e explícito a partir do início das obras, em 1717, é que o Convento de Mafra fugiu a estes preceitos de desprendimento e contrariou os estatutos de pobreza franciscanos, transformando-se num colosso monumental imposto por vontade régia[11].

Entre o pequeno convento prometido em 1711 e o tríptico monumento iniciado em 1717, o que aconteceu realmente? Entendemos que a promessa feita por D. João V de construir em Mafra «o seu monumento» partiu de uma causa concreta, de uma motivação objetiva e de uma oportunidade subjacente.

A causa terá sido o cumprimento de promessa feita por D. Pedro II, que morreu em 9 de dezembro de 1706, em plena Guerra da Sucessão de Espanha, sem lhe ter dado andamento.

A motivação terá mais a ver com os graves problemas de saúde que afligiram o monarca a partir de 1708. Receoso de padecimento precoce e por receio da Casa de Bragança, jurou a Deus que, pela sua saúde, se havia de levantar em Mafra um convento para treze frades franciscanos (número usual para conventos dos arrábidos), em honra de Santo António (santo português muito venerado). Se, em 1711, D. João V já tinha um filho ilegítimo, D. António, nascido em 1704, ainda antes do casamento e, no final do ano, a legítima D. Maria Bárbara, nascida menos de três anos após o matrimónio, não é de supor os receios de não procriação. A promessa foi feita em 1711 e o sítio do Alto da Vela foi definido em 1712, pelo próprio monarca. Um local altaneiro, situado a cerca de 2 km a Sudeste da «Vila Velha». Porém, três anos depois (1714), o convento capucho de Mafra ainda não tinha saído do papel, o que as negociações relativas ao fim da Guerra de Sucessão de Espanha podem explicar. Na verdade, no ano anterior, Portugal tinha acertado o Tratado de Paz com a França, vindo a suceder o mesmo com a Espanha, no ano seguinte.

Esta constatação remete-nos para o segundo alvará relativo ao convento, datado de 19 de julho de 1714: “Eu El Rey faço saber aos que este alvará virem que Eu hey bem nomear para thezoureiro do dinheiro aplicado a obra do Convento que mando fazer na Villa de Mafra dedicada ao glorioso Santo Antonio para nelle assistirem treze Relligiosos da Provinçia da Arrabida a Antonio Soares de Faria e para seo escrivão da receita e despesa ao Maximo de Carvalho cujas ocupações eles servirão com todo o cuidado e satisfação e na Camara da dita Villa se lhe dará a posse e juramento dos ditos officios pelos officiaes della para que bem e verdadeiramente sirva (…)”. Apesar de manter a ideia de um pequeno convento para treze frades, é mais específico, pois, apesar da «esmola», centra a responsabilidade da sua construção no Estado e não na congregação religiosa.

Apesar de renovação do alvará, as obras só se iniciam 1717, existindo entre as duas datas um conjunto de ocorrências político-militares entre Lisboa e Roma que influenciaram a edificação do régio edifício. Em concreto, os feitos navais realizados pela Marinha de Guerra no Mediterrâneo Oriental, em 1716 e 1717, contra os Otomanos, ditaram a oportunidade. O ocorrido em 1716 permitiu a D. João V concretizar o sonho de elevar a sua real capela a Basílica Patriarcal e transformar Lisboa num centro de referência espiritual da cristandade. Os factos de 1717 determinaram a edificação em Mafra não de um convento rudimentar para treze frades, mas de um colossal monumento régio que incluía um Convento para mais de 300 frades, uma sumptuosa Igreja e um majestático Palácio.

 

 

2. A medida do prestígio régio – aparelho militar e diplomacia

D. João V foi, provavelmente, o último estadista de renome que governou um Portugal de referência. E o seu tempo terá sido um dos raros casos nacionais em que se conjugaram harmoniosamente os objetivos fundamentais da Nação: segurança territorial, garante da soberania, bem-estar social e prestígio (interno e externo) do Príncipe. A máxima política do politólogo francês Jean Bodin (1529-1596) – «Estado soberano é aquele que não tem igual na ordem interna, nem superior na externa» – encontra no Portugal da primeira metade de setecentos um exemplo de referência. O politólogo defendia o Absolutismo monárquico (regulado pelas leis de Deus e do Estado), entendia o poder do soberano como o meio para assegurar a liberdade das pessoas e o seu bem-estar e encarava a religião como um normativo social, onde a tolerância confessional devia ser observada[12].

D. João V subiu ao trono, a 9 de dezembro de 1706, com a idade de 17 anos, numa altura em que Portugal estava envolvido na Guerra da Sucessão de Espanha (1703-1715), como aliado da Grã-Bretanha e da Áustria («Grande Aliança»), contra a França e a Espanha. Curiosamente, meio ano depois desse grande feito de armas que foi a ocupação de Madrid, pelo marquês das Minas (28 de junho); “uma valente ripostada” que vingou as provações da Guerra da Restauração[13]. Foi um fogacho moralizador sem consequências estratégicas, até porque, no ano seguinte (25 de abril de 1707), a França e a Espanha impuseram uma copiosa derrota à «Grande Aliança», na Batalha de Almansa.

A guerra desgastou militar e socialmente o Reino e exauriu os cofres públicos e D. João V, que não apreciava a guerra, acertou a paz com a França de Luís XIV (1713) e com a Espanha de Filipe V (1715), em Utreque. O Tratado com a França permitiu sustentar a soberania nos territórios do Aipoc ao Amazonas; através do Tratado com a Espanha, Portugal recuperou a colónia de Sacramento. De resto, com a Espanha concluíram-se tratados de vizinhança amigáveis, vitais para a definição de uma política atlântica, e manteve-se a cooperação comercial com a Inglaterra, firmada com o Tratado de Methuen (1703)[14]. Terminada a guerra, D. João V proclamou uma frase com sentido estratégico: “cuidemos de nós[15].

Por essa via, D. João V assentou a opção de neutralidade nas relações exteriores (segurança), privilegiou a política atlântica comercial (bem-estar) e distinguiu a Santa Sé como ator principal (prestígio). Internamente, lançou um conjunto de obras públicas e monumentos reais, promoveu a industrialização, desenvolveu o comércio, diligenciou a arte e a cultura e preocupou-se com o aparelho militar.

 

2.1. Assuntos Domésticos – Rei que não deve nem teme!

D. João V, dando seguimento ao normativo de poder herdado de D. Pedro II, firmou-se no princípio de que “não se deve tratar publicamente o que só os reis devem resolver e ter em um segredo, nem pedir aos súbditos os remédios e os arbítrios, pois que a eles pertence obedecer e não determinar[16]. De igual modo, em finais dos anos 1720, afastou da esfera cortesã e de funções do Estado uma trintena de nobres, tidos como contrapoderes ou acomodados à sombra do Palácio da Ribeira. E disse-lhes, sem filtros: “o Rei D. João IV amava-vos, D. Pedro II temia-vos, mas eu que sou vosso senhor de juro e herdade não vos temo e não vos amarei senão quando a vossa boa conduta vos tornar dignos da minha Real atenção[17]. O absolutismo impunha-se em Portugal.

O Reino, conforme referido, saiu financeiramente depauperado da guerra europeia e ficou a braços com uma avultada dívida externa, sendo a Inglaterra o principal credor, e sentiu os constrangimentos de dívidas a pagar internamente, nomeadamente aos militares que garantiram o esforço de guerra. Essa situação preocupou de sobremaneira o soberano, além da penúria em que viviam as populações, inapelavelmente carregadas de impostos. As especiarias do Oriente rendiam menos de que o desejado e os metais preciosos recolhidos no Brasil, a partir de 1697, chegavam ainda a conta-gotas.

Mas, a partir de finais de 1720, tudo muda, irrompendo o fluxo de extração do ouro, produção da carne, óleo de baleia e tabaco do Brasil. A dívida externa foi paga, o soldo dos militares e os rendimentos do funcionalismo foi suprido, as contas foram equilibradas e a balança de pagamentos não voltou a apresentar défices até ao final do seu reinado. D. João V deixou, então, de recorrer aos povos para lhe votarem subsídios e libertou definitivamente o poder real da intervenção das cortes, nunca mais convocadas[18].

Garantida externamente a ambição de viver em paz, independente económica e financeiramente e esquivado da influência de uma nobreza sempre ciosa de excessivas ingerências nas decisões governativas, o soberano deu andamento à magnificência da coroa, à erudição artístico-religiosa e à sumptuosidade de grandes obras. Como exemplos monumentais, destacamos a edificação da Igreja do Menino de Deus, em Lisboa, do Real Monumento de Mafra, a Patriarcal no Paço da Ribeira, o levantamento do Aqueduto das Águas Livres, a construção do hospital das Caldas ou a abertura de estradas em vários pontos do Reino e de canais, com destaque para o do Vale da Azambuja.

A literatura e a história, vertidas pelo republicanismo no último quartel do século XIX, perderam-se na crítica exaustiva a D. João V e áquilo que denominavam de deplorável esbanjamento dos rendimentos brasílicos para obra e graça de um rei egocêntrico, nada preocupado com o progresso do Reino e o bem-estar dos súbditos. Inclusive, assentou-se, sem mais comentários, que o vetor militar da Nação foi perigosamente negligenciado. Propomos debater o assunto sob outro prisma. D. João V e a diplomacia de prestígio que desenvolveu garantiram a Portugal quase meio século de paz. De tal maneira que conseguiu resolver pacificamente graves contenciosos (em Portugal e na América do Sul) com a Espanha e afastou o Reino do envolvimento na Guerra de Sucessão Austríaca (1740-1748). Depois, importa centrar o seu reinado entre o do pai e o do filho. D. Pedro II não pôde furtar Portugal à Guerra de Sucessão de Espanha, que foi invadido por tropas espanholas e arrastado para operações militares na Península Ibérica durante uma década. Relativamente ao reinado de D. José, lembra-se o envolvimento na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) e a invasão hispânica do território português, em 1762. Situação que, no limite, aconteceu porque o prestígio externo de Portugal se desvaneceu, com a consequente perda de neutralidade. Na verdade, ao contrário do régio pai, D. José deixou os assuntos da governação nas mãos do marquês de Pombal, um pedreiro-livre iluminado que fez da nobreza o inimigo a abater e da Igreja a influência a anular. Com resultados desastrosos.

Sendo verdade que D. João V empregou elevadas somas monetárias, angariadas do quinto real do Brasil, em majestáticas e «beatas» obras, hoje fazem parte da monumentalidade nacional, a começar no icónico Real Edifício de Mafra, não desbaratou o tesouro régio ou o sangue dos súbditos derramado (e aí reside a sua diferença) em guerras europeias provocadas pelos arranjos de poder das grandes potências, como sucedeu com D. Pedro II e D. José I em Portugal, com Filipe V de Espanha ou Luís XIV de França. Além do mais, o que dizer dos diversos investimentos e incentivos nos mais diversos ramos de atividade: (i) no comércio brasileiro e na sua sustentação territorial contra a Espanha, a França ou os autóctones; (ii) na agricultura, através da importação de meios técnicos de produção e negação de importação de vinhos, aguardentes, azeite ou cervejas; (iii) na indústria, com a criação da indústria de seda e tecidos de ouro e prata, transformação das indústrias de vidro, garantindo à Marinha Grande o seu centro produtor, fundação da fábrica de papel na Lousã, isenções tributárias à fábrica da Vila dos Povos, que produzia atanados, bezerros, camurças e outras peles curtidas, proteção da indústria de ourivesaria, desenvolvimento da indústria de fundição de sinos, promoção das pesquisas mineiras no reino, protecção da indústria do sal e fundação da de tapetes; (iv) a nível militar, criou as academias militares de Elvas e Almeida, protegeu as antigas fábricas de lanifícios na Covilhã, que passaram a fornecer o pano necessário para fardar o exército, fundou a fábrica de pólvora na Ribeira de Alcântara e o arsenal de Lisboa para a construção de navios, promoveu a indústria de criação de cavalos e criou a fábrica de armas e peças de artilharia; (v) na cultura, recomendou aos seus representantes no estrangeiro que fizessem investigação sobre inovações realizadas no campo dos ofícios e das artes, ordenando a aquisição dos modelos, a compra de segredos da indústria e contratos dos inventores, subsidiou as artes, as letras e as ciências, que sofreram um impulso notável, merecendo destaque a fundação da Academia Real da História Portuguesa, a abertura da Aula do Risco em Mafra (escola de Arquitetura), as bibliotecas do Palácio de Mafra e a Joa-
nina da Universidade de Coimbra[19].

Em síntese, é verdade que havia da parte de D. João V uma inclinação pelo lustro de um Rei-Sol à portuguesa, através da opulência do trono, da magnificência do altar e da grandiosidade monumental, muito além da qualidade de vida da comunidade. Mas não o é menos a posição cimeira que ocupou na política europeia, os cuidados postos na administração ultramarina, sobretudo face ao crescente potencial do Brasil, e a obra de cultura e mecenato das letras e belas-artes patrocinadas[20].

 

2.2. Reorganização Militar – Perceções e Realidades

Com o século XVIII impõe-se o Absolutismo. O rei era o Estado e a guerra um negócio que lhe era exclusivo. Os oficiais deixaram de ser membros de uma casta guerreira, que lutavam segundo um conceito de honra ou de obrigação feudal, e já não eram mercenários que executavam um trabalho para alguém que lhes pagava. Eram funcionários do Estado, a quem estava garantido emprego e salário regulares e uma perspetiva de carreira, dedicando-se, assim, ao serviço do país na paz e na guerra. Neste período, os oficiais (nobres) e os soldados (marginais) eram sujeitos a uma disciplina férrea, a máquina militar (homens, armamento e equipamento) era muito dispendiosa e a componente logística era tão importante como a estratégia militar. A ordem linear e o fogo aumentavam relativamente à ordem profunda e às virtudes do choque. As guerras e os objetivos eram limitados, as batalhas travavam-se por consentimento mútuo e a preservação da força era uma preocupação dos comandantes[21].

A nível militar, e no que ao Exército diz respeito, D. João V determinou as «Novas Ordenanças» (15 de novembro de 1707), no seguimento do desaire de Almansa, onde foi notória a descoordenação entre os modelos de organização militares português (hispânico), inglês e holandês. Na procura de uniformização e eficiência, o terço de infantaria e a tropa de cavalaria viram a semântica alterada, passaram a ser designados regimentos. Foram abolidos os governadores das armas provinciais, os generais de cavalaria e os comissários-generais. Publicaram-se 42 artigos de guerra (1710), enquanto embrião de um código de justiça militar. A defesa do Reino ficou assegurada por três escalões de tropas: Exército de primeira linha (regular); Terços Auxiliares (milícias); e Ordenanças.

O Exército de primeira linha era permanente e o garante da solidez militar. Tinha comandos próprios, estava aquartelado, usufruía soldo regularmente e ostentava uniforme, insígnias e estandartes identificativos da unidade respetiva. Era constituído por 55 regimentos – 34 de infantaria, 20 de cavalaria e um de artilharia. Cada regimento compreendia 12 companhias (os de infantaria incluíam uma companhia de granadeiros e os de artilharia uma de pontaneiros); cada companhia de infantaria e artilharia escriturava 50 militares e as de cavalaria 40 cavalos. Dois regimentos de cavalaria ou infantaria agrupavam-se numa brigada, sob o comando de um brigadeiro, os regimentos tinham comando de coronel e um estado-maior[22]. As companhias eram comandadas pelo capitão, a que se subordinavam um tenente, um alferes, dois sargentos e quatro cabos. Relativamente ao comando superior do Exército, acima do brigadeiro estava o sargento-mor de batalha (primeiro posto de oficial general), o mestre de campo general (comum às armas de Infantaria, Cavalaria e Artilharia) e o capitão general (comandante-chefe do Exército), que era nomeado mediante escolha régia.

De França, igualmente se copiaram medidas como a proibição da venda de postos militares, a abolição da faculdade que tinham os capitães de nomearem os seus subalternos ou as restrições postas ao alistamento a soldo de particulares. A obrigatoriedade de saber ler e escrever foi imposta aos oficiais subalternos e graduados inferiores, o que mostra ainda a ausência de «escolaridade» entre os oficiais do exército.

Relativamente aos Terços auxiliares e às Ordenanças, foi confirmado o Regimento de Ordenanças do tempo de D. Sebastião. Os primeiros tinham comando próprio e os soldados recebiam soldo, alimentação e equipamento/fardamento sempre que fossem utilizados em campanha ou movimentados para o guarnecimento de praças-fortes. Já as Ordenanças, destinavam-se a fornecer, mediante sorteio, tropas para o Exército de linha ou os Terços Auxiliares, sempre que necessário.

A infantaria ficava definitivamente armada com a espingarda ou fuzil de pederneira (companhia de fuzileiros) e granadas de mão (companhia de granadeiros), já introduzidas por D. Pedro II (1696). O armamento da cavalaria era o sabre, a pistola e a clavina, sem couraça nem elmo. A artilharia compreendia bocas de fogo de campanha e de sítio.

Nas academias militares da Corte, de Viana, de Almeida e de Elvas ensinava-se fortificação, ataque e defesa de praças, estratégia e tática. Passou a atribui-se importância acrescida aos fogos da infantaria, que se faziam a pé firme ou ganhando terreno. A formação normal, (modelo francês) era em quatro fileiras, mas previa-se a formação em três. Paulatinamente, as linhas adelgaçavam-se e o fogo ia-se sobrepondo ao choque.

Após Utreque, D. João V passou da fase da guerra para a fase militar e depois para a fase da paz. Os efetivos militares foram diminuídos. O Exército passou, então, a compreender 20 regimentos de infantaria, 10 de cavalaria e 1 de artilharia. Os regimentos, denominados em conformidade com a localidade de aquartelamento, estavam distribuídos pela região de Lisboa (5 de infantaria e 2 de cavalaria), Alentejo (7 de infantaria e 4 de cavalaria), Beira (2 de infantaria e 2 de cavalaria), Trás-os-Montes (2 de infantaria e 2 de cavalaria), Minho (2 de infantaria) e Algarve (2 de infantaria). Portugal passou a ter 12.600 infantes e 3.000 cavalos[23].

Nesse período, o monarca foi acompanhando a situação, como dão conta as notícias da Gazeta desse tempo. A de março de 1716 informa: “fizerão exercício no campo de Pedrouços os Regimentos de Cavallaria da Guarnição desta Corte na presença de S. Majestade que ficou muyto satisfeyto do bem que o executarão” e, em dezembro de 1717, diz “como os Regimentos de Infantaria & Cavalaria não estão completos ordenou Sua Majestade se passassem ordens para se preencherem, & que os seus officiaes se recolhessem a eles. Fabricão-se no Reyno as fardas para os vestir”. O soberano pretendia uniformidade, prontidão e coesão, procurando conter as pulsões senhoriais de aristocracia mais interessada no mando do que no comando e acabar com as resistências populares à conscrição, para quem o recrutamento era inimigo da agricultura. Encaminhados para os quartéis, os cidadãos viam-se na condição de soldados, a quem lhes era dada disciplina, higiene e instrução; a nobreza castrense foi coagida a não fazer dos quartéis um mero local de passagem e de posse.

Contudo, e porque a paz não é militarmente boa conselheira em Portugal, foi aumentando a deficiência na instrução, a carência de armamentos e de cavalos e, principalmente, a falta de boa vontade dos altos comandos e oficiais em dar corpo à legislação produzida. Os assuntos da guerra eram encarados com punhos de renda e as obrigações militares entendidas como desprestigiantes. Com a paz na Europa, foi em Marrocos, contra os árabes, na costa ocidental africana (S. Jorge da Mina, S. Tomé, Cabinda, Angola) para fazer face à pirataria, e na Índia, para travar as ações dos máratas, que as operações militares terrestres foram maioritariamente desenvolvidas. Ao contrário dos séculos precedentes, eram teatros de operações que já não cativavam o valor bélico de uma nobreza cada vez mais acomodada junto da corte, nem tão pouco os soldados.

Uma corte onde a oficialidade, qual «soldadinhos de chumbo», se passeava, ostentando brilhantes dragonas nos ombros de fardas reluzentes a seu bel-prazer, exorbitando feitos jamais vistos! De tal forma que, em 1749, D. João V interveio com a promulgação da Pragmática, destinada aos oficiais que exageravam nos adornos e enfeites colocados nas fardas, entendendo-os como lesivos da praxis militar. Impunha-se diferenciar o militar do civil, impedindo a liberdade de escolha dos uniformes pelos oficiais, muito orientada pela moda de salão afrancesada.

Relativamente a estas realidades, é interessante a anotação de Merveilleux: “apesar de as praças de Portugal serem bem fortificadas, no entanto não estão tão bem providas como conviria para a segurança do Estado. Tendo dado Sua Majestade de há muito tempo toda a sua atenção aos assuntos da Igreja e do Patriarcado, os da guerra têm sido muito desprezados. Só serão reparados ao primeiro ruído de guerra de que Portugal for ameaçado. Um dos maiores males que existem em Portugal relativos à guerra, é haver quase tantos funcionários públicos como soldados. Estes empregados são os escribas da Vedoria, mas pode ser que este estado de coisas se modifique com o tempo. O soldo dos oficiais e dos soldados é muito módico e estes últimos ocupam-se em fazer meia para ganharem com que viver. Mas como já se disse, em Portugal despreza-se tudo o que trate de assuntos de guerra. É espantoso como os portugueses, em quem se observa tão pouca ordem no que respeita à parte militar, tenham tido sempre vantagem sobre os espanhóis; mas talvez hoje não acontecesse o mesmo se rebentasse uma guerra entre as duas nações[24].

A preocupação dominante era efetivamente a defesa das fronteiras, nomeadamente junto das penetrantes terrestres. Disso nos informa a Gazeta de 30 de agosto de 1715: “reforma do Exército. S. Majestade (…) querendo aliviar os povos de alguns dos tributos que lhes havia imposto com a ocasião da guerra, foy servido ordenar por decreto de 20 do presente mez de Agosto, que se reformasse o seu exército, ficando aquelle número de Infantaria e cavalaria que fosse preciso para guarnição das praças fronteyras, (…) importando por este modo toda a Infantaria em doze mil e seiscentos homens”. A Espanha, cronicamente entendida como um perturbador externo, daria razão a estas preocupações, principalmente com o estalar da crise de 1735 entre os dois reinos ibéricos, altura em que os efetivos nacionais subiram para 26.400 militares de infantaria (22 regimentos) e 3.400 de cavalaria (6 regimentos de cavalaria ligeira e 4 de dragões). Nesse mesmo ano, foram criados o batalhão e o esquadrão como unidade táticas da infantaria e cavalaria, respetivamente, e a organização militar passou a ser definida em termos de regimento e batalhão/esquadrão.

Relativamente à Marinha[25], desde meados do século XVI que a armada era permanente e, apesar de comportar funções essencialmente comerciais, era ao mesmo tempo uma armada de guerra, equipada e sustentada pela coroa. Foi isto que permitiu a Portugal alcançar êxitos no Oriente e sustentar o Império Ultramarino no binómio Brasil-Angola. A potência naval foi um fator de credibilidade externa de Portugal. Situação que se esvaiu ao longo do século XVII e, com ela, o peso do País na balança europeia.

Com o fim da Guerra da Sucessão de Espanha e a desmobilização das forças, permaneceram no ativo somente três regimentos da Marinha Real, com 2.600 homens, um regimento da Coroa, um da Junta de Comércio e outro da cidade do Porto. Os arsenais de Marinha, que ficavam perto do Palácio Real, e a cordoaria, estavam em boa ordem, o mesmo se podendo dizer dos dois estaleiros existentes em Lisboa e o da Baía (fundado em 1714).

Portugal, um Estado imperial-comercial, necessitava de manter linhas de navegação abertas e garantir a segurança no alto mar, principalmente para transporte de especiarias da Índia e ouro do Brasil. Assim, D. João V procurou modernizar a Marinha, ampliando a frota disponível, numa época em que predominavam os navios de vela, nomeadamente as naus e as fragatas: as naus eram navios de grande porte, que serviam como navios de guerra e de carga; as fragatas eram navios mais rápidos, manobráveis e com armamento mais ligeiro de que o das naus, sendo preferencialmente utilizados em missões de escolta e de reconhecimento. A capacidade de fogo da artilharia e a robustez destas embarcações faziam delas autênticas fortalezas flutuantes. Como na guerra naval a robustez dos navios, a sua capacidade de manobra e o poder de fogo eram decisivos, a tática de combate, que fazia depender a sorte das batalhas, residia na capacidade de saber aproveitar os ventos, colocar a frota em linha e concentrar o fogo no casco dos navios adversários, levando ao seu afundamento ou retirada; o sistema de abordagem era coisa do passado.

Contudo, em 1735, a força naval portuguesa apresentava somente dez naus (mais sete em construção), um potencial curto para o potencial estratégico do Reino. A realidade era tal que, para defender da pirataria as embarcações vindas com os metais preciosos e demais mercadorias do Brasil, que infestava o Atlântico, foram contratados navios de guerra estrangeiros. A política de que o ouro tudo pagava….

Entretanto, por Alvará de 28 de julho de 1736, destinada aperfeiçoar a organização do Estado, D. João V substituiu as secretarias de Estado, Mercês, Expediente e Assinaturas pelas Secretaria de Estado dos Negócios Interiores do Reino, Secretaria de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos e Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Como se percebe, os dois departamentos militares (Marinha e Guerra) ficavam ligados a departamentos civis (Negócios Ultramarinos e Negócios Estrangeiros)[26]; a nobreza de capa sobrepunha-se à nobreza de espada e as instituições militares perdiam prestígio.

O Estado entrou numa fase de desmilitarização. Em suma, qual paradoxo, é curioso verificar que, sendo as guerras, nesta altura, um negócio dos reis e a força armada propriedade sua, a magnificência política não teve paralelo na eficiência militar. De resto, uma situação verificável na maioria das monarquias europeias.

Sobre as questões militares da época, deixamos ainda uma interessante nota sobre o balão a gás inventado pelo padre Bartolomeu de Gusmão. A «Passarola», como ficou conhecido o invento, ou o «instrumento de andar pelo andar», com o se lhe referia o autor, foi apresentada enquanto projeto a D. João V, que lhe concedeu alvará em 18 de abril de 1709. O invento foi sujeito a diversas experiências ao longo da década de 1710-1720 e inserem-se no que alguns autores designam de antecedentes da génese da aviação, precedendo a invenção do balão tripulado (1783), originalmente atribuída aos irmãos Joseph e Jacques Montgolfier.

 

2.3. Política Externa Joanina – Primus Inter Pares

Portugal esteve empenhado, desde 1640, numa longa guerra pela independência contra a Espanha, contando com os apoios decisivos da França, primeiro, e da Inglaterra, depois. A Restauração foi definitivamente aceite pela Espanha, em 1668, e reconhecida pela Santa Sé, só em 1670. Seguiu-se o arrastamento para a Guerra da Sucessão de Espanha, a partir de 1703, que desgastou o Reino. D. João V, decidido a recolocar Portugal como um primus inter pares no xadrez político europeu, assumiu a neutralidade como vetor estrutural da postura portuguesa e desenvolveu um conjunto de ações diplomáticas com os atores de referência: (i) o seu casamento com Maria Ana da Áustria, a 27 de outubro de 1708, reino com quem Portugal firmou parceria contra a Espanha na guerra europeia e que era um Estado-tampão da expansão otomana no Sul da Europa e elo de referência na relação com Roma; (ii) com a Inglaterra manteve as parcerias comerciais acordadas no Tratado de Methuen, mas esbateu a relação estratégico-militar, atendendo à desconsideração com que Londres tratou Lisboa nas negociações que precederam o Tratado de Utreque e ao recorrente arrastamento para conflitos de duvidosa vantagem; (iii) no tocante à França, centrou a atenção na sua ambição na Amazónia, na dinâmica da corte parisiense e no prestigiante protocolo diplomático. A admiração de D. João V por Luís XIV levou-o a afirmar que “ninguém como ele soubera ser rei[27]; (iv) relativamente à Espanha, acompanhou as vicissitudes da sua política interna, as manobras externas e vigiou as movimentações militares; (v) face à Santa Sé, ator charneira no tocante ao prestígio desejado por um soberano espiritualmente inflamado, colocou-a no patamar cimeiro da estratégia diplomática.

Centremos a atenção no relacionamento com a Santa Sé e com a Espanha.

As relações com a Espanha de Filipe V foram pautadas pela desconfiança mútua. A questão resulta da sucessão ao trono de Espanha, a partir da morte, sem descendência, de Carlos II (1700). Perante a existência de dois candidatos – arquiduque Carlos, filho do imperador Leopoldo da Áustria, e Filipe de Bourbom, neto de Luís XIV da França –, Portugal apoiou o candidato austríaco, alinhando pela Inglaterra contra as pretensões de unificação da França com a Espanha. A Europa mergulhou na Guerra da Sucessão de Espanha (1701-1715) e, depois da ocorrência de vicissitudes de vária ordem, o arquiduque Carlos acabou por assumir o trono da Áustria e Filipe o da Espanha. O resultado foi a continuação de relações tensas entre os dois Estados peninsulares.

A nível peninsular, o momento de maior tensão ocorreu em 1735, com o corte de relações entre D. João V e Filipe V, originado por um incidente diplomático. Em 2 de fevereiro, um cidadão espanhol, perseguido pelas autoridades, refugiou-se na legação portuguesa de Madrid, originando a invasão da casa do embaixador, Pedro Álvares Cabral, e a detenção de alguns dos seus criados. Como resposta, a casa do embaixador de Espanha em Lisboa foi também invadida e alguns dos servidores presentes foram presos. Contudo, os desentendimentos já vinham detrás. A tendência belicosa do rei hispânico era notória e a procura do prestígio perdido desde a morte de Filipe IV (1665) evidentes, como o provam a postura agressiva contra a Inglaterra e a tentativa em recuperar Gibraltar (ocupada em 1704), o conflito contra a Áustria pelo domínio na Península Itálica, o envolvimento na guerra da Sucessão da Polónia (1733-1738), aliado da França contra a Áustria e a Rússia e, mais tarde, o envolvimento na Guerra da Sucessão da Áustria (1740-1748), onde combateu a Inglaterra e a Áustria ao lado da França. Contudo, os resultados foram mitigados, em contraposição com a postura de referência que o rei de Portugal ia garantindo nas chancelarias europeias à custa de uma política de neutralidade sustentada e do emprego parcimonioso do vetor militar. Como o partido antiespanhol crescia na corte e na sociedade portuguesa, o incidente inflamou.

Cerca de 25.000 homens do exército filipino destinados à campanha em Itália ficaram retidos em Espanha, enquanto em Portugal foi ordenada a mobilização geral, na base de um quinto dos homens de 15 a 50 anos que havia nas várias comarcas (80.000 soldados). Destes escolheu-se um outro quinto de efetivos, formando 16.000 homens para guarnecer as penetrantes da fronteira do Alentejo, instalando-se em Estremoz o quartel-general da defesa do Reino[28]. Depois, enquanto chegava ao Tejo (6 de junho) uma armada inglesa em apoio de Portugal, a Espanha atacou a colónia do Sacramento (novembro). A crise acabou resolvida através da postura conciliadora de D. João V e dos bons ofícios da França e da Inglaterra, assinando-se a paz em 16 de maio de 1737.

Durante a Guerra da Sucessão da Áustria, que à semelhança da de Espanha envolveu a maior parte dos países europeus, Portugal garantiu o isolacionismo, apesar das boas relações com a Inglaterra e as ligações sanguíneas com a Áustria. Mais empenhado em revolver os limites do Brasil, D. João V estava pouco interessado numa guerra contra a Espanha, que estava alinhada à França no conflito[29]. Na verdade, não só sustentou a neutralidade, como Portugal foi convidado para ser medianeiro entre os contendores.

No final do seu reinado, a «cereja em cima do bolo» da política joanina foi a assinatura do Tratado de Madrid (13 de janeiro de 1750), concretizado com Fernando VI de Espanha, que definiu os limites da fronteira do Brasil. Nessa altura, o ainda vigente Tratado de Tordesilhas (1494) era uma miragem, a expansão dos bandeirantes portugueses para o interior do sertão uma realidade e a questão da bacia do Amazonas e da colónia do Sacramento/rio da Prata um pomo de discórdia. As negociações conduzidas pelo diplomata Alexandre de Gusmão foram de tal forma virtuosas que o meridiano de Tordesilhas foi ignorado e assumiu-se a ocupação territorial tout court como fator de soberania. Portugal garantiu toda a bacia do Amazonas e a Espanha ficou com o Sacramento (actual Uruguai). Na verdade, este «acordo de cavalheiros», garantiu a Portugal um imenso, rico e homogéneo território, enquanto a Espanha ficou com o ónus de um espaço espartilhado e encravado no Andes.

A ambição de viver em paz de D. João V prevaleceu. O soberano, “desiludido quanto ao apoio inglês, receoso também de uma aproximação à França, não podendo confiar na Espanha, Portugal regressara à sua antiga política de neutralidade, da qual, ao sabor dos respectivos interesses, as diplomacias de Londres e de Paris tentavam apartá-lo. Tal política explica também o estreitamento das relações com Roma e com Viena, donde mais dificilmente partiriam solicitações de apoio militar português, salvo quanto à participação em operações navais no Mediterrâneo contra os turcos. Esta política de neutralidade parecia corresponder aos interesses nacionais; à reacção popular, que tão avessa se mostrara à Guerra da Sucessão, e à índole do rei[30].

Se o relacionamento de D. João V com as potências europeias foi sustentado na avaliação estratégica da conjuntura e na racionalidade política dos objetivos a alcançar, com a Santa Sé gravitou entre a disponibilidade/subserviência e a irascibilidade/exigência. A grande ambição do monarca era a obtenção do patriarcado para a cidade de Lisboa. A pronta resposta militar dada às súplicas do papa Clemente XI, relativamente às ameaças dos otomanos na Península Itálica, em 1716, mereceram a elevação à dignidade de igreja e basílica patriarcal a colegiada de S. Tomé, que fora erguida na própria capela real (bula In Supremo apostolatus Solio, de 7 de novembro)[31]. A 11 de fevereiro de 1717, D. João V atribuiu ao patriarca de Lisboa (D. Tomás de Almeida) todas as honras e prerrogativas de que gozavam no reino os cardeais da Sé de Roma e, em 19 julho, de novo a armada portuguesa sulcou o Mediterrâneo e entrou em combate contra os turcos, ficando com os louros da vitória no seio da cristandade[32]. Pelo facto, as obras do Convento-Basílica iniciaram-se e, devido ao feito, Clemente XI outorgou ao patriarca de Lisboa a sagração dos reis de Portugal.

No entanto, as relações entre Lisboa e Roma esfriaram entre 1720-1730 (papas Clemente XI, Inocêncio XIII e Bento XIII), devido à exigência de elevação, por inerência, a cardeal do núncio acreditado em Lisboa após secessão de funções (à semelhança do que estava estipulado para os de Madrid, Paris e Viena) e à concessão do barrete cardinalício ao patriarca de Lisboa. Estas pretensões, além de contarem com a oposição «católica» dos «três grandes», o próprio papa receava colocar Portugal num patamar de tão elevada dignidade. Mas D. João V não se demoveu e cortou relações entre 1728-1731[33]. Enquanto isso, fazia da Lisboa patriarcal uma nova Roma, referindo-se Merveilleux à sua imponência e à magnificência com que o patriarca D. Tomás de Almeida oficiava, ultrapassando a do próprio papa nos momentos de maior solenidade[34].

A intransigência com a Santa Sé insere-se claramente no campo de uma diplomacia feita de etiqueta e orgulho, mas a verdade é que D. João V alcançou o que sonhou: (i) em 1731, monsenhor Vincenzo Bichi, que fora núncio apostólico em Lisboa, entre 1709 e 1721, foi «promovido» a cardeal; (ii) em 1737, pela bula Inter praecipuas apostolici ministeri, o papa Clemente XII elevava o patriarca à dignidade de cardeal, título que passaria a todos os seus sucessores. Curiosamente, nessa altura, Portugal contava com quatro cardeais; (iii) por fim, todo este processo culminou com a atribuição do título de Fidelíssimo a D. João V, a 23 de dezembro de 1748. Título que o colocava a par do Muito Católico rei de Espanha, do Cristianíssimo rei de França e de Sua Majestade Apostólica rei da Áustria.

 

 

3. Na esteira das forças militares do reino

Se a bem sucedida campanha naval, perpetrada pela Marinha no Mediterrâneo contra os Otomanos, representou a oportunidade para o Convento-Palácio sair do papel, ao Exército foi-lhe confiada a missão de apoiar logisticamente a sua construção e zelar pela boa ordem dos trabalhos e segurança da área envolvente.

 

3.1. À bolina da Marinha de Guerra – Corfu e Matapão

No mediterrâneo Oriental, a esquadra naval portuguesa participou na derradeira cruzada em defesa da cristandade, onde colheu os louros da anulação da ameaça turca na região[35].

Os acontecimentos bélicos são uma espécie de segunda vaga das guerras do século XVI, entre a República de Veneza e o Império Otomano, pelo controlo do Mediterrâneo Oriental. Veneza era uma República aristocrática e de mercadores da Península Itálica, com domínios lacustres como Creta, Chipre, Moreia (Peloponeso) e ilhas e cidades gregas do Mediterrâneo, que lhe davam o estatuto de grande potência talassocrática na região. A influência perdurou até ao século XVI, altura em que a expansão portuguesa e a espanhola desviaram o comércio europeu do Mediterrâneo para o Atlântico e o Índico. Quanto ao Império Otomano, desde a conquista de Constantinopla, em 1453, que a pressão islâmica se fazia sentir no Sul da Europa, onde ocupou a Dalmácia, a Transilvânia e a Ucrânia, e agia com particular ostentação no Mediterrâneo Oriental. Isto para além dos domínios existentes no Norte de África e na Arábia-Mesopotâmia. Se, em território europeu, era a Áustria que servia de travão ao sultão, no Mediterrâneo era Veneza.

O primeiro grande recontro ocorreu, a 7 de outubro de 1571, com a Batalha Naval de Lepanto (região da Grécia) e teve como catalisador a invasão turca da ilha de Chipre, no ano anterior. Os Reinos cristãos (Liga Santa – Espanha, Veneza, Estados Pontifícios, Cavaleiros de Malta e Portugal) combateram em espírito de cruzada e os turcos foram copiosamente derrotados. Cerca de cem anos depois, os otomanos invadiram a região balcânica, mas foram derrotados pela Áustria e pela Rússia, sendo obrigados a ceder a maior parte dos seus domínios territoriais, nomeadamente a Moreia e a Dalmácia, à República de Veneza, a Transilvânia e a Hungria, à Áustria, a Ucrânia, à Polónia e Azov, à Rússia. O Império Otomano decaiu, enquanto a outrora próspera e temida República de Veneza era uma sombra do passado.

Com a subida ao poder do Sultão Ahmed III, no início do século XVIII, a marinha e o exército são reorganizados e a decisão de reconquistar a Moreia e a Dalmácia é retomada. Então, em 1715, os turcos bloquearam o Levante, com uma armada superior a meia centena de embarcações, e invadiram a Península da Moreia, que ocuparam em poucas semanas, conquistaram Corinto, na Grécia, apoderam-se das ilhas de Tinos e de Cerigos, no mar Egeu, e ameaçaram a ilha de Corfu. Impotente, o doge veneziano Cornaro recorreu a Carlos VI, imperador da Áustria, e ao papa Clemente XI. Enquanto o imperador declarou guerra ao sultão, o papa invocou a cruzada junto dos Estados europeus. D. João V aderiu pronta e entusiasticamente, tal como a Ordem de Malta e os Estados Pontifícios, enquanto a Espanha e a França, envolvidos em guerra na Península Itálica e pouco motivados a auxiliar a Áustria, recusaram.

A situação era preocupante, o que explica que o papa tenha suplicado especificamente auxílio a Portugal, através de um breve à rainha D. Maria Ana (7 de janeiro de 1716) e dois breves a D. João V (16 e 18 de janeiro de 1716). No segundo breve ao rei transparece uma súplica angustiante, temendo a invasão da Itália e dos Estados Pontifícios pelos infiéis.

O poder naval e militar português não eram consideráveis, apesar de a Marinha de Guerra estar em fase de reconstrução desde 1713, pela mão do velho marquês de Fronteira e auxiliado pelo infante D. Francisco, irmão do monarca, duque de Beja e grão-prior da Ordem de Malta em Portugal. Mas o facto de o papa solicitar auxílio militar a Portugal era sintomático de uma distinção que urgia aproveitar. Por essa via, D. João V escreveu ao doge de Veneza uma carta tranquilizadora (16 de julho), que resumimos: “(…) vejo o aperto em que essa Republica se acha pela inesperada rotura da guerra do Turco, que animado pelo sucesso da campanha passada, se prepara com esta com maiores esforços; a notícia que me foi mui sensível, não só pelo perigo a que se acha exposto esse Estado, mas toda a christandade, se se não prevenir o damno com forças capazes de se lhe fazer oposição; e logo que Sua Santidade me comunicou o iminente perigo dessa Republica, e de todo o Estado ecclesiastico, mandei prevenir uma esquadra composta dos navios que se poderão aprestar dentro de pouco tempo. (…) Estimo muito que este socorro possa ajudar a Republica, por ser sua defensa commum com a da Igreja (…)[36]. A frota, constituída por nove navios, entre os quais quatro naus e uma fragata, rumou ao Mediterrâneo, a 4 de julho de 1716, sob o comando de Lopo Furtado de Mendonça, conde do Rio Grande e Almirante do Reino. Fez escala em Livorno e dirigiu-se depois para a ilha de Corfu, no Adriático, bloqueada pelos turcos e defendida pelos austríacos. Entretanto, a 16 de agosto, o príncipe Eugénio de Sabóia, comandante das tropas imperiais austríacas, derrotou os turcos em Peterwaradin, tomando de seguida Bucareste e Temeswar.

Face ao sucedido, consta que os turcos, quando souberam da aproximação da frota portuguesa, levantaram âncora e anularam o cerco em Corfu, zarpando para o mar Egeu, a 21 de agosto. Estranha atitude! Ou os turcos temeram ficar prensados entre as forças terrestres austríacas e as navais portuguesas ou, então, exorbitaram a real dimensão e poder da armada portuguesa. A verdade é que retiraram e os portugueses regressaram ao Reino, debaixo da admiração dos Estados europeus, os agradecimentos de Veneza e de Roma e sob os aplausos dos conterrâneos.

A frota entrou no Tejo em novembro de 1716 e, em reconhecimento da pronta disponibilidade do rei de Portugal em acorrer ao chamamento de cruzada para combater a ameaça turca no Mediterrâneo, o papa Clemente XI atribuiu o estatuto de patriarcal à cidade de Lisboa. Assim, e se atendermos que ainda hoje só existem três patriarcados de Rito Latino no mundo, sendo o mais antigo o de Veneza (século IX) e o mais recente Jerusalém (1847), fácil é perceber o privilégio da concessão[37]. D. João V materializava uma das grandes ambições do seu reinado.

Contudo, a esquadra portuguesa retirou e os turcos voltaram à carga. E D. João V voltou a ser solicitado pelo pontífice (carta pessoal de 14 de dezembro de 1716) e mostrou ainda maior disponibilidade. A 25 de abril de 1717, a frota do conde do Rio Grande saiu de Lisboa e passou o Estreito de Gibraltar, a 3 de maio. Constituíam-na sete naus de guerra, dois brulotes (navios incendiários), uma tartana (navio ligeiro de vela latina) e um navio de apoio, com um total de 3.840 homens e 526 bocas-de-fogo. Dirigiu-se a Corfu e ali se reuniu às armadas de Veneza (principal força naval), Florença, Malta, França e Estados Pontifícios. 35 navios cristãos iam dar batalha a 54 navios turcos no golfo da Lacónia (mar Mediterrâneo), no extremo sul da Grécia, cerca de vinte milhas náuticas a nordeste do cabo de Matapão.

A manobra das esquadras no mar Jónico conduziu a cristã à baía de Passavia (golfo de Lacónia), onde fundeou e foi surpreendida e bloqueada, na manhã de 19 de julho. A situação era periclitante e ainda a armada cristã procurava dispor as embarcações em linha para o combate quando os turcos a fustigaram pelo fogo. Os navios de remos abrigaram-se na baía, a frota portuguesa colocou-se à retaguarda e o duelo de artilharia naval decorreu com especial ferocidade, durante o período da manhã, incidindo sobre a vanguarda onde estavam os navios venezianos. Os combates prolongaram-se pela tarde, até que a ausência de vento imobilizou parte da frota cristã, tornando-a um alvo remunerador. Impotentes, os navios venezianos foram retirando e, depois, o mesmo aconteceu aos de Malta, tendo o almirante francês Bellefontaine dado a batalha como perdida.

Mas o almirante português não acolheu o infortúnio e deu início à sua própria batalha, aproveitando a pausa do fogo turco que, à vista das movimentações cristãs, aguardava. Enquanto o grosso da estática frota cristã fazia fogo à distância, uma nau veneziana e quatro naus portuguesas conseguem aproximar-se da linha de batalha turca: a Nossa Senhora da Conceição, comandada pelo conde do Rio Grande, a Nossa Senhora do Pilar, do conde de Távora, a Nossa Senhora da Assunção, às ordens do coronel Castelo Branco, e a Nossa Senhora das Necessidades, com o comandante Gillet du Bocage. Cinco navios cristãos enfrentavam agora quinze turcos. O fogo de dez embarcações turcas incidiu sobre a Nossa Senhora do Pilar, que foi manobrando e respondendo como pôde. É nesta altura que o conde do Rio Grande consegue colocar a Nossa Senhora da Conceição entre o navio do conde de Távora e a linha inimiga, despejando fogo concentrado sobre as suas embarcações. Esta ação de arrojo, e de sorte à mistura, foi de tal forma bem-sucedida que a armada turca fez alto ao fogo e abandonou a batalha, deixando literalmente os louros da vitória para a coragem de ferro dos marinheiros portugueses, que se aguentaram na robustez das embarcações de madeira, crivadas de balas.

Terminada a batalha, a esquadra portuguesa permaneceu na região durante um mês, para garantir uma presença dissuasora, efetuar reparações e receber elogios; que não lhe foram poupados, além da gratidão veneziana, bênção papal e admiração maltesa. A esquadra do conde do Rio Grande (elogiado por carta papal, datada de 16 de setembro de 1717) regressou a Lisboa, a 16 de agosto, onde aportou a 6 de novembro, tendo o rei e uma multidão no cais à sua espera. De repente, Portugal e D. João V tornaram-se paladinos de defesa da cristandade.

Sem coincidências, a construção daquele que viria seria o master edifício do Antigo Regime foi iniciada, objetivamente, no ano da vitória de Cabo Matapão, com a primeira pedra a ser cravada, precisamente, no mês da chegada a Lisboa da armada real. E isso porque foi a partir dessa altura que o rei teve a bênção papal e aferiu as mercês arquitetónicas, artísticas e financeiras para a edificação do real monumento.

E ainda porque, a partir daquela altura, o prestígio externo de D. João V exigia, além da patriarcal, um monumento que marcasse o reinado e a dinastia, vincando na Europa uma dignidade equiparável ao Escorial de Espanha, a Versalhes da França e à Basílica de São Pedro de Roma. Internamente, o voto aos franciscanos não só foi mantido como ampliado, dando-lhes uma paridade com as demais ordens religiosas existentes em Portugal: se os cistercienses tinham o Mosteiro de Alcobaça, os cónegos regrantes o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e São Vicente de Fora, em Lisboa, os dominicanos o Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha) e os jerónimos o Mosteiro de Santa Maria de Belém (Jerónimos), os franciscanos passavam a ter o Convento-Basílica de Mafra, dedicado a Santa Maria, ainda que o monumento tivesse um Palácio régio, de torreões similares ao do Palácio da Ribeira, em Lisboa, a enquadrar o contexto, lembrando onde residia a proeminência do poder[38].

 

3.2. O Exército e a Construção do Real Edifício de Mafra

Entre 1717 e 1750, o Exército em Portugal alinhou por um padrão de reduzidos efetivos e de baixo custo. Em situação de paz, o contingente terrestre do Reino situou-se entre 12 a 13 mil homens (20 regimentos de infantaria, 10 de cavalaria e um de artilharia), até à década de 1730, e 30 mil, exponenciados com a crise ocorrida com a Espanha, em 1735. O emprego de forças militares fora da metrópole era também reduzido, levando em linha de conta a presença pouco mais que simbólica no Reino de Angola e na costa oriental de África (Moçambique), os efetivos necessários para sustentar os domínios territoriais no Estado da Índia ou a presença no Brasil. Na verdade, era no território da América do Sul que a presença militar mais se tornava necessária, atendendo à vigilância, a Norte, da região do Maranhão, o controlo, a Sul, do esteio do rio da Prata, e a segurança necessária para permitir o escoamento aurífero em Minas Gerais e Mato Grosso. Contudo, no total, estamos a aduzir efetivos limitados, sendo que, no caso do Brasil, foram efetivos de cavalaria (dragões) os mais utilizados, atendendo ao carácter dissuasor da tropa montada face aos autóctones.

No território continental português, o mais importante era assegurar missões de vigiar e dissuadir nas penetrantes terrestres e nas marítimas, destacando-se, no primeiro caso, as unidades sediadas em Monção/Valença, Chaves/Bragança, Almeida, Castelo de Vide, Elvas/Olivença e, no segundo, no Algarve (Faro/Lagos), Setúbal, Cascais e Peniche, num total de 13 regimentos de infantaria (dos 20 existentes) e 4 dos 10 de cavalaria (Olivença, Chaves, Bragança e Almeida).

Se atentarmos que, durante o decurso das obras do Monumento de Mafra, a presença militar foi em número proporcional ao de trabalhadores empenhados, então podemos aferir que, durante parte do reinado de D. João V, foi em Mafra que se verificou a maior concentração de forças militares. Com especial incidência em 1729-1731, durante os acabamentos e sagração da Basílica, em que as estimativas apontam para perto de 50.000 homens e 7.000 soldados em 1729[39] e mais de 15.000 trabalhadores e perto de 6.000 militares em 1731[40].

Quais eram as funções primordiais atribuídas ao Exército? De vária ordem, que iam desde o recrutamento nas comarcas através dos corregedores e/ou capitães e encaminhamento sob escolta até ao local trabalho, segurança da obra (pessoas e materiais) e isolamento da área, que exigia um livre trânsito para os trauseuntes, transporte de materiais através de meios de carretagem, utilização de sapadores para dinamitarem a pedra e remoção de terra, transporte ou escolta de prisioneiros, detenções de prevaricadores, identificação de fugitivos. À semelhança dos trabalhadores, também os militares eram recrutados em todas regiões do Reino, sendo certo que muitos pertenciam aos regimentos da Estremadura (Peniche, Lisboa, Setúbal, Cascais) e do Alentejo (Castelo de Vide, Évora e Elvas).

Isto, claro, sem contar com o considerável séquito que acompanhava o monarca, para sua segurança e representatividade, sempre que se deslocava a Mafra, o que aconteceu frequentemente, quer de forma pré-anunciada ou mais velada. Neste caso, os efetivos de infantaria e de cavalaria pertenciam aos regimentos da Corte (do Coronel Conde do Prado e Regimento Velho da Guarnição da Corte).

À conta das obras, da leva de trabalhadores e da presença dos militares durante cerca de 30 anos, Mafra viu a sua demografia e o espaço habitacional crescerem exponencialmente. A designada ilha da Madeira, casas de madeira fronteiras ao Monumento e que custaram ao erário régio 150.000 cruzados[41], tornou-se um bairro de trabalhadores e de caserna, sendo que muitos dos que aí habitaram não só não regressaram às terras de origem como fizeram chegar até si as respetivas famílias. Uma das provas é a admissão de trabalhadores civis e de militares assistentes da real obra na Irmandade do Santíssimo Sacramento e na Ordem de S. Francisco de Mafra[42].

Na manhã de 17 de novembro de 1717, foi benzida e assentada, com pompa e circunstância, a primeira pedra do Real Edifício de Mafra. Já não se tratava de um conventinho para franciscanos, mas de um monumento régio tão imponente quanto a dinastia o merecesse e tão sacro quanto o Céu o exigisse.

Montados a cavalo, o rei e a corte acercaram-se do terreiro às oito e meia da manhã, seguidos por escolta militar. Para a improvisada basílica de madeira, em formato da projetada, avançou a procissão, enquadrada por duas colunas de cavalaria da real guarda alemã e os clarinetes: “à frente iam os 64 frades arrábidos, depois o clero local, os músicos, capelães, acólitos patriarcais, subdiáconos, beneficiados, cónegos, o patriarca, D. Tomás de Almeida, os protonotários patriarcais, o rei, a corte, o juiz e o corregedor e os vereadores”. E o povo, cerca de 3.000 pessoas, que acompanhava os acontecimentos à retaguarda. Feita a bênção, a procissão dirigiu-se para junto altar-mor, onde o patriarca depositou a pedra inaugural, a que se juntou a da inscrição e uma urna de mármore. Depois, “na cova colocou-se o geral de S. Bernardo, esmoler-mor, doze moedas de cada espécie de dinheiro corrente no reino: doze de ouro, de 4800 réis, doze meias moedas, doze quartinhos e assim do real e meio de cobre”. O séquito regressou, então, à Igreja, para assistir às restantes funções e à missa. Terminada a celebração inaugural, D. João V pegou numa pedra em mármore de palmo e meio e “foi depositá-la piedosamente junto da que fora benzida”, mostrando assim público apreço pela obra que nascia sob a sua égide”[43].

Portanto, depositada a primeira pedra, D. João V cravou a vontade de construção de um imponente monumento político-religioso em Mafra, apesar das opiniões da própria casa real, pouco interessadas em retiros no planalto saloio, a Ordem Franciscana, incomodada com a opulência imposta à sua humilde regra, as classes trabalhadoras, desenraizadas dos campos e dos lares para trabalharem o mármore e a madeira, os militares, sujeitos a um trânsito contínuo entre as suas unidades e Mafra, e a burguesia, que via o ouro brasílico ser aplicado na importação de artistas, mesteres e obras de arte. Genericamente, a construção obedeceu a três fases e a outras tantas contingências e constrangimentos: até 1730, altura em que foi sagrada a Basílica; entre esta data e o início da década de 1740, subjacente à ampliação do Convento; e entre 1742 e a morte do soberano, incidindo no acabamento do Palácio.

Os trabalhos decorreram com lentidão. Era necessário abrir pedreiras nas terras vizinhas e fazer o seu transporte para o Alto da Vela, cinzelar e transportar o mármore, desde Pero (Pedro) Pinheiro, aguardar pela fundição dos sinos e a vinda dos carrilhões e dos órgãos, comprar e transportar a madeira necessária, esperar a importação de pinturas e esculturas, grades e demais ornamentos. Além, claro, da necessidade de obter o concurso de arquitetos e de trabalhadores especializados em cada uma das áreas. Relativamente aos planos delineados inicialmente pelo arquiteto Carlos Gimac e os discípulos de Carlos Fontana, a obra sofreu diversas alterações, através dos arquitetos Fillipo Juvara, António Canevari e João Frederico Ludwig. De tal maneira que, em 1721, a Igreja, «peça» central do Monumento, existia ainda no formato de madeira, onde foi exposto o Santíssimo, em abril desse ano[44].

Em dezembro, D. João V decidiu ir a Mafra para ver o progresso das obras. O monarca não terá ficado agradado com o que viu e é a partir dessa altura que o número de trabalhadores cresce (13.000), 300 carretas passam a laborar diariamente e o dinheiro a disponibilizar aumenta (900 cruzados por ano)[45]. Em 1726, o Monumento ainda se resumia à Igreja, levantada até à nave, mas já tinha capela-mor e cruzeiro, estando em curso a nave e as capelas laterais. A presença de D. João V em Mafra e junto dos operários, artesãos e militares tornou-se recorrente, ficando alojado no palácio do marquês de Ponte de Lima, junto da Igreja de Santo André. Os anos 1729-1730 são de azáfama. O monarca decidiu que a Igreja devia estar pronta a ser sagrada a 22 de outubro de 1730 (um Domingo), data do seu 41.º aniversário. Assim, e conforme relata o duque do Cadaval, estribeiro-Mor do rei, nas suas memórias, “mandou el-Rei quantidades de oficiais para que com todo o vigor se continuasse a obra, e querendo que se adiantasse mais, mandou vir de todas as províncias dos Reino os regimentos de cavalaria e Infantaria e todos os oficiais de pedreiro, canteiros, carpinteiros e trabalhadores para os desentulhos; e se juntaram 25.000 homens e em 11 meses se viu crescer mais a obra do que até ali se tinha feito; de sorte que se pôs a Igreja no estado de se sagrar e o convento de habitarem nele 200 religiosos[46].

Mas a dificuldade em manter a mão-de-obra para a construção era notória, não só devido à data aprazada, às dificuldades em coordenar os trabalhadores e em obter os materiais, como pelas resistências manifestadas; em setembro de 1729, tinham fugido 2.000 trabalhadores, obrigando a novas levas e à consequente perda de tempo[47]. Em dezembro daquele ano, um gazeteiro noticiava: “«nesta obra se trabalha de noite e se tem reconduzido atados com cordas os oficiais que fogem»[48]. Em julho de 1729, Mafra acolhia 47.836 homens e, em 1730, estima-se em mais de 52.010 os alistados, dos quais 45.000 recebiam salário, 1300 bois e 7.000 militares[49].

Como palavra de rei é lei, na data decretada a Igreja/Basílica estava pronta a ser sagrada. Ainda o sol desse dia 22 de outubro não tinha rompido, quando quatro regimentos de infantaria e de cavalaria se concentravam no espaço sobranceiro à fachada do edifício. Depois, pelas 5 horas, chegaram as altas individualidades da casa real, religiosas e nobiliárquicas, nomeadamente, entre outras, o rei D. João V e a rainha D. Maria Ana, o príncipe D. José, os infantes D. Francisco e D. António, o patriarca de Lisboa, os cardeais D. Nuno da Cunha e Ataíde e D. João da Mota e Silva e os bispos de Leiria, Portalegre, Patara e Nanquim, os cónegos da patriarcal, os duques de Cadaval e de Lafões, marqueses, condes e viscondes, e a princesa do Brasil. Também marcaram presença inúmeros capelães e frades franciscanos dos diversos conventos do Reino. Mafra e Basílica viviam, então, momentos de religiosidade, de solenidade e de cor, que se prolongaram durante oito dias. Efetivamente, a sagração foi celebrada com um oitavário e segundo o Pontifical Romano. Em cada um dos oito dias, houve missa, sermão e bênção, cabendo o principal ato solene ao patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida. Durante as cerimónias da sagração, o primeiro dia começou às 7 horas e terminou, sem interrupções, às 3 horas do dia seguinte, tendo tocado os seis órgãos e repicado as dezenas de sinos das altas torres, anunciando a graciosidade do acontecimento às regiões mais distantes[50].

Como curiosidade, refira-se que algumas das alfaias religiosas utilizadas na cerimónia ainda hoje são aproveitadas para as solenidades na Basílica, destacando-se «a Cruz da Freguesia de Mafra», que se encontra, a par de outras, em posse da Irmandade do Santíssimo Sacramento[51].

Sagrada a Igreja, que faz o elogio por si e ocupa o centro e é o cartão de visita do Monumento, surgirá o convento nas fachadas laterais e na anterior, recolhendo os frades do “espectáculo mundano do poder[52].

Em janeiro de 1731, D. João V concedeu licença a parte dos operários e a alguns soldados para irem para suas casas até o Entrudo, ao mesmo tempo que foram destinados 50.000 cruzados das rendas do tabaco para sustentar as obras do Convento[53]. Uma pausa destinada a arrancar com a 2.ª fase do Monumento. Em maio desse ano, a obra contabilizava os seguintes trabalhadores: (i) 2997 canteiros; (ii) 1162 carpinteiros; (iii) 54 entalhadores; (iv) 2 torneiros; (v) 29 serradores; (vi) 2 seleiros; (vii) 4 tanoeiros; (viii) 6 vidraceiros; (ix) 2358 albíneos (semiespecializado em cantaria e carpintaria); (x) 1347 paisanos (jornaleiros, à ordem de apontadores e capatazes); (xi) 20 carpinteiros de seges; (xii) 20 apontadores de paisanos; (xiii) 344 mariolas (carregadores). Relativamente aos militares presentes, entre oficiais e soldados, eram 6.124 (5.510 de infantaria e 614 de cavalaria). Há ainda a registar uma enorme massa de trabalhadores que tinha adoecido (17.097) e morrido (1713), tendo D. João V compensado cada família com 3$00 reis e disponibilizado um total de 513$900 para funerais e cinco missas por alma[54].

As obras avançavam e, com elas, os constrangimentos. Os moradores queixavam-se da constante poeira, do barulho contínuo e das expropriações que não eram devidamente compensadas. Os trabalhadores mostravam insatisfação crescente face aos atrasos nos pagamentos, havendo registos de abandono da obra e greves de zelo. As levas para Mafra originavam resistências dos cidadãos e corrupção por parte dos capitães-mores. As malhas da justiça, por ordem do rei, apertaram e os criminosos e vadios foram encaminhados a ferro para Mafra, o mesmo acontecendo aos condenados da carreira da Índia, a quem foi gravado um M na testa. A seguinte transcrição da época dá uma ideia do estado de espírito vigente: “«em primeiro lugar foi errado o meio de constranger os homens para trabalhar nesta obra por ser voluntário e não útil, nem necessária ao reino. Com os nossos olhos vimos a tantos homens arrastados pelas estradas e pelas ruas com cadeias e cordas, conduzidos de beleguins como delinquentes e justiçados, reduzidos ao estado da escravidão desmerecida. Choram a perda da saúde em um contínuo giro de trabalhos, expostos aos rigores dos frios sem cama em o deserto e no intenso das calmas sem sombras, nem abrigo, e à miséria da fome sem pagamento. Muitos tinham perdido suas vidas sem assistência dos parentes, e também suas almas sem receberem os sacramentos à hora da morte»[55]. Os próprios frades mostravam insatisfação pelo contexto, privados de silêncio e de sossego. Até a família real mostrava o seu desagrado, nada interessada em acompanhar o monarca na sua paixão pelo Monumento de Mafra, ficando-se por Lisboa; à semelhança, aliás, da maioria da corte.

Mas o rei não se demoveu. Em 1733, assinou-se a escritura de Mafra, ficando acordado por chancela real o pagamento devido aos mestres, pedreiros, carpinteiros e demais artesãos e operários, num total de 600.000 cruzados anuais, que não incluía os materiais[56]. Em 22 de outubro desse mesmo ano, D. João V, num gesto magnânimo, celebrou o seu 44.º aniversário com os frades do convento, aproveitando para inaugurar o respetivo refeitório. Inclusive, foi o próprio rei que serviu a ceia aos frades, auxiliado pelo príncipe D. José, pelo infante D. António e pelos camaristas (2 marqueses e 4 condes)[57].

A ligação religiosa de D. João V a Mafra verifica-se através da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Santo André de Mafra[58] e ao estabelecimento da Ordem Terceira de Penitência de S. Francisco, sob a sua real protecção, em 17 de Setembro de 1736, que iniciou actividades em 7 de fevereiro de 1740. Atividades de que se destaca a «Procissão da Penitência da Ordem Terceira de São Francisco», que saía (como ainda hoje acontece) à vila durante as celebrações do Tempo da Quaresma. Uma procissão onde, além dos fiéis que assistiam e acompanhavam, «desfilavam» os religiosos, dignitários do reino, senhores de Mafra e os militares, transportando dez andores[59] trabalhados com mão de mestre e convenientemente decorados, os «manequins» ricamente vestidos e as alfaias e objetos com o brilhantismo sacro exigido. Na verdade, D. João V, que se empenhou pessoalmente nos trâmites da procissão, desejou magnificência ao cortejo religiosos mafrense e exigiu especial cuidado com a imagem de São Luís e da Camisa que vestia, uma oferta protocolar do congénere Luís XV de França[60].

Entretanto os trabalhos do Palácio avançavam, até que, em maio de 1742, D. João V foi acometido por “um estupor que o privou dos sentidos, e ficou leso da parte esquerda, e com a boca à banda” (trombose). Como o Monumento de Mafra ainda não estava concluído, nomeadamente o Palácio, o monarca resolveu apressar os trabalhos, arrematando o que faltava por 625.000 cruzados, a finalizar num prazo de oito anos[61]. Curiosamente, o tempo de vida que D. João V tinha pela frente! Temia que as suas ausências de Mafra, ditadas pela convalescença, entravassem a «jóia da coroa». Preocupação ampliada pela constatação de que o príncipe D. José preferia caçar na real tapada de Alcântara do que na de Mafra.

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”; frase da «Mensagem» de Fernando Pessoa que bem se pode aplicar ao Monumento de Mafra enquanto obra master do reinado de D. João V e do Portugal de setecentos.

 

 

Fecho

A edificação do Monumento de Mafra insere-se na esfera do prestígio régio de D. João V, enquanto manifestação de poder absoluto. Um Monumento que irrompe no seguimento da vitória na Batalha Naval do Cabo Matapão. A oportunidade politicamente aproveitada para materialização de uma diplomacia religiosa, que granjeou ao monarca uma dignidade perante Roma em equidade com outros arautos estaduais do catolicismo europeu. Quanto ao Exército, espelho da Nação, foi o móbil da segurança de homens e bens e de limitação do espaço de construção, que além do apoio logístico e técnico o distinguiu com os méritos do duplo uso.

 

_________________

*  Tema constante da Obra «300 Anos. Presença Militar em Mafra», Edição da Escola das Armas/Exército Português, lançado a 17 de Junho de 2017, na Sala do Capítulo do Convento de Mafra.

[1]   Manuel J. Gandra, A Vila de Mafra de Lés a Lés. História e Evolução Urbana, Mafra- Rio de Janeiro, Instituto Mukharajj Brasilian & Cesdies, 2014.

[2]    Manuel J. Gandra, ob cit.

[3]    Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. V, Editorial Verbo, 1982.

[4]    D. Jaime de Mello, 3.º duque do Cadaval, Memórias da Fundação do Real Convento de N. S. e S. António de Mafra, 31 de Dezembro de 1730.

[5]    Fr. João de S. Joseph do Prado, Monumento Sacro da Fabrica e Solemnissima Sagração da Santa Basilica do Real Convento de Mafra, Lisboa, Officina de Miguel Rodrigues, MDCCLI.

[6]    Fr. Cláudio da Conceição, Gabinete Histórico, Vol. VIII, Lisboa, Na Impressão Régia, 1820.

[7]    António Caetano de Sousa, História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Lisboa, 1741.

[8]    Ayres de Carvalho, D. João V e a Arte do Seu Tempo, I Vol., Edição do Autor.

[9]    Ayres de Carvalho, ob. cit.

[10]    Manuel J. Gandra, Palácio Nacional de Mafra. Um Guia, Mafra-Rio de Janeiro, Instituto Mukharajj Brasilian & Cesdies, 2016.

[11]    Paulo Pereira, História da Arte Portuguesa, Vol. III, Círculo de Leitores, 1995.

[12]    Jean Touchard, História das Ideias Políticas, do Renascimento ao Iluminismo, vol. II, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1991.

[13]    Carlos Selvagem, Portugal Militar, Lisboa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1991.

[14]    Pedro Soares Martínez, História Diplomática de Portugal, Lisboa, Editorial Verbo, 1992.

[15]    Luís Soares de Oliveira, História Diplomática. O Período Europeu 1580-1917, Lisboa, Pedro Ferreira, 1994.

[16]    Carlos Selvagem, ob. cit.

[17]    Ayres de Carvalho, ob. cit.

[18]    António G. Matoso, Compêndio de História de Portugal, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1943.

[19]    António Matoso, ob. cit.

[20]    Joaquim Veríssimo Serrão, o. Cit.

[21]    Michael Howard, A Guerra na História da Europa, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1997.

[22]    O estado-maior tinha um tenente-coronel, um sargento-mor, dois ajudantes, um capelão, um cirurgião, um tambor-mor e um pífaro; na cavalaria existia um tenente-coronel e dez capitães.

[23]    António José Balula Cid, Unidades de Infantaria. Sua Evolução até à Actualidade, Lisboa, MCMLVI; Carlos Selvagem, ob. cit.; Coronel Alberto Ribeiro Soares (coord), Os Generais do Exército Português, Vol. I, Lisboa, Biblioteca do Exército, 2003; Fernando Pereira Marques, Exército, mudança e modernização na primeira metade do século XX, Lisboa, Edições Cosmos/IDN, 1999; Luís Franco Nogueira, Localização dos Corpos do Exército de Portugal Continental e Insular 1640-1994, Lisboa, DDHM, 1994; General Ferreira Martins, História do Exército Português, Lisboa, Editorial Inquérito, 1945; Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira (Dir), Nova História Militar de Portugal, Vol. 5, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2003.

[24]    Ayres de Carvalho, ob. cit.

[25]    Carlos selvagem, ob. cit.; Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, Nova História Militar de Portugal, vol. II, ob. cit.; José António Rodrigues Pereira, Grandes Batalhas Navais Portuguesas, Lisboa, Esfera dos Livros, 2009.

[26]    António Silva Ribeiro, ob. cit.

[27]    Damião Peres (Dir), História de Portugal, Vol. 6, Barcelos, Portucalense Editora, 1934.

[28]    Joaquim Veríssimo Serrão, ob. cit.

[29]    José Calvet de Magalhães, Breve História Diplomática de Portugal, Publicações Europa-América, 1990.

[30]    Pedro Soarez Martínez, ob. cit.

[31]    O arcebispado de Lisboa foi dividido em duas dioceses: Lisboa oriental, com a antiga Sé, e Lisboa ocidental, com a igreja patriarcal. Por fim, em 1740, anulou a divisão de Lisboa em duas sés, ficando a patriarcal centrada na Sé de Lisboa Oriental.

[32]    Carlos Moreira Azevedo (Dir), Dicionário de História Religiosa de Portugal, 6.º Vol, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2001.

[33]    Maria Beatriz Nizza da Silva, D. João V, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2006.

[34]    Ayres de Carvalho, ob. cit.

[35]    Obras de referência sobre as acções navais de 1716 e 1717: Eduardo Brazão, Relações Externas de Portugal. Reinado de D. João V, Porto, Livraria Civilização Editora, 1938; João Vieira Borges, Intervenções Militares Portuguesas na Europa do Séc. XVIII. Uma Análise Estratégica, Lisboa, Atena/Instituto de Altos Estudos Militares, 2000; José António Rodrigues Pereira, ob. cit.; Saturnino Monteiro, Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, Vol. VII, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994.

[36]    Eduardo Brazão, ob. cit.

[37]    Carlos Moreira Azevedo, ob. cit.

[38]    Paulo Pereira, ob. cit.

[39]    José Ferreira de Assunção Guilherme, À Sombra do Convento, Mafra, Rolo e Filhos, 1957.

[40]    Fr. João de S. Joseph do Prado, ob. cit.

[41]    Maria Beatriz Nizza da Silva, ob. cit.

[42]    Arquivo da Real e Venerável Irmandade do Santíssimo Sacramento da Paróquia de Santo André de Mafra e fundo relativo à Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco de Mafra.

[43]    José Ferreira de Assunção Guilherme, ob. cit.

[44]    Ayres de Carvalho, ob. cit.

[45]    Joaquim Veríssimo Serrão, ob. cit.

[46]    Ayres de Carvalho, ob. cit.

[47]    Os fugitivos que fossem apanhados teriam de trabalhar três meses sem receber pagamento e, se fossem reincidentes, esperava-os as galés e os açoites.

[48]    Maria Beatriz Nizza da Silva, ob. cit.

[49]    Guilherme José Ferreira de Assunção, ob. cit; Manuel J. Gandra, Mafra de Lés a Lés, ob. cit.

[50]    Fr. Joaõ de S. Joseph do Prado, ob. cit.; Guilherme José Ferreira de Assunção, ob. cit.

[51]    AA.VV, A Camisa da Sagração de Luís XV e a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Mafra, Mafra, Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Santo André da Vila de Mafra, 2016.

[52]    Paulo Pereira, ob. cit.

[53]    Maria Beatriz Nizza da Silva, ob. cit.

[54]    Fr. Joaõ de S. Joseph do Prado, ob. cit.

[55]    António Filipe Pimentel, Arquitectura e Poder. O Real Edifício de Mafra, Livros Horizonte, 2002.

[56]    Maria Beatriz Nizza da Silva, ob. cit.

[57]    Guilherme José Ferreira de Assunção, ob. cit

[58]    A primeira referência documental da existência da irmandade data de 14 de março de 1597; a assinatura de Compromisso é de 5 de julho de 1725, certificado pelo Patriarca D. Tomás de Almeida, a 19 de julho do mesmo ano.

[59]    Atrás da Cruz da Penitência, a procissão tem os seguintes andores: (i) «Salvador do Mundo» (Cristo e São Francisco; (ii) «o Papa entrega a bula de criação da Ordem a São Francisco»; (iii) «Os Bem Casados»; (iv) «Santa Maria de Cortona»; (v) «São Roque»; (vi) Santa Rosa de Viterbo; (vii) «Santo Ivo»; «São Luís, Rei de França»; (ix) «Santa Isabel, Padroeira da ordem Terceira de Mafra»; «Glorificação de São Francisco».

[60]    AA.VV, A Camisa da Sagração de Luís XV e a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Mafra, ob. cit.

[61]    Maria Beatriz Nizza da Silva, ob. cit.

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Abílio Pires Lousada

Militar Historiador. Sócio Efetivo da Revista Militar.

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