Nº 2602 - Novembro de 2018
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Política Externa Portuguesa no Contexto Europeu
Embaixador
Pedro Costa Pereira

A Europa é hoje uma prioridade essencial da política externa portuguesa. Para melhor a entender é importante contextualizá-la no conjunto das prioridades da ação externa de Portugal. Para além da Europa, espaço natural onde Portugal se encontra, as outras prioridades da ação externa portuguesa são as seguintes:

– O Atlântico, não tanto o Oceano Atlântico em si, mas dimensão de segurança que Portugal aí sempre encontrou, construindo e participando em alianças e desenvolvendo relações privilegiadas com parceiros estratégicos. A nossa situação geopolítica e a nossa História levaram a que a política externa portuguesa se construísse no equilíbrio possível a cada momento, entre a pressão continental e as possibilidades que o Atlântico oferecia;

– O Mundo da lusofonia e as Comunidades portuguesas;

– A internacionalização da economia, prioridade assumida como tal recentemente, para isso contribuindo o peso que as exportações têm hoje no PIB do nosso país;

– e, finalmente, o multilateralismo, hoje considerado como uma prioridade em si, em todas as instâncias internacionais, desde o quadro europeu, passando por organizações como a OSCE ou o Conselho da Europa, até, e sobretudo, no quadro da ONU. A eleição do atual SG das NU[1] e o empenho que a nossa ação externa aí colocou traduz eloquentemente a importância que damos ao multilateralismo.

Estas várias dimensões da nossa política externa estão profundamente ligadas umas às outras: a política externa portuguesa no quadro europeu tem uma profunda dimensão multilateral, preocupa-se (e muito) com a vertente da segurança e defesa bem como com a internacionalização da nossa economia; a sua ação tem em conta e é profundamente condicionada pela situação das nossas Comunidades, como naturalmente sucede quando definimos a nossa posição no quadro da União Europeia sobre a Venezuela.

Com o 25 de Abril, definitivamente terminado o ciclo imperial, a Europa voltou a ser o espaço natural onde Portugal se insere e tornou-se num instrumento fundamental para a nossa política externa. Os valores que regem a nossa política externa, a exemplo da defesa dos Direitos Humanos, a Democracia e o Estado de Direito, a boa Governação, são os consagrados no Tratado de Lisboa. Agimos no quadro europeu, promovemos o quadro europeu e usamos o quadro europeu.

Desde a sua adesão às então Comunidades Europeias, em 1986, Portugal tem-se empenhado consistentemente na construção e no aprofundamento do projeto europeu. O país beneficiou extraordinariamente com a sua participação neste projeto. Consolidou a sua democracia, modernizou-se, desenvolveu-se e, sobretudo, reinventou-se em torno de um projeto consensual para a generalidade da sociedade portuguesa.

Esta inserção de Portugal na Europa trouxe consigo implicações relevantes a nível da definição e desenvolvimento da política externa portuguesa. Por um lado, permite-nos recorrer ao “músculo” europeu para a prossecução de objetivos que nos interessam mais particularmente. Por outro lado, fez e faz nossas as prioridades da política externa europeia. A fronteira do outro passou de algum modo a ser também a nossa fronteira, o vizinho do parceiro passou a ser também o nosso vizinho. Portugal ganhou conhecimento e experiência e passou a ter interesses em áreas geográficas e temáticas que nos eram menos próximas. Surgiram novas e importantes oportunidades. Abriram-se novas perspetivas políticas, económicas e culturais de internacionalização de Portugal.

A Europa trouxe-nos também novos desafios e crises. Para dar apenas alguns exemplos, a Europa encontra-se hoje a braços com a resolução da crise migratória, longe de estar solucionada. Num mundo crescentemente marcado por incertezas e por zonas cinzentas, foi relançada a construção de um pilar europeu de segurança e defesa, em articulação com a NATO, que se pretende seja verdadeiramente capaz de projetar segurança e de reforçar a resiliência europeia. Persiste o combate contra o terrorismo, que assume hoje proporções nunca vistas. Outros desafios que poderíamos mencionar, de impacto ainda mais global: as alterações climáticas, a definição de uma ação internacional suscetível de promover uma verdadeira sustentabilidade dos oceanos, a não proliferação e o desarmamento.

Todos estes desafios afetam a Europa como um todo e são hoje plenamente assumidos pela política externa portuguesa numa dupla perspetiva. Por um lado, com a nossa perfeita consciência de que os desafios transnacionais, que a todos atingem, apenas encontram solução no contexto europeu e não no mero âmbito nacional. Nenhum Estado-Membro da União Europeia está em condições de enfrentar sozinho qualquer um destes desafios. A União Europeia é hoje, regra geral, o meio de resposta mais adequado para fazer face aos desafios de natureza transnacional que obrigam à procura de soluções conjuntas. Mesmo nos casos em que a procura da solução transcende o âmbito europeu, exigindo soluções verdadeiramente multilaterais desenhadas à escala global, Portugalque faz do multilateralismo uma dimensão essencial e identificadora da sua política externatenderá sempre para que a União Europeia seja um ator privilegiado no contexto multilateral.

Portugal está também plenamente consciente das obrigações que advêm da pertença ao projeto europeu. Temos interesses nacionais que nos são específicos, mas temos também a perfeita consciência de que se queremos que o projeto europeu singre, e Portugal quer, uma cooperação leal entre todos é indispensável. Portugal assume o sucesso do projeto europeu como um interesse em si. Por isso, adota, no seio da União, uma postura impecavelmente positiva e construtiva, sempre que esteja em jogo a procura de soluções que privilegiem a prossecução desse mesmo projeto europeu. Por isso mesmo, Portugal dispõe-se a aceitar soluções que no curto prazo não são forçosamente as melhores de um ponto de vista estritamente nacional, desde que as mesmas possam ser objeto de um consenso ao nível europeu. Faz isto com o objetivo principal de assegurar a unidade e de permitir a consolidação de decisões verdadeiramente europeias. Assim, temos agido, por exemplo, no quadro do problema migratório. É por isso igualmente que Portugal, no âmbito PESC, sempre se envolveu empenhadamente na procura de soluções para desafios que, numa primeira leitura, não se colocariam tão imediatamente ao país. Por isso, integrou, por vezes com custos elevados, a grande maioria das missões civis e militares no contexto União Europeia e também da NATO, em articulação com a União Europeia.

Portugal é um país com uma assinalável multiplicidade de interesses e prioridades de política externa. Fruto de uma presença histórica global, de comunidades ativas e numerosas e da inserção em múltiplos espaços de pertença, como em África e no Atlântico, só para citar dois exemplos, desenvolvemos uma proximidade, que muito valorizamos, com várias áreas geográficas e temáticas.

Esta nossa proximidade e esta relação especial que temos com vários parceiros à escala global é uma mais-valia que pomos ao serviço da União Europeia. Para dar apenas alguns exemplos, no ano 2000, na segunda Presidência Portuguesa da União Europeia, promovemos a primeira Cimeira UE-África a nível de Chefes de Estado e de Governo (no Cairo) e a primeira Cimeira entre a UE e a Índia. Em 2007, na terceira Presidência Portuguesa da União Europeia, acolhemos a primeira Cimeira UE-Brasil. E já agora convém não nos esquecermos que foi na primeira Presidência Portuguesa das Comunidades Europeias, em 1992, que foram identificadas pela primeira vez as prioridades da futura Política Europeia de Segurança Comum, a PESC, herdeira da até então chamada Cooperação Política Europeia. O texto com essas prioridades, hoje pouco lembrado, integra boa parte das conclusões do Conselho Europeu de Lisboa. Eu lembro-me bem, porque redigi a sua base na minha qualidade de então muito jovem funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Ao longo da nossa já sólida participação no quadro europeu, advogámos sistematicamente a valorização da dimensão atlântica da Europa, o aprofundamento das relações com África, a atenção a ser dada à nossa vizinhança a sul e, neste quadro e cada vez mais, ao Magrebe e ao Sahel. Pugnámos pelo desenvolvimento de uma estratégia (e consequente plano de ação) para a segurança marítima no Golfo da Guiné. E agimos também muitas vezes concertadamente também no seio UE em prol da independência de Timor-Leste. A intervenção da UE foi fundamental para a independência de Timor-Leste.

Por outro lado, os espaços que trazemos para este relacionamento mais próximo com a União Europeia também ganham com o empenho português. Veja-se o caso da Parceria Especial da União Europeia com Cabo Verde ou o relacionamento desenvolvido pela União Europeia com Angola. Com o mesmo espírito, estamos neste momento a procurar promover na União Europeia a formação de um quadro estruturado de relacionamento entre os 28 e os países do Magrebe.

A dicotomia de como nos relacionamos com o resto do mundo através da Europa e como a Europa se relaciona com o resto do mundo por causa de Portugal não é uma realidade estanque ou abstrata. Obriga a ajustamentos, nossos e da União Europeia. Portugal tem contribuído intensamente para enriquecer a política externa da União Europeia.

A defesa europeia constitui hoje uma vertente muito importante da nossa ação externa. Com o completamento da UEM, apresenta-se hoje como uma das dimensões mais promissoras para o reforço do projeto europeu. Têm sido feitos avanços absolutamente notáveis, tanto do ponto de vista da construção concetual da Europa da Defesa, como na prática. Trata-se de uma dimensão que tem tido ajustamentos inesperados. O projeto europeu será em breve abandonado pelo Reino Unido, o que provocará o enfraquecimento da sensibilidade mais atlantista no seio da União Europeia. De facto, o Reino Unido, tal como Portugal, tem sido sempre, no seio da UE, um parceiro particularmente ativo em prol do reforço do pilar europeu de defesa, numa lógica de complementaridade e de não duplicação com a NATO. O nosso atlantismo não significa de modo nenhum que queiramos desvalorizar a importância da defesa europeia reduzindo-a um apêndice da NATO. A defesa europeia não deve duplicar a NATO, mas é muito mais do que um mero complemento. É um instrumento poderoso que se está cada vez mais a afirmar com uma verdadeira capacidade de projetar segurança. A recente decisão de avançar para a constituição de uma Cooperação Estruturada Permanente constituiu um desenvolvimento importante neste contexto e permitiu-nos clarificar o nosso entendimento sobre o que deve ser a dimensão de segurança e defesa no quadro europeu. Portugal não pretende que se evolua para um exército europeu nem que se promova uma especialização militar de cada um dos Estados-Membros da União Europeia. Queremos, sim, uma maior convergência ao nível da interoperabilidade militar e ao nível industrial e tecnológico. Ponto importante, a Europa da Defesa pode constituir uma janela de oportunidades para a internacionalização da nossa economia, se soubermos aproveitar o seu potencial.

Por outro lado, da recente mudança de administração norte-americana decorre uma alteração substancial no relacionamento dos EUA com a Europa. Isto é hoje visível em particular no quadro da NATO, com as acrescidas exigências norte-americanas de empenhamento europeu, sobretudo no que se refere às ameaças a leste e sudeste. Perante a cada vez maior assertividade da Rússia, mesmo quando a NATO atua noutras áreas, como no espaço atlântico, fá-lo muito frequentemente com o objetivo último de contrariar e fazer face às ameaças a leste. A lógica de uma projeção de segurança e defesa a todos os azimutes, a 360º no quadro da NATO, tem esta limitação. E aqui surge uma verdadeira questão para Portugal, que decorre da menor apetência da NATO para agir no flanco Sul da União Europeia, onde se encontra Portugal. Por estas razões, justifica-se que Portugal reforce a articulação dos vários instrumentos existentes de segurança e defesa, sobretudo a NATO e a UE, num espírito de complementaridade e não duplicação, no respeito das especificidades de cada um. Se necessário, justifica-se também que Portugal promova a criação de novos meios que permitam a projeção de uma verdadeira estabilidade e a garantia de defesa num círculo que abarque verdadeiramente 360º, ou seja, também a sul do Mediterrâneo.

Ambas, a NATO e a UE, devem evoluir de forma a poderem reforçar-se mutuamente. Para Portugal, é importante que sejam instrumentos disponíveis para, consoante as circunstâncias e sem perderem de vista as suas principais prioridades, que são também nossas, contribuírem para fazer face àquelas que são as nossas principais prioridades a Sul.

No nosso entendimento, poderá haver toda a vantagem em promover iniciativas de articulação entre as duas instâncias, NATO e UE, na prossecução de objetivos que nos interessem mais particularmente, a nós e a outros parceiros do Sul da UE. A nova Iniciativa Europeia de Intervenção, que procura justamente articular a ação entre os seus países subscritores em torno de objetivos que lhes são comuns, fazendo uso os seus respetivos meios já existentes no quadro da NATO, da UE e noutras instâncias, como nas NU, e com o apoio destas organizações, é uma via promissora.

Em síntese, a prossecução da política externa portuguesa no quadro europeu tem sido particularmente bem-sucedida. O contexto europeu dá-nos uma muitíssima maior projeção na defesa de interesses que são especificamente nossos – vd a independência de Timor Leste e as relações com o Norte de Africa – e permite também uma participação ativa do nosso país em áreas da agenda internacional que de outra forma não poderiam, de todo, ser influenciadas pela nossa sensibilidade.

A nossa ação externa pela via do contexto europeu constitui um valiosíssimo mecanismo para a nossa ação global no quadro multilateral. Lembremo-nos apenas que não há país ou organização internacional de que Portugal seja membro onde não se promova em permanência uma coordenação entre os parceiros da União Europeia. Para Portugal, cada uma destas instâncias apresenta-se como uma oportunidade para introduzir as nossas próprias sensibilidades.

Concluo, dizendo que a Política Externa Portuguesa no quadro europeu será tanto mais bem-sucedida quanto mais participarmos, estivermos e agirmos em tempo útil e de uma forma construtiva, assumindo como um interesse maior a preservação, e sempre que possível o reforço do projeto europeu.

 


[1]    E, mais recentemente, já depois desta intervenção, também a eleição do Dr. António Vitorino para o importante lugar de Diretor-Geral da Organização Internacional para as Migrações.

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Embaixador

Pedro Costa Pereira

Embaixador, agosto 2015; Diretor-Geral da Política Externa, 1 julho 2017.

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