No início da década de noventa no século passado, com o final do denominado período da Guerra-Fria e mudanças no paradigma de segurança e de defesa que o regularam, Estados, Organizações Internacionais e mesmo Organizações Não Governamentais, aperceberam-se de que nova era iria surgir na conflitologia no globo, onde novas ameaças e riscos para a segurança, a vários níveis e formas, iriam exigir diferentes respostas.
A comunidade internacional apercebeu-se das novas fases que iriam caracterizar esses conflitos e o papel da força militar organizada em cada uma dessas fases: a prevenção, a resolução e até a consolidação (para alguns reconstrução). As Nações Unidas, com o seu Conselho de Segurança liberto do estigma do veto que tinha sido ditado durante cerca de quarenta anos pela bipolarização, começou a ter papel mais activo da regulação da ordem internacional, quer no campo conceptual quer nas missões deslocadas para o terreno no cumprimento de Resoluções que justificavam e legalizavam as suas intervenções. Foi o tempo de missões de verificação para processos negociados de paz e desarmamento mútuo, de processos eleitorais acordados e até de missões humanitárias que estavam esquecidas. Subitamente as missões de paz, nas várias modalidades concebidas, desde o peacekeeping ao nation building, tornaram-se moda. Dirigentes e opiniões públicas consideraram que o preço a pagar para manter a paz era razoável e que os riscos eram suportáveis. Os militares refizeram a sua doutrina, organização e instrução para se adaptarem a uma utilização da força militar naquilo que alguma terminologia designou por «operações que não a guerra».
A situação alterou-se com o conflito que se desenvolveu quando da fragmentação da ex-Jugoslávia. A Missão das Nações Unidas pretensamente encarregada de manter a paz não só falhou como até foi humilhada. A comunidade internacional, nomeadamente a União Europeia, reconheceu que para gerir o conflito era necessário uma força com um mandato claro para forçar a paz (Capítulo VII da Carta das Nações Unidas), com Regras de Empenhamento bem definidas, com o apoio das Nações que forneciam a força dispostas, política e economicamente a suportar os custos e com opiniões públicas conscientes dos riscos. Quando as Nações Unidas, em permanente ligação com a OTAN, a quem tinha solicitado apoio para o desempenho da missão, aceitaram essas condições, as Forças Conjuntas e Integradas da Aliança avançaram para o terreno. Tive oportunidade, como Representante Permanente de Portugal no Comité Militar da OTAN, de testemunhar as inúmeras discussões havidas, e a permanente ligação com as capitais, para se obter um consenso que permitisse dar o conselho militar mais adequado e avaliado à decisão política que era necessário tomar.
Os diversos empenhamentos e experiências das Nações Unidas em missões de apoio à paz têm recorrido, com frequência, às Organizações Regionais de Segurança para desempenharem aquelas missões. A OTAN, a União Africana (UA) e, mais recentemente, a União Europeia têm assumido a execução dessas missões.
Quando as missões crescem e os meios mingam regressa-se ao velho ditado de que “em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão”. E tem acontecido, e irá acontecer, que meios adicionais para o Afeganistão, para o Líbano, para a Somália ou para o Congo, para mencionar só alguns exemplos, irão faltar. As nações que enveredaram pela profissionalização das suas Forças Armadas pensaram que os dividendos da paz se traduziriam em reduções e eliminação do incómodo de cumprir o Serviço Militar. No Departamento de Operações de Paz das Nações Unidas criou-se a mentalidade de que o apoio da força militar às operações de paz se traduziria numa espécie de tarefa como “ levar crianças à escola”. As realidades são diferentes e, sem querermos fazer futurologia, irão ser muito piores. Dirigentes políticos e opiniões públicas têm de assumir a responsabilidade de pensar e decidir o preço que terão de pagar para a sua segurança.
As autoridades militares portuguesas, temos de reconhecê-lo, desde o início da passada década dos anos noventa, se aperceberam da mudança do panorama estratégico mundial e do novo papel que as Forças Armadas poderiam assumir nesse contexto. Falhou-se a participação no denominado primeiro conflito no Golfo, apesar das propostas feitas criteriosamente pelas Forças Armadas, por falta de decisão política. O prejuízo sofrido por Portugal, a nível da comunidade euro-atlântica, foi grave, mas nunca explicado à opinião pública nacional.
Talvez por se aprender com erros cometidos, Portugal começou a participar, dentro das suas possibilidades, em missões de apoio a operações de paz, com diversidade e flexibilidade, com amigos, parceiros e aliados, no âmbito das Nações Unidas, OTAN e, mais recentemente, União Europeia. Começando com o Batalhão de Transmissões Nº 4, em Moçambique, em operações implementadas pelas Nações Unidas, passou-se depois para outras missões com a Companhia de Transmissões Nº 5, Companhia Logística Nº 6 e Hospital Militar Nº 7, em Angola. Em Janeiro de 1996, na ex-Jugoslávia e num Teatro de Operações dantesco, o 2º Batalhão Pára-quedista e Destacamento de Apoio (1 000 homens e mulheres), ocuparam o Sector de Goradze. Unidades da Marinha e Força Aérea participaram no isolamento estratégico de uma área de operações cuja instabilidade levantava sérias preocupações de segurança na Europa. O prestígio adquirido por estas Forças Nacionais Destacadas foi enorme. As referências elogiosas que lhes eram feitas por Altos Representantes das Nações Unidas, por dirigentes políticos e por comandos militares a que estavam subordinadas eram uma constante. Portugal, pelas suas Forças Armadas, adquiria prestígio internacional. Pequenos contingentes dessas Forças Armadas, e a sua postura perante situações adversas e populações inseguras, tinham contribuído para esse prestígio mais do que anos de esforços e recursos nacionais dispendidos sem objectivo e em esforço duvidoso.
A revisão constitucional de 1997 aditou ao Artigo 275º da Lei Fundamental o Nº 5 que expressa “ Incumbe às Forças Armadas, nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte”. As Forças Armadas têm continuado a cumprir missões neste âmbito, em áreas geográficas, com finalidades e tipos de unidades muito diversificadas. Com prestígio e sucesso.
Com alguma surpresa assiste-se ao debate que se estabelece sempre que se desenvolve o processo de decisão de destacar forças nacionais para missões no exterior. Naturalmente que esse processo de decisão é complicado, quer pelo processo em si quer pelas interpretações que se levantam no sistema constitucional português.
No processo de decisão sobre a missão, o tipo de unidade a constituir, os efectivos a envolver, as regras de empenhamento a aceitar, os riscos a assumir, a estrutura de comando a estabelecer e a área de responsabilidade a aceitar, entre outros aspectos, o conselho militar dado pela autoridade militar competente (CEMGFA), deve constituir base essencial para a decisão política. Será no diálogo político militar entre os decisores da Política e do Comando que se encontrarão as possíveis modalidades de acção que melhor sirvam o interesse nacional.
No sistema constitucional nacional, além das indefinições que se levantam actualmente na caracterização de paz e guerra, ignorando a situação de crise e os mecanismos de decisão que devem envolver, as competências repartidas entre Assembleia da República, Governo e Conselho Superior de Defesa Nacional nesta matéria também não facilitam o processo.
Para complicar o que já não é fácil ainda temos o estatuto do Corpo de Tropas da Guarda Nacional Republicana, que, para a decisão política, umas vezes é força militar e outras é força policial.
Seria bom que algumas destas questões fossem aclaradas, quando existe liberdade de acção para serem aclaradas e não esperar por situações extremas para depois se tentarem justificar situações que se conheciam mas não foram esclarecidas. Vivemos tempos diferentes para a aplicação da força militar e para a interpretação do que é a condição militar. Mas há princípios e valores que não podem ser confundidos. Como sejam a utilização da simbologia da Instituição Militar por forças que actuam com estatuto policial ou o reconhecimento do mérito dos seus serviços, sem dúvida distintos, com graus da Medalha Militar. A César, o que é de César.
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* Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Direcção.