Duas vezes, por escrito, apresentei o meu parecer sobre as definições de Estratégia que o General Abel Cabral Couto nos transmitiu – uma, em 1968[1], e outra, 30 anos mais tarde, em 1998[2]. Nesse parecer, manifestei a minha discordância sobre a evolução que se verificou. A primeira vez, fi-lo no livro “Da Estratégia”, publicado em 2010, quando nele analisei e desenvolvi o conceito desta área científica; a segunda, no livro em que, com muita justiça, se homenageou o distinto militar e professor, por se considerar que o seu livro e os seus escritos não nos têm dado a conhecer apenas o seu pensamento, mas também por nos obrigarem a reflectir aprofundadamente sobre a Estratégia. Dito isto, perguntar-se-á porque volto agora a este assunto, já que, concordando-se ou não com as opiniões expressas, aquele debate académico, ainda que não definitivo, já está razoavelmente tratado. Volto ao assunto, por me parecer muito actual e merecer uma reflexão.
Recordemos então aquelas duas definições de Estratégia:
– a de 1968: é a ciência e arte de desenvolver e utilizar as forças morais e materiais de uma unidade política ou coligação, a fim de se atingirem os objectivos políticos que suscitam ou podem suscitar a hostilidade de uma outra unidade política;
– a de 1998: é a ciência e a arte de, à luz dos fins de uma organização, estabelecer e hierarquizar objectivos e gerar, estruturar e utilizar recursos tangíveis e intangíveis, a fim de se atingirem aqueles objectivos num ambiente admitido como conflitual ou competitivo (ambiente agónico).
Notemos então a evolução que se verifica entre estas duas definições.
A primeira, é a de que houve um deslocamento da unidade política para a organização. Sendo óbvio que a organização está presente na unidade política (ao ponto de um dos elementos da tríade de Jellinek que define o Estado é ele estar politicamente organizado) este tem preocupações e obrigações de bem-estar e segurança dos seus cidadãos de nível muito superior às que podem suceder numa outra organização. Além disso, ainda que uma organização, com vista à sua eficiência e eficácia, possa usar métodos de raciocínio e análise semelhantes aos praticados pelas unidades políticas, isto não permite dizer que elas fazem aquilo que a estas compete – a Política e a Estratégia. Elas podem é ter vantagem em usar práticas e métodos que a unidade política utiliza, como é o da aplicação do método estratégico. Do mesmo modo que, para comprar uma casa, se pode utilizar algo semelhante ao método de raciocínio táctico – clarificar o que se pretende; pensar nas possíveis soluções e nas vantagens e inconvenientes de cada uma delas; eleger os factores decisivos, ponderá-los e decidir – isto não significa que se esteja a fazer tática. Apenas se está a comprar uma casa.
A segunda, é a de que o ambiente das duas definições parecendo ser semelhante, não o é. Existe de facto, em ambas, a presença de um “outro”, ou “outros”; a “hostilidade” de uma outra vontade e o “conflitual” podem parecer-se; o “competitivo” sugere que ambas desejam algo que lhe dê uma vantagem sobre o outro, ou a sua exclusão. No entanto, a utilização da força contra outra unidade política, da definição de 1968, que pode chegar à violência física e psicológica, e até à neutralização e aniquilamento do opositor, não tem paralelo com aquilo que qualquer organização pode praticar para atingir os seus objectivos.
A terceira nota sobre a definição é a de que as unidades políticas dispõem de meios de coacção que não existem nem podem existir noutras organizações – as suas Forças Armadas – que detêm o monopólio da força. Além disso, há até unidades políticas que dispõem de meios de coacção cataclísmicos, as armas nucleares, que, desde 1945, devido ao seu poder dissuasor, não têm impedido a existência de guerras, mas têm evitado as “grandes guerras”.
Por estas razões, pensamos que a definição de 1998, pretendendo englobar na Estratégia aquilo que as ciências de organização e gestão denominam de estratégia, se, por um lado, ganha em abrangência e modernidade (dado o desenvolvimento que essas ciências têm tido nos últimos tempos), por outro, perdem em rigor, em clareza, em exactidão. Dito isto, é também conveniente que se afirme que as organizações e empresas que tenham uma actividade concorrencial podem em muitas circunstâncias e com vantagem empregar o método “estratégico” que a definição de 1998 aliás sumariza: “à luz dos fins (... ) estabelecer e hierarquizar objectivos, (…) gerar, estruturar e utilizar recursos (...) a fim de atingir os seus objectivos”.
Recordar todo este debate sobre as duas definições de Estratégia pareceu-me importante, porque olhando para aquilo que nos últimos tempos tem sido o comportamento da actual Administração nos Estados Unidos, não vemos a existência de um pensamento estratégico, mas um predomínio de preocupações existentes nas organizações e empresas, e um fim de política interna. Com efeito, o primeiro e grande objectivo que notamos nada tem a ver com a segurança e defesa daquela unidade política que é algo do âmbito da Estratégia, mas com a obtenção do agrado e apoio de parte da população americana para se manter no poder dessa empresa em que se transformaram os EUA. Além disso, mesmo no âmbito empresarial, nota-se a direcção de alguém, que tendo tido algum sucesso se julga um génio, mas contraria o que há de mais elementar na Estratégia: não entende a diferença entre entidades políticas e empresas; apoia protagonistas da xenofobia e do racismo e perturbadores da ordem internacional, estabelecida desde 1945; e tem uma atitude arrogante, prepotente e errática envolta em permanentes contradições e mentiras.
Sobre este ambiente dizem alguns que se trata de um novo paradigma das relações internacionais e da Estratégia. Não estou de acordo. Só o seria, se considerássemos, por exemplo, que poderia ser paradigma do exercício da política, desconhecê-la, mas mostrar uma aptidão para a culinária. As relações internacionais e a Estratégia vão continuar a ser aquilo que têm sido, com atitudes de tendência racional, ainda que as unidades políticas agora tenham que contar com a postura e atitudes estranhas e erráticas na actual Administração americana. Não serei exaustivo em enumerar essas atitudes, em que só raramente se vê algo de estratégico, tantas foram elas, mas vou lembrar algumas:
– A confusão que se faz entre amigos e inimigos, adversários e concorrentes e a forma rude, agressiva e indigna com que tem tratado alguns dos aliados;
– O ataque e a desconsideração que fez a essa velha aliança, a NATO, em que tem lugar dominante, para depois se desdizer;
– A hostilidade que manifesta em relação à União Europeia e alguns países e dirigentes políticos europeus;
– A sua interferência nas eleições e política interna de outros Estados, mesmo que sejam velhos aliados e amigos dos EUA;
– A agressividade manifestada em relação aos seus vizinhos, Canadá e México, e aos seus dirigentes, e a ideia bizarra de ser o México a pagar o muro que ele prometeu construir;
– O alternado louvor e crítica, e crítica e louvor que tem feito a dirigentes internacionais, como o da Rússia e o da Coreia do Norte;
– As reticências que tem demonstrado em relação ao funcionamento da ONU, o mais importante fórum da ordem e paz internacionais;
– A saída de instituições como a Unesco e Organização Internacional das Migrações;
– A revogação de tratados e acordos importantes para a vida da humanidade e para a paz, como são o das alterações climáticas e o celebrado com o Irão;
– O errático comportamento que tem tido na Síria, que foi desde o bombardeamento de uma base aérea ao apoio à Arábia Saudita, que financia mesquitas corânicas promotoras de fanáticos da Al-Qaeda e do Daesh e, por fim, à aceitação da partilha da estabilização da Síria feita com o Presidente Putin;
– A imponderada mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém e das excelentes relações que tem mantido com a direcção política extremista israelita, prejudicando a decisão internacional da ONU sobre a criação de dois Estados;
– A guerra comercial que criou, pondo em causa o comércio internacional e afectando países amigos dos EUA;
– A inusitada hostilidade manifestada com o anterior Presidente dos EUA, desconsiderando o Estado americano e uma instituição que tem sido respeitada, como é a da Presidência dos EUA;
– A xenofobia que tem manifestado em relação a emigrantes, no seu país e no mundo, e o apoio que tem dado a correntes políticas de outros países igualmente xenófobas, racistas e fascizantes;
– A falta de sensibilidade que demonstrou no caso da separação das famílias e crianças imigrantes;
– A escandalosa protecção que dá à indústria e comércio de armas no seu país, indiferente aos massacres que originam;
– A desconsideração que fez às importantes e prestigiadas agências de informação dos EUA, dando maior credibilidade às palavras do Presidente Putin;
– A agressividade que manifesta em relação à comunicação social, que na sua diversidade procura cumprir a missão nobre de informar, dizendo que são “todos corruptos e inimigos do povo”.
Se tudo isto sucedesse num pequeno Estado, seria patético, embora sem grandes reflexos na situação mundial. Mas, tratando-se do Presidente dos EUA, a principal potência mundial, que já Kissinger há uns anos referia estar na situação de não se poder retirar do mundo, mas também não poder dominá-lo, o assunto é muito grave e muito preocupante.
Não encontro na actual Administração americana o fio condutor que caracteriza a existência de uma Estratégia que vise a segurança e defesa dos EUA e a segurança e a paz no mundo. O único objectivo que se vislumbra, é de âmbito empresarial-político, que é o da actual Administração se manter no poder a todo o custo. Com este fim em vista, responde a aspirações primárias de uma parte da população americana, ignorante e rude, cujo nível de vida foi afectado pela globalização e pela crise do final da primeira década do séc. XXI. Trata-se, pois, de gente que pensa essencialmente no “eu”; que na sua ignorância desconhece o “nós”, sociedade internacional; mas que é receptiva ao discurso megalómano da grandeza do “nós”, América: “let us make America great again”. Desta situação decorrem graves ameaças para a humanidade, no âmbito da democracia, do respeito pelos direitos humanos e da paz mundial.
No âmbito da democracia, os EUA, têm sido, ao longo de mais de dois séculos, o maior defensor deste regime político. Primeiro, pelo exemplo do seu país e pelo comportamento das suas instituições políticas. Segundo, pela pressão que exerceu para que outros Estados adoptassem idêntico regime, mesmo quando cultural e sociologicamente não tinham grande aptidão e vontade para o adoptar. Hoje, porém, com esta Administração está a verificar-se uma mudança. Internamente, quando a liberdade de expressão está a ser posta em causa, manietada, e se procura substituí-la por uma informação monolítica do poder, com falsas notícias e continuadas mentiras, que, pela repetição, tem audiência em parte significativa da população (certamente rústica e que vê em Trump um messias), o que é gravíssimo. Externamente, quando se notam ecos desta actuação em outros países.
Além disso, isto é diferente daquilo que se passou na velha democracia ateniense, na qual os gregos da Beócia, apesar da sua ignorância (era assim que Atenas os via), não influenciaram o funcionamento das instituições. Aqui, americanos simples, egoístas e ignorantes são chamados a apoiar a ideia de substituir a democracia por uma direcção política musculada, irresponsável e perversa, que nos traz à memória os regimes políticos que aconteceram na Europa, nos anos 30, e deram origem à II Guerra Mundial.
Se Tocqueville estivesse vivo e fosse agora aos EUA não escreveria com admiração “La democratie en Amérique”, mas lamentaria o seu declínio, e escreveria provavelmente “la democratie en Amérique est en train de disparaître”.
Para além da alteração que a Administração Trump está a imprimir nos EUA, ela ainda apoia partidos, movimentos, atitudes e pessoas, que, noutros países, nomeadamente europeus e aliados, põem em causa a democracia. Isto é, não basta o mau exemplo que vem dos EUA, ainda há interferências e apoios noutros países com idêntico desrespeito pelos valores democráticos.
Quanto aos direitos humanos, também a Administração Trump está de forma irresponsável a desrespeitá-los, sendo muito chocante esta atitude, porque nos habituámos a ver os EUA como um dos seus grandes pilares. De facto, vimos os direitos humanos serem tratados na Constituição americana; o país ter sido historicamente acolhedor de imigrantes de todo o mundo; desde há muito, se ter apresentado como o paladino da descolonização e da autodeterminação dos povos (excepto para os territórios não-autónomos sob a sua Administração e a lentidão que demonstrou quando da independência de Timor-Leste); ter posto fim à segregação racial, ainda que tardiamente; e até ter um ícone, a Estátua da Liberdade, oferecido pela França. Mas, hoje, a Administração Trump põe em causa os movimentos migratórios, chegando a enaltecer posições idênticas que sucedem noutros países; tem atitudes xenófobas e é condescendente com posições racistas e fascizantes; marginaliza crentes de certas religiões, quando tem sistemas de controle que lhe permitem detectar, no meio deles, indivíduos violentos e terroristas; ordena a separação de famílias e crianças emigrantes; permite massacres nas suas escolas e outros locais públicos, por nada fazer quanto ao controle de armas, nomeadamente armas de guerra. Estas atitudes, atentatórias dos direitos humanos no interior da nação americana têm repercussões em todo o mundo. Onde está aquela América que o mundo admirava e até respeitava?
A última nota conclusiva é a de que já se torna evidente em algumas regiões geográficas e países, como no Médio Oriente, em Israel e no Iémen, haver um incitamento ao conflito e à guerra, de que esta Administração Trump é responsável, o que torna mais precária a paz no mundo.
A confusão que Trump faz em relação aos aliados amigos e inimigos, concorrentes, alinhados e opositores; as ameaças de destruição que anuncia, seguidas de períodos de aparente compreensão e amizade; as absurdas posições que toma, como a da ligação à Arábia Saudita e a mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém; a revogação do acordo com o Irão e a proposta de celebrar um outro acordo, à margem dos restantes países que o assinaram; o comportamento ambíguo em relação à NATO, que mais parece procurar a separação dos EUA da Europa, que era o objectivo da União Soviética e que a Rússia provavelmente ainda deseja; a sua posição indecifrável em relação à Rússia, com sanções, louvores e desconhecidos acordos; a intempestiva agressividade que está a demonstrar face à Turquia, um aliado que tem uma situação geopolítica ímpar; as conversações impreparadas com objectivos desconhecidos ou que se não vislumbram, com putativos adversários e a inconclusão a que se chega – tudo isto são sinais de um pensamento e de uma acção desconcertados que mais parecem impulsos de alguém que se julga um génio, prejudica as relações internacionais, torna o mundo mais perigoso e é uma nítida ameaça para a paz no mundo.
Toda esta situação adquire uma maior gravidade, porque os EUA são a mais forte potência mundial e porque dispõem de um importante arsenal nuclear. Há anos, produzi um escrito em que mostrei a minha estranheza por alguns países, no período eleitoral, terem em consideração o estado de saúde dos candidatos a Presidente quando não se faz um estudo aprofundado do estado mental e psicológico dos candidatos a Presidente, dos países possuidores de armas nucleares. Aliás, mesmo sem estas armas, a eleição de Hitler, megalómeno, racista, prepotente, egoísta, manipulador, mentecapto e que se julgava um génio, é a prova de que este estudo deveria ser feito para evitar guerras ou até o Apocalipse.
Seria muito bom que no momento em que este meu artigo for publicado, a actual Admnistração Trump já não estivesse a exercer o poder. Isso seria um grande alívio para a humanidade e uma esperança para a paz no mundo.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.