Segundo ensinamentos de Cesar Campiani Maximiano (Guerra Híbrida Não Existe: A História Prova, A Defesa Nacional, nº 835, Rio de Janeiro, BIBLIEx, 1º quad. 2018, ps. 4-9), “a ideia de guerra híbrida é uma das mais recentes falácias que polui o pensamento militar da atualidade. Trata-se de mais um arremedo explicativo para quem criou o péssimo hábito intelectual de interpretar guerras pelos contextos táticos e, quando muito, operacionais. Surgida no seio de algumas análises da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a proposição nem mesmo ela é consensual, tendo suscitado refutação sólida o suficiente para que seja, no mínimo, analisada com mais seriedade, e, na melhor das hipóteses, abandonada de vez ()”. Consoante seu ponto de vista, que também é acompanhado por diversos outros estudiosos da polemologia, a própria história militar recente já faz-se suficiente “para afastar esta ideia, que posa de pretensa mudança na natureza da guerra, mormente para quem está familiarizado com as reflexões de Clausewitz sobre os conflitos bélicos”.
Em tempos de novas classificações, conceitos e qualificações elaborados sobre os futuros tipos de guerra a serem enfrentados, quase sempre de validade duvidosa, prossegue o autor, resta concluir que as diversas campanhas contemporâneas (com suas correspondentes gramáticas) “permanecem solidamente servindo de referência para estudo para uma variedade enorme de situações complexas e dificuldades enfrentadas que não tiveram precedentes, o que costuma ser o caso em cada nova guerra”.
Todavia – em sentido diametralmente oposto –, é cediço reconhecer que, pela própria dinâmica evolutiva da polemologia, cada vez mais doutrinadores, – mesmo a par da comprovada existência de alguns exageros quanto à inauguração de novas classificações, conceitos e qualificações –, têm defendido, em contraposição crítica, a utilização de terminologias específicas que, distante de buscar “confundir a doutrina militar”, objetivam prover maior clareza terminológica para velhos e novos fenômenos observados nos conflitos contemporâneos, notadamente os ocorridos no espectro temporal do pós-Segunda Guerra Mundial, concebendo maior (e imprescindível) precisão vocabular.
A título exemplificativo, não há qualquer dúvida (minimamente razoável) de que, embora não se trate propriamente de um acontecimento novo (e inédito), existem “conflitos de baixa intensidade” que se tornaram, a partir do advento das armas de destruição em massa (notadamente os artefatos termonucleares), muito mais comuns no contexto geopolítico atual, impondo a utilização de sua concepção conceitual de forma muito diferente do passado, quando esta modalidade de guerra (ou, em termos mais técnicos, natureza conflitual) era muito menos verificada e, portanto, conhecida e estudada.
Nesse particular, apesar de todas as efetivas e potenciais críticas, é ponderável o emprego da expressão “Guerra Híbrida” (ainda que sem a precisa “posição enciclopédica” de tipo ou modalidade de guerra, mas sim, alternativamente, como designativa da natureza intrínseca do conflito associado) para posicionar doutrinariamente determinadas expressões conflituais contemporâneas inéditas (ou, no mínimo, que se tornaram mais comuns nos dias atuais), fazendo-se mais precisa a gramática polemológica.
“Pode-se cogitar (pela existência) de um conflito no qual os atores, estatais e não-estatais, exploraram todos os modos de guerra simultaneamente, empregando armas convencionais avançadas, táticas irregulares, tecnologias agressivas, terrorismo e criminalidade, visando desestabilizar a ordem vigente: é o que se denomina por ‘Guerra Híbrida’.” (Frederico Aranha; Guerra Híbrida: Breve Ensaio, Defesanet, Brasília, 30 abr. 2015. Disponível em:. Acesso em: 22/09/2017).
Resta evidente que a combinação dessas diferentes características (meios ortodoxos e heterodoxos combativos e outros tantos contrapontos bélicos), – a que se convencionou chamar de “Guerra Híbrida” –, muito provavelmente, já foi constatada em situações pretéritas de guerra, nas quais, à época, nem se cogitou formular novas conceituações e definições para interpretar os eventos então enfrentados. Contudo, tal fato, ainda que verdadeiro (em sua essência), não retira a atual necessidade classificatória, sobretudo se entendermos que esta modalidade (nova ou “recauchutada”) passou a ostentar uma importância (em termos de ocorrências e de maior precisão modelar) que jamais foi experimentada no passado.
“Uma das maneiras em que podemos entender a ‘Guerra Híbrida’ é como aceitar, prima facie, esta mistura diversificada de tipos de guerra que, em termos de Wittgenstein, se sobrepõem e se cruzam. A ‘Guerra Híbrida’, então, pode consistir, de forma seletiva e às vezes simultânea, em perseguir (ou evitar) todas e quaisquer possíveis formas de guerra em todo o espectro do conflito.
Dado o escopo abrangente da ‘Guerra Híbrida’, os recursos de um grande estado-nação industrializado seriam uma condição necessária para travar o mencionado confronto bélico, e isto distingue claramente a ‘Guerra Híbrida’ da ‘Guerra Irregular’, partidária, ou não convencional no sentido estrito. Apenas as entidades não-estatais mais bem-sucedidas e bem financiadas poderiam aspirar à gama de operações implícitas na ‘Guerra Híbrida’, e, na medida em que uma das características essenciais nesta modalidade conflitual é a utilização coordenada das forças regulares e irregulares, a entidade não-estatal sem forças regulares não estaria, por definição, em posição de combater a ‘Guerra Híbrida’” (Entendendo a Guerra Híbrida: Uma Análise Explicativa, Traz a Definição de Guerra, Não-Guerra e Tipos de Guerra; Dinâmica Global, 31 de agosto de 2016. Disponível em: . Acesso em 22/09/2017).
A própria OTAN se encarregou de elaborar uma definição (específica) para a “Guerra Híbrida”, registrando a expressão em um contexto concepcional evolutivo, inerente à própria dialética da ciência polemológica no particular sentido da ampliação de seu vocabulário, sem, no entanto, registrar tratar-se, necessariamente, de uma nova modalidade de conflito, permitindo, muito acertadamente, a conclusão no sentido de configurar-se em uma nova faceta concernente à natureza de determinados tipos de guerra já consagrados pela polemologia.
“Uma ameaça híbrida é aquela oferecida por qualquer adversário atual ou potencial, incluindo estatais, não-estatais e terroristas, com a capacidade, seja ela comprovada ou provável, de empregar simultaneamente meios convencionais e não convencionais de maneira adaptável, na busca de seus objetivos” (NATO Military Working Group – Strategic Planning & Concepts, fev. 2010).
Ainda assim, resta absolutamente salutar, para uma maior reflexão sobre a temática epigrafada, as considerações (adicionais) de Cesar Campiani Maximiano (Guerra Híbrida Não Existe: A História Prova, A Defesa Naval, nº 835, Rio de Janeiro, BIBLIEx, 1º quad. 2018, ps. 4-9) no sentido da (eventual) pouca utilidade dos novos termos e conceitos polemológicos, em especial a caracterização assertiva de uma “Guerra Híbrida”.
A literatura sobre guerra e estratégia tem contato com poucos textos esclarecedores desde a elaboração dos grandes clássicos do século XIX. O simples teste de perguntar ‘esta nova definição é útil?, ela realmente ajuda?’’ pode salutarmente ser aplicado a cada nova discussão emergente sobre as mudanças e possíveis inovações que os analistas, a cada geração, declaram ser capazes de observar nas guerras. O fato é que, comumente, inúmeras conceituações estreantes não só não ajudam (como, ao reverso) confundem. Em seu capítulo no livro Rethinking the Narute of War, M.R.L. Smith foi capaz de expressar calmamente a inutilidade de algumas delas, como a de LIC (Low Intensity Conflict).
Mesmo em uma situação de combate supostamente ‘de baixa intensidade’, em um grupo de combate (GC) moderno age e opera da mesma maneira que seus precursores no início do século XX. De fato, um GC organizado e treinado nos padrões da Primeira Guerra Mundial seria perfeitamente capaz de entender situações táticas contemporâneas e atuar no combate moderno. E isto, apesar de ter sido concebido no contexto de uma das mais mortíferas guerras de atrito já enfrentadas pela humanidade. Do ponto de vista de quem opera no espectro tático, um conflito de ‘baixa intensidade’ pode ser tão letal quanto qualquer outro.
Esta comparação, sobretudo, é ainda superficial: se as dificuldades táticas podem ser mais ou menos graves, elas pouco dizem sobre questões subjacentes de natureza política que podem rapidamente fazer com que um conflito com um número relativo de baixas se transforme em um verdadeiro sumidouro de combates. ‘Baixa intensidade’ é um adjetivo eufemístico que incorre no perigo de subestimar a gravidade e a complexidade de uma crise. A ideia de Low Intensity Conflict cai por terra: empregar o conceito é interpretar conflitos por seu contexto tático, e não a partir de considerações sobre suas origens históricas, geográficas, étnicas, culturais, sociais e econômicas – enfim, políticas.
Como explica a própria conceituação de proponentes da ‘Guerra Híbrida’, esta é primordialmente o recurso dos beligerantes que apresentam maior grau de efetividade militar (conceito aprimorado dos anos 80 por Millet e Murray, que expressa uma das mais válidas contribuições para o debate sobre estratégia). Recordando a explanação oferecida pelos proponentes da ‘Guerra Híbrida’, somente as nações altamente industrializadas e desenvolvidas seriam capazes de se valer da economidade de recursos que possibilitem operar em tão diferentes ‘espectros’. Se nos for permitido converter essa ideia de ‘alta industrialização’ para um conceito mais consistente, como o da efetividade militar, podemos imaginar o seu suprassumo no seu desempenho Aliado dos anos finais de 1944 e 1945, durante a Segunda Guerra Mundial. ‘Efetividade militar’ é simplesmente a capacidade de transformar recursos em poder de combate.”
A par de todas essas considerações, apresenta-se mais ponderável a posição que – reconhecida a existência dos “embates híbridos” como um fenômeno não propriamente inovador, mas certamente mais comum (em termos de ocorrência), notadamente no presente século XXI –, o classifica como inerente à natureza do conflito, removendo-o da categoria, mais ampla, de nova modalidade de guerra, conforme, inclusive, registrado em alguns documentos oficiais da OTAN e, em parte, na doutrina das forças armadas estadunidenses.
Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e Professor Honoris Causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR).