Este título sugeriu-me que, em jeito de introdução, fosse razoável olhar a realidade concreta da Política de Segurança e Defesa Comum Europeia, levantando a dúvida sobre o tratamento a dar aos conteúdos que encerra.
Com esta intenção vou repensá-lo, ainda que muito sinteticamente, segundo duas vertentes, a saber:
A Política Comum de Segurança e Defesa da União Europeia como uma “Utopia”, por um lado, e, como um “Equívoco”, por outro.
Vejamos, então:
Uma Utopia, dado que é constatável uma insistência em modelos conceptuais do antecedente adequados, porém, hoje, inoperantes, porque desajustados do actual contexto político-estratégico intra-europeu.
De facto, para não ir mais longe, de Maastricht (1992) para cá, e, já lá vão muitos anos, habituámo-nos a tentativas, relativamente inconsequentes de construção de uma “Europa de Defesa” a alicerçar numa desejável “Identidade Europeia da Segurança e de Defesa” (às quais, o Tratado de Lisboa, não escapa, apesar de ter constituído, na perspectiva então dominante, uma considerável alavanca).
Para ultrapassar o possível impasse, julgo importante reflectir sobre as premissas de uma relativa autonomia estratégica. Para alcançar alguma margem neste domínio, base para qualquer ideia de defesa Europeia, haverá que ter bem presente que, mais do que os indispensáveis recursos militares autónomos disponibilizáveis, terá que ser assegurado o incontornável imperativo de um alargado consenso sobre o que à União Europeia importa defender. Para atingir este desiderato, haverá que aprofundar uma perspectiva consertada dos Estados-Membros a plasmar numa Estratégia coesa e especificamente europeia, voltada para aquilo que há a defender a todo o custo, para outras preocupações de Segurança e de Defesa e para a gestão das crises internas e internacionais que ininterruptamente se sucedem, reobjectivando, assim, a Estratégia Global da União Europeia (EUGS-2016).
O desenvolvimento progressivo deste entendimento, enquanto premissa fundamental que é, deverá ser alicerçado na indispensabilidade de uma interiorização dos interesses comuns que se superlativam nos “interesses vitais europeus”; a moldura destes interesses comuns radica, necessariamente, na condição de segurança que é premissa de um desenvolvimento sustentável e solidário, do reforço dos mecanismos que constituem o alicerce permanente do mitigar de tensões sociais internas e da prática dos valores inerentes à cidadania responsável, indissociável da vivência democrática. Em suma, os interesses vitais europeus corresponderão ao leque de interesses que, na sua intemporalidade abrangente, se afirmam como condição necessária à realização dos interesses próprios dos Estados-Membros, interesses estes, em muitos casos de curto prazo e, como tal, só conjunturalmente divergentes.
Este, o imperativo político que avulta neste difícil momento que a União vive, como possível modo de pensamento e de acção capaz de concorrer para ultrapassar a actual crise – através de uma convergência política, que a definição do interesse geral comum tenderá a potenciar, criar-se-ão condições para a reorientação das políticas, que viabilizará o ajuste das convicções e dos valores do projecto fundador às actuais amplitude e diversidade do espaço europeu e à ordem internacional vigente.
O dinamismo inovador de um tal processo tenderá para encarar o futuro, numa perspectiva balizada: na certeza de que nada está definitivamente garantido; na transparência das decisões, decorrente de uma intensificação, desenvolvida através dos Estados-Membros, dos laços entre a União e os cidadãos; e na vontade de afirmação como um espaço capaz de encontrar sinergias no respeito pela diversidade que contraria a unicidade e de fundamentar na responsabilidade, na liberdade e na solidariedade uma oportunidade de realização humana. Esta alteração de paradigma contribuirá, certamente, para viabilizar a definição de objectivos permanentes servidos por prioridades estratégicas comuns. Estas prioridades deverão objectivar-se na afirmação de uma plataforma suficiente de Identidade Europeia, alicerçada numa capacidade de defesa dos seus Interesses Vitais. Com este entendimento, poder-se-ão enunciar objectivos estratégicos comuns, cuja prossecução vise concretizar condições para: garantir a segurança dos cidadãos e das infra-estruturas críticas, garantir o suporte da acção diplomática externa e, com a autonomia possível, garantir uma capacidade dissuasiva proporcional a ameaças que possam afectar os interesses vitais europeus. Desses objectivos decorrerão prioridades estratégicas comuns de que são exemplo:
– Fazer face, com eficácia solidária, a crises e conflitos internos e a catástrofes naturais;
– Reforçar a segurança no espaço de responsabilidade directa da União, tornando visível uma assertiva capacidade policial comum, ditada pelas exigências de segurança interna;
– Incentivar e apoiar um eficiente e coordenado desenvolvimento das capacidades militares nos Estados-Membros do qual resulte, sem prejuízo das responsabilidades próprias e sem duplicação de meios, o reforço do poder dos parceiros estratégicos e a estruturação de uma capacidade autónoma de comando e controlo de forças voltada para a Segurança e Defesa da União.
Vejamos, agora, a segunda vertente de análise – a Política Europeia de Segurança e Defesa como um equívoco.
Equívoco, porque os actuais ambientes político e estratégico envolventes, muito difusos e em mutação acelerada, exigem ao “Projecto Europeu” uma rotura com o “status quo”. Isto porque, a incidência impositiva destes, tão intensivos, quanto imprevisíveis, condicionalismos, ao reflectir-se nos planos conceptual e estrutural da Estratégia Europeia, não se compadece com a cómoda lentidão do ritmo da evolução na continuidade.
Na realidade, a afirmação política e estratégica da União Europeia exige que, sem prejuízo da experiência histórica adquirida e do alicerce nos princípios e valores adquiridos, para além de sacrifício e de vontade, seja adoptada uma postura antecipativa de crítica construtiva em relação a tudo quanto assenta nas condições que validaram as suas sucessivas conquistas num ambiente já por demais ultrapassado. Só assim será possível encarar, com pragmatismo, a radical mudança verificável nos sistemas em que intenta prevalecer como Actor relevante.
Como é sabido, as motivações e pressões que, no pós-guerra e na subsequente “guerra fria”, enformaram o modelo de cuja evolução resultou a actual União Europeia sofreram alterações profundas que invalidam posturas morosas e imobilistas e recomendam atitudes firmes, pró-activas e imaginativas.
Entre muitas outras alterações com impacto estratégico que invalidam a aceitação da inércia resultante de um estar complacente para com o actual modelo – fundamentalmente baseado numa impossível compatibilização entre uma certa apetência para uma estrutura imperial e a aceitação forçada de uma prática realista de soluções casuísticas – servido por modelos parciais dominantes de natureza vincadamente económica e financeira, os quais se têm vindo a revelar como insuficientes instrumentos de uma política de “soft power” conduzida sem alternativa visível, saliento:
– A intensa e acelerada revolução tecnológica, onde avultam os reflexos da utilização do ciberespaço;
– O colapso do sistema soviético, com a emergência da Rússia europeia que, na sua transcontinentalidade, procura posicionar-se como pivô no equilíbrio Euroasiático;
– A reunificação da Alemanha e a proliferação de estados na Europa Central e Oriental, que, associadas ao alargamento para Leste da União Europeia, esbateram o antecedente carácter vincadamente marítimo da União e trouxeram consigo atavismos históricos que desassossegam o relacionamento intra-europeu;
– A saída formal do Reino Unido da União Europeia;
– O instável papel da Turquia no equilíbrio regional com impacto directo na segurança europeia, onde avultam os reflexos negativos da instabilidade endémica do Médio Oriente;
– A evolução constatável na postura política da Super Potência Global de 1ª ordem, os EUA, reafirmando o seu poder impositivo com consequências difíceis de prever;
– A, pelo menos conjuntural, alteração do significado estratégico do espaço europeu e do Atlântico Norte para a segurança da Superpotência norte americana;
– O agigantar da Ásia, onde a China emerge com poder global e a Sub-Península indiana como área de poderes críticos para o controlo da ligação do Pacífico ao Índico;
– As consequentes alterações no Sistema de Relações Internacionais, onde, para além da profusão de novos e imprevisíveis Actores, a tipologia e a hierarquização tradicionais dos Estados deixaram de fazer sentido.
Nesta transformação que se verifica no ambiente político-estratégico envolvente, a natureza, a rapidez e a incerteza, implícitas na mudança que nos interpela, aconselha a adopção de oportunas políticas e estratégias contingenciais para concretizar quatro prioridades essenciais:
– Desenvolver as componentes genética, estrutural e operacional da Estratégia europeia, de forma integrada e solidariamente participada, racionalizando, sustentadamente, os recursos financeiros e materiais afectos à Segurança e à Defesa da União a alicerçar, em complementaridade, por capacidades próprias e pela NATO;
– Através das estruturas militares geradas e disponibilizáveis pelos Estados-Membros, assegurar a afirmação de uma Estratégia autónoma europeia e contribuir para aumentar a capacidade de defesa colectiva da NATO; este desiderato deverá ser alcançado sem redundância de meios, prevendo o emprego operacional dos recursos militares europeus em missões específicas da União, como as Petersberg ou outras, sob comando conjunto europeu, ampliando, por exemplo, em íntima articulação, as competências dos, já previstos, Centro de Comando Único (CMPC) e Centro de Análise de Ameaças Híbridas;
– Tendo sempre em consideração as legítimas responsabilidades dos Estados-Membros (salvaguardadas pelo princípio da subsidiariedade), alargar e reforçar a capacidade conjunta europeia de meios policiais e de protecção civil para, em situações de excepção e a pedido, atribuir em reforço dos meios próprios estaduais, numa demonstração inequívoca da vantagem na pertença à União;
– Assegurar a eficácia de um sistema europeu integrado de vigilância e de informações, apoiado por tecnologias de ponta, que, em ligação com a NATO, optimize as capacidades de ciberdefesa, de contra terrorismo e de protecção Nuclear, Biológica, Química e Radiológica.
Em resumo, a convergência em prioridades semelhantes, decorrente das considerações tecidas nas duas hipóteses consideradas – a da “Utopia e a do “Equívoco” – aponta para que a dificuldade de concretização das iniciativas, até agora empreendidas neste vasto âmbito da Segurança e da Defesa da União Europeia, enforme do vício de conter em si os gérmenes da “utopia” e do “equívoco”.
Termino, pois, na certeza de que este Painel, ao repor a dúvida que nos ensombra, contribua, sustentadamente, para o levantamento de caminhos que possam conduzir à ultrapassagem dos escolhos que têm constituído obstáculo ao acerto atempado das decisões neste domínio crítico da Defesa e da Segurança da União Europeia.