Nº 2605/2606 - Fevereiro/Março de 2019 - Número Temático
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Gomes Freire e Alorna: amigos ou rivais?

José Norton

Os mesmos caminhos

O percurso comum de Alorna e Gomes Freire começa na campanha do Rossilhão, em 1793. Desde então, as vidas de D. Pedro de Almeida Portugal, marquês de Alorna e Gomes Freire de Andrade fizeram-se por caminhos semelhantes e muitas vezes paralelos ou mesmo convergentes.

As sucessivas promoções realizam-se em datas próximas. São ambos marechais de campo em 1807, tenentes generais em 1808 e generais de divisão no exército francês em 1812.

Em Portugal, na passagem do século, está cada um deles à frente de um regimento que leva o seu nome. O Regimento de Tropas Ligeiras, também chamado Legião Alorna, e o 4 de infantaria, mais conhecido por regimento Gomes Freire.

Quando em 1803 se dão os chamados distúrbios de Campo de Ourique, acontecimento que parece condenado a ficar envolto numa aura de incertezas, Alorna e Gomes Freire estão juntos.

São bem conhecidas as suas contribuições escritas para a reorganização do exército português. Alorna apresentou, em 1799, as “Reflexões sobre o sistema económico do exército”. Em 1806, Gomes Freire trouxe a público um vasto trabalho a que chamou “Ensaio sobre o método de organizar em Portugal o exército, relativo à população, agricultura e defesa do país”.

O recurso sistemático a estrangeiros para encabeçarem o exército português foi por ambos explicitamente criticado. Nas suas “memórias políticas”, escreveu Alorna:

mas o Governo declara que a Nação inteira não produz um só homem de Guerra, mandando vir Estrangeiros para pôr à testa não só do Exército, mas de cada um dos seus Ramos[1].

Por sua vez, durante a campanha do Rossilhão, Gomes Freire não só entrou em violento choque com um militar francês ao serviço de Portugal, Clavière, como contestou a actuação e aptidões do general Forbes Skellater.

Também os unia o reconhecimento dos danos que a influência inglesa provocava a Portugal e o empenho em reverter essa situação. Em 1810, o marquês manifestou ao ministro da guerra de Napoleão toda a sua disponibilidade para ajudar à “expulsão dos ingleses do meu país”[2]. Já Gomes Freire, escrevendo em janeiro de 1811 a um general francês não identificado, explicava como a organização das Milícias e Ordenanças podia “servir utilement l’Empereur, et détruire à jamais l’influence de ceux cis [os ingleses] au Portugal»[3].

Quando, em 1808, Alorna é encarregado por Junot de formar o contingente português que se deveria juntar ao exército francês, chama para o coadjuvar Gomes Freire. Ambos são, na altura em que partem para França, tenentes generais.

Em França, ambos são agraciados com a Legion d’Honneur. Durante a campanha da Rússia, a cada um deles é entregue o governo militar de uma cidade da Lituânia.

Um e outro foram acusados de participar em conjuras políticas. Alorna, em 1806, na chamada conspiração dos fidalgos ou de Mafra. Gomes Freire, na conspiração de 1817. Ambos negaram tais acusações.

No fim de contas, dois homens marcados e perseguidos por terem sobressaído no desempenho das suas funções e ousado desafiar interesses instalados na sociedade em que viveram.

Deixei para o fim mais uma situação que partilharam: o comando da Legião Portuguesa em França.

Não terá havido nisto rivalidade ou melindre?

Pode parecer que sim. Oliveira Marques, na sua História da Maçonaria, dá ideia de que Gomes Freire fora sempre o verdadeiro comandante na sombra: “A Legião Portuguesa tinha nominalmente a dirigi-la o Marquês de Alorna, mas a sua verdadeira cabeça era “o comandante em segundo tenente general Gomes Freire de Andrade[4].

A verdade é que, mal os vários regimentos se juntaram em França, quem mandava nas tropas portuguesas eram os franceses. A questão do comando nominal era apenas uma questão de prestígio mínimo. A passagem desse comando para Gomes Freire, em 1809, deu-se justamente por Alorna se ausentar, em Paris primeiro, e depois ser mandado para Espanha, só voltando a Grenoble em 1812. A mudança foi consensual. Referindo-se à situação das tropas portuguesas na sua ausência, escreveu Alorna ao ministro da guerra francês: “la troupe “peut aller d’elle même, surtout ayant le génèral Gomes Freire à leur tête[5], o que constitui um elogio ao seu companheiro, sem sombra de ressentimento.

Mas há, porém, um documento que deita luz sobre as relações entre os dois generais portugueses. Trata-se de uma carta em que Gomes Freire, a pedido da Condessa de Oyenhausen, irmã do marquês e herdeira do seu título, relatou os momentos que tiveram em comum em França, e em particular os que, na retirada da Rússia, antecederam a morte do marquês.

Eram amigos e íntimos, pois só assim era possível a Gomes Freire conhecer certos detalhes da vida de Alorna que revela na carta.

Amigos, ainda, em face da reiterada afirmação de Gomes Freire:

J’ai recueilli, dans une terre étrangère les derniers soupirs de mon ami

Je vous prie Madame la Comtesse de voir toujours en moi l’ami de feu votre frère[6]

Por sua vez, e segundo o mesmo documento, nos últimos momentos, Alorna ter-lhe-ia dito “Meu Gomes não me deixes! Tu és o único que eu vejo sempre ao pé de mim, todos os mais me abandonaram”, o que não correspondia à verdade literal como Gomes Freire esclareceu, pois estava com os seus ajudantes de campo tão doentes como ele, mas que poderia ter um significado mais fundo, de ser Freire de Andrade a pessoa em quem depositava confiança absoluta.

Concluímos, enfim, que existiu entre ambos uma amizade sólida que nunca terá sido toldada por emulações ou rivalidades.

 

Política e Maçonaria

Esta espécie de paralelismo verificado nas relações pessoais e profissionais entre as duas personalidades levou-me a perguntar se o mesmo se passaria no campo da política. Haveria coincidência? Comungavam dos mesmos ideais?

Recordo aqui a opinião de três investigadores que abordaram o assunto.

António Pedro Vicente, referiu-se-lhes como tendo seguido “destinos profissionais paralelos e abraçando similares ideologias [7].

Oliveira Marques, na sua História da Maçonaria[8], inclui Alorna na vasta lista de maçons sem loja atribuída.

Por seu lado, Graça e J. S. da Silva Dias, a propósito de eventual solidariedade maçónica nos chamados distúrbios de Campo de Ourique, escreveram que “pertencia à mesma Sociedade outro dos interventores nas manifestações, o marquês de Alorna”[9].

Alorna seria assim maçon e ideologicamente liberal.

Não cabe aqui indagar o significado de “ser liberal”. Mas admitamos que por “similares ideologias” se entende que Alorna seria liberal no sentido em que Gomes Freire é considerado liberal.

Em minha opinião, Alorna não era uma coisa nem outra.

 

Um inabalável aristocrata

Curiosamente, a natureza aristocrática do marquês de Alorna não deixa de ser referida nas considerações daqueles investigadores quando abordam a natureza das suas ideias políticas. Vejamos como.

Durante o ano de 1802, com forte empenho do marquês e de sua irmã, Condessa de Oyenhausen, estava em gestação um projecto que visava promover a participação militante da nobreza na defesa de uma ordem conservadora, sob os nome de Clube dos Nobres ou Casas de Conversação.

Eis o que escreveu Oliveira Marques sobre o assunto:

Certas associações podem estar relacionadas com a Maçonaria e contribuir, até, para a sua difusão, muito embora se considerem antimaçónicas de raiz. Assim sucedeu, em começos do século XIX, com as chamadas Casas de Conversação, fundadas ou pelo menos intentadas pelo 3º Marquês de Alorna.

Mas, logo de seguida, dá-nos argumentos para concluirmos o contrário, transcrevendo parcialmente uma carta de Alorna para o Cardeal Patriarca, sobre essa embrionária organização:

o nosso intento é preservar a mocidade do desgarre desta seita e arrancar dela, por todos os meios possíveis o Marquês de Loulé, que se tem afastado de todos nós e que anda acompanhado de gente que ninguém conhece

Na mesma carta, mais à frente, acrescentava ainda Alorna:

É mais doloroso para toda a gente de bem, e muito principalmente para mim, que me criei na casa de Val de Rei, ver essa mesma casa, santuário da dignidade, de brio e amabilidade, trocada em loja de Fran Maçonaria[10] [11]

Só considerando que Alorna dissimulava, se pode conciliar a afirmação de Oliveira Marques com o conteúdo da carta que acima se transcreve.

Vai nesse sentido a opinião de Silva Dias, ao distinguir:

… políticos afrancesados dos radicais em movimento à sua esquerda. Os radicais eram, precisamente, os filósofos, alguns mações, os jacobinos e os oportunistas. Entre os seus mais altos expoentes figura o marquês de Alorna

acrescentando em nota, e referindo-se às Casas de Conversação,

não parecem de tomar a sério as aparências em contrário do incidente do outono de 1802. Fica de pé, sem dúvida, a tentativa de fundação de um clube que aglutinaria uma fracção da aristocracia de poder; os antecedentes e os consequentes do marquês retiram verosimilhança à sua alegação de que o fim seria contrariar as infiltrações da maçonaria nas fileiras jovens da linhagem aristocrática.

Ou seja, aceitando aquele ponto de vista, Alorna estaria a dissimular as suas verdadeiras inclinações, quando escrevia ao Cardeal sobre o “desgarre desta seita”.

Registem-se as contradições, olhando mais de perto o “incidente do outono de 1802. O Cardeal tinha recebido uma denúncia anónima de que o marquês de Alorna projectavaum plano para reunir em um só corpo parte da Nobreza e que para a tal sociedade era um título de exclusão o não ser da primeira Nobreza[12].

Mas, além da denúncia anónima, ainda houve outra feita ao ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, por José Ferrão de Mendonça e Souza, Prior dos Anjos, e, como é sabido, Maçon.

D. Rodrigo levou de imediato ao conhecimento do Príncipe a informação que lhe derao Prior dos Anjos sobre a Sociedade projectada pelo Marquês de Alorna”, alertando para o facto “de haver o Marquês ousado fazer uma sociedade sem o consentimento” do Príncipe e “permitir que o filho do infeliz e degradado Duque [de Aveiro] se intitule ainda Marquês”[13].

Que vemos assim no clube de nobres que o marquês desejava criar? Uma manobra de diversão com que pretendia esconder alegados sentimentos políticos progressistas? Ou uma iniciativa conservadora, exclusivista, visando o reforço do poder da Grande Nobreza, fortemente hostilizada pelo ministro Sousa Coutinho?

Não parece de aceitar a ideia da dissimulação.

Mas atente-se ainda no testemunho de dois outros documentos inéditos: os próprios estatutos ou projectos da organização do clube os quais estão em mãos de descendentes da família Alorna. Um desses documentos (incompleto) parece ter sido escrito pela mão do próprio marquês. E da sua leitura pode recolher-se entre outros os seguintes parágrafos que não deixam dúvidas sobre a natureza de tal iniciativa:

Uma das perplexidades em que se acha o Príncipe, e todos os Príncipes presentemente, na escolha de qualquer homem é se será seguro ou não. E nesta confraria que se junta para protestar contra as infidelidades do século e contra a decadência do pundonor, que forma uma espécie de contra-francomaçonaria, para resistir à onda que ataca o altar e os Tronos, se não achar grande habilidade em algum dos seus indivíduos, ao menos acha segurança, que na maior parte dos casos talvez seja mais importante que tudo

E noutro passo:

Pelo que pertence às seitas todos sabem quanto a Francomaçonaria trabalha, e que nem todos têm a astúcia que basta para resistir às seduções. O meio mais seguro não só de nos segurarmos cada um a si mas de nos fazer responder pelos outros é jurando uns aos outros:

Firmeza na nossa religião

Firmeza na nossa Fidelidade

Firmeza em não ceder à Francomaçonaria[14]

Do outro documento[15] ou estatuto, destaca-se, entre muitas outras no mesmo sentido, a seguinte passagem:

A aquisição dos Bispos deve ser feita, já porque nos importa que nos espíritos inquietos de muitos eclesiásticos não principiem a declamar e a propagar sofismas que malogrem o nosso zelo. Como sabemos que no corpo do Clero estão muitos franco mações, terão os bispos particular cuidado em excluir esses da admissão ao Corpo da Nobreza fiel

Este segundo documento enunciava ainda diversos “artigos de Juramento”, entre os quais os seguintes:

“Defender o Trono e a Religião”

“Defender e ajudar todo e qualquer Realista”

“Defender e ajudar ao restabelecimento do Rei legítimo em todos os Tronos da Europa”

“Não ser franco mação, e abjurar desta seita se entraram nela.

Mas outros argumentos que afastam a possibilidade de Alorna pertencer à Maçonaria surgem ainda de outro lado, e volto a citar Silva Dias a respeito da conspiração dos fidalgos ou de Mafra, em 1805/6, de que o marquês foi acusado de ser um dos mentores:

oportunidade procurada e desejada pelas franjas ideologicamente radicais da alta nobreza para se apossarem do poder à sombra do francesismo e, com o apoio da Espanha godoiana, bloquearem as reformas por que os intelectuais e a burguesia de esquerda ansiavam. De qualquer modo não se descobre na aventura o mais insignificante fio que a coordene com os mações ou as estruturas maçónicas[16]

Avançando no tempo, encontramos ainda outra ordem de argumentos para negar a pertença de Alorna à Maçonaria e adesão ao ideário atribuído a Gomes Freire.

Por um lado, verificamos que o nome de Alorna não consta dos que aderiram à Loja dos militares portugueses em Grenoble, fundada em 1808 ou 1809.

Por outro lado e um pouco mais tarde, quando se preparava a 3ª invasão em 1810, tendo Alorna aconselhando que um conjunto de nobres portugueses também acompanhasse Massena (para garantir a predominância da grande nobreza na situação que resultasse em Portugal do êxito daquela empresa), o núcleo de portugueses liberais que se encontrava então em Paris tentou impedi-lo. De facto, está documentado que Francisco Solano Constâncio denunciou à polícia secreta francesa esses “outrora tiranos de Portugal”[17], considerado-os inimigos dos portugueses constitucionalistas e assegurando que na primeira oportunidade e uma vez atingidos os seus objectivos se haviam de virar contra os franceses.

 

Conclusão

Em conclusão, Gomes Freire e Alorna eram sem dúvida amigos e nunca transpareceu qualquer rivalidade entre eles. É muito ténue a possibilidade de ter aderido à Maçonaria, enquanto são fortes os indícios que apontam em sentido contrário. Além disso, em política, porém, estavam em campos diferentes, ainda que, aparentemente, nunca se tenham hostilizado um ao outro.

 

Bibliografia

Boppe, Paul, 1897, La Legion Portugaise, (1807 – 1813), Paris: Berger-Levrault.

Norton, José, 2008, Memórias Políticas – Marquês de Alorna, Lisboa: Tribuna da História.

Oliveira Marques, A. H., 1990, História da Maçonaria em Portugal, V.I, Lisboa: Editorial Presença.

Pereira, Ângelo, 1958, D. João VI Príncipe e Rei – Últimos anos de um reinado tormentoso, Vol. IV, Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade.

Silbert, Albert, 1981, Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal oitocentista, Lisboa: Livros Horizonte, 3ª edição 1981, pp. 135.

Silva Dias, Graça e J, 1986, Os Primórdios da Maçonaria em Portugal, Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica.

Vicente, António Pedro, 1983, Manuscritos do Arquivo Histórico de Vincennes, referentes a Portugal, III (1807-1811), in Memórias e Documentos para a História Luso-Francesa XIV, Paris: Centro Cultural Português, Fundação Calouste Gulbenkian.

__________, 1995, Alorna e Gomes Freire, Propostas para uma reorganização militar no início do século XIX, Actas do VI Colóquio “Portugal na História Militar”.

 


[1]    Norton, 2008, 106.

[2]    Vicente, 1983, 213.

[3]    Processo individual de Gomes Freire – Cote 7 YD 474 – Archives Historiques de la Défense, Vincennes, Paris.

[4]    Oliveira Marques, 1990, 98.

[5]    Boppe, pp. 139 a 142.

[6]    Cx. 133, Casa Fronteira e Alorna, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

[7]    Vicente, 1995, 4.

[8]    Oliveira Marques, 1990, 418.

[9]    Silva Dias, 1986, 455.

[10]    Pereira, 1958, 19.

[11]    O título original dos marqueses de Loulé era o de condes de Val de Reis, família com que Alorna terá vivido parte da infância, na sequência do processo dos Távoras.

[12]    Pereira, 1958, 19.

[13]    Id., 20.

[14]    Arquivo particular dos Condes da Ribeira Grande.

[15]    Arquivo particular de Fernando Mascarenhas Cassiano Neves.

[16]    Silva Dias, 1986, 444.

[17]    Silbert, 1981, 135.

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