Nº 2605/2606 - Fevereiro/Março de 2019 - Número Temático
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Gomes Freire de Andrade: a Maçonaria e a conspiração de 1817

Manuel Pinto dos Santos

I.    Gomes Pereira Freire de Andrade, de nome completo Gomes José Joaquim António Francisco Xavier João Nepomuceno, nasceu em 27.01.1757, em Viena de Áustria, era filho do agente diplomático de Portugal junto da Corte de Viena, Ambrósio Freire Pereira de Andrade e Castro e da condessa austríaca Maria Anna Elisabeth von Schaffgotsch.

      Durante os primeiros 23 anos de idade, obteve a sua formação em Viena e em Praga (1770-71), embora uma das suas biografias mencione que frequentou três universidades alemãs, doutorando-se em Direito[1].

      Gomes Freire de Andrade foi armado cavaleiro professo da Ordem de Cristo, em Viena de Aústria, em 31.10.1780, e decorridos cerca de dois meses foi iniciado pedreiro-livre na loja Zur gekrönten Hoffnung (A Esperança Coroada), em Viena de Áustria. O seu nome surgiria no quadro da loja de 1781, onde tinha o nº 20, mencionando já a qualidade de Cavaleiro.

      Em 05.12.1780, sai de Viena com destino a Portugal, onde chegou em fevereiro de 1781; entrou, em 19.02.1782, para a carreira militar, na qual lutou sob várias bandeiras.

      Entretanto, a Loja Wohlthätigkeit (A Beneficência) veio a fundir-se, em 1785, com a loja Zur gekrönten Hoffnung (A Esperança Coroada), dando lugar, logo nesse mesmo ano, à nova loja Zur neugekrönten Hoffnung (A Esperança novamente coroada). O nome de Gomes Freire de Andrade foi transferido para esta nova loja e no seu quadro de 1790 permanece como “ausente”, embora o seu estatuto passasse a ser o de “oficial português e Comendador da Ordem de Cristo”.

      Durante o trajeto para Portugal, filiou-se em França na loja maçónica La Bienfaissance, de Lyon, onde figura no quadro de 1782, como conde Gomes Freire, comendador da Ordem de Cristo, residente em Lisboa, com o grau de Mestre Escocês. Permanece, pelo menos, até 1791.

      Gomes Freire figurava no quadro da loja de Viena com o grau de “Meister”, em 1781, e no de Lyon, em 1782, com o grau de “Maître Écossais”, o qual manterá em Lyon, até 1790, pelo menos. Sabendo-se que no quadro de 1786, a Loja La Bienfaisance, a oriente de Lyon, se encontrava “reunida no regime rectificado” – rito crístico por excelência, cavaleiresco e templário –, o grau de “Maitre Écossais”, ou mestre escocês de Santo André, parece significar que o seu detentor era titular do último grau simbólico do rito escocês retificado, rito que se coadunava com o facto de ser Cavaleiro da Ordem de Cristo.

      Apesar de se encontrar com o estatuto de “ausente”, tanto da loja de Viena de Áustria como na de Lyon, Gomes Freire de Andrade, quando chega a Portugal, em fevereiro de 1781, não parece que se tenha ligado a qualquer loja maçónica nacional.

      O nome de Gomes Freire surge mencionado, pela primeira vez, pelos historiógrafos da maçonaria, ligado a esta em 1801, quando, estando a assistir militarmente na Guerra das Laranjas, houve uma reunião de mais de “200 Irmãos em Dieta geral, no palácio do Calvário, pertencente ao Irmão Gomes Freire de Andrade, a esse tempo ausente”[2], reunião que parece ter tido como objetivo tomarem-se os passos necessários à estruturação da Maçonaria Portuguesa, com a posterior criação de uma Grand Lodge of Portugal, em 1802, pela via inglesa, proporcionada pelo Duque de Sussex.

      A amizade de Gomes Freire com o Duque de Sussex (Augustus Frederick), filho do rei de Inglaterra, George III, iniciado maçon na Loja Verdade Vitoriosa, em Berlim, em 20.12.1798, e futuro Grão-Mestre da United Grand Lodge of England, parece que fez com que as simpatias maçónicas do primeiro tombassem para o lado britânico, com prejuízo da França. E o facto de Gomes Freire integrar mais tarde os exércitos franceses, não significa a sua adesão à maçonaria francesa como é divulgado; pelo contrário, quando foi interrogado pela polícia, Gomes Freire declarou que fazia parte da Grande Loja de Inglaterra.

      A fonte a que normalmente se recorre – Miguel António Dias, 1853 – refere que, em 1804, Gomes Freire fez parte da Grande Loja, sendo indicado como base desta informação, o testemunho de José Liberato Freire de Carvalho que, com 81 anos de idade, a teria prestado; mas nem o próprio, nas suas Memórias de 1864, o refere, nem Rodrigo Felner, 1845, menciona tal facto, nem existe qualquer testemunho coetâneo que corrobore a afirmação de Miguel Dias. Trata-se de uma citação meramente panegírica sobre Gomes Freire que não tem suporte real, mas que terá entrado na construção do mito pessoal.

      Permanece assim como incógnita o momento em que Gomes Freire de Andrade se ligou ao Grande Oriente de Portugal (1804-1806), ou ao Grande Oriente Lusitano (após 1806).

      Aparentemente, Gomes Freire de Andrade pertenceu à Loja Regeneração nº 500[3], em Lisboa, da qual – segundo elementos posteriores – terá sido venerável mestre, em 1807.

      Devido à situação política de Portugal derivada das invasões francesas napoleónicas, Gomes Freire foi nomeado, por Junot, 2º Comandante da Legião Portuguesa em França.

      A ausência no estrangeiro em tarefas militares não o fez esquecer a sua condição de maçon: fez parte de uma loja militar portuguesa – Chevaliers de la Croix – (Cavaleiros da Cruz) da legião portuguesa – integrada na obediência do Grande Oriente Lusitano[4], e instalada em Grenoble, da qual Gomes Freire foi venerável mestre.

      O título da loja salienta uma opção nitidamente cavaleiresca, com o espírito de cruzada, e cristã. O quadro desta loja militar vem contemplado nos seus estatutos, sendo que na dita conspiração de 1817 vieram à tona dois dos nomes, embora sem fundamento: Tomás José Xavier de Lima Vasconcelos Brito Nogueira Teles da Silva (2º marquês de Ponte de Lima), como suspeito de ser um dos elementos do Conselho Regenerador, e de José de Vasconcelos e Sá, amigo e visita frequente da casa de Gomes Freire de Andrade.

      Depois de ter sido detido em Dresden, em finais de 1813, e levado como prisioneiro de guerra para Tyrnau (Hungria), ao terminar o consulado napoleónico, regressou a Paris, em 05.06.1814, onde manifestou o desejo de retornar a Portugal.

      Gomes Freire de Andrade saiu de Paris em direção à Inglaterra, e em Londres tomou um barco com destino a Lisboa, onde chegou a Lisboa, em 25.05.1815.

      Na capital lusa não é reintegrado no exército português, embora seja determinado que se lhe pague o soldo de tenente general, o que só foi conseguido após um processo judicial de reabilitação que o considerou “livre de toda e qualquer mácula”[5].

      Se o povo, na sua generalidade, não gostava dos Governadores do Reino, regentes em nome do príncipe e depois rei D. João VI, o seu desgosto e “desafeição” incidia sobre a pessoa do Marechal William Carr Beresford, comandante chefe dos exércitos portugueses, como informava um relatório da polícia de 29.03.1817.

      Entretanto, o que se passava com Gomes Freire de Andrade e a maçonaria? Não se sabe ao certo, mas é admissível que tenha regressado, em 1815, ao quadro da sua loja-mãe, a Regeneração nº 500, cujo quadro de associados, por volta de 1817, não revela a presença de quaisquer nomes que mais tarde foram dados a conhecer como envolvidos na conspiração de 1817.

      Seria nos finais do ano de 1815, em data que se ignora, que, em resultado de reuniões do Grande Oriente Lusitano, Gomes Freire foi “nomeado” ou “elevado” Grão-mestre, tendo José Liberato Freire de Carvalho testemunhado pessoalmente a eleição, ou a posse de Gomes Freire, esta já nos inícios de 1816.

      Mas outros autores afirmam que, à data da “nomeação” para Grão-mestre, Gomes Freire era venerável da loja Virtude, o que parece muito pouco verosímil, dado que se diz que dois dos três denunciantes da conspiração de 1817 pertenciam a essa loja, o que, a ser verdade, significaria uma total falta de respeito, e um traiçoeiro comportamento maçónico contra o próprio venerável e Grão-mestre.

      A informação dos “traidores” que foi adotada pela historiografia maçónica portuguesa baseia-se numa informação da polícia secreta[6], datada de 26.08.1824 – sete anos após os factos –, sendo, contudo, inexistentes quaisquer elementos respeitantes à maçonaria sobre José de Andrade Corvo de Camões, Pedro Pinto de Morais Sarmento, e o bacharel João de Sá Pereira Ferreira Soares, bem como a viscondessa de Juromenha. Aliás, não há qualquer menção destas personagens, nem antes nem nos sete anos subsequentes a 1817, nem nenhum dos visados se reconheceu como alguma vez tivessem pertencido à maçonaria, em diversas cartas escritas pelos próprios.

      De resto, não existe qualquer manifestação por parte dos maçons quanto aos “traidores”, pretensos ditos obreiros das lojas Virtude e Filantropia, o que é deveras estranho, pois era hábito a maçonaria registar o nome daqueles que a traíssem, numa “coluna da infâmia”, como o fizera, quando houve a denúncia de maçons, em 1809, por um deles.

      Aparentemente, a notícia que é fornecida pela polícia secreta, em 1824, é mais um boato – como era regra ser criado na época miguelista, para tentar desestabilizar e criar receios e temores no seio da própria maçonaria, e entre os próprios maçons, devendo ser considerados falsos os factos aí referidos. Acresce que nenhum dos três nomes dos pretensos maçons traidores foi apontado como maçon na lista da Intendência Geral da Polícia, publicada em 1823.

 

II.   Entretanto, a situação da maçonaria não era a melhor, quer no âmbito nacional quer nalguns países europeus: em Roma, o Papa Pio VII lança, em 15.08.1814, um decreto contra os maçons, extinguindo-se praticamente a maçonaria em Itália; na vizinha Espanha, por decreto de 24.05.1814, o rei Fernando VII proibiu as “associações clandestinas”, incluindo-se nestas as lojas maçónicas, a quem imputava a responsabilidade pelos movimentos liberais.

      Em Portugal, o próprio Grande Oriente Lusitano, por volta de 1815, mostrava “temer a incrível prostituição a que tinha chegado a moral de alguns maçons, que por indiscrição, ou venalidade, rompiam o segredo divulgavam os nossos trabalhos; e até mesmo delatavam aqueles que ocupavam os grandes empregos da Ordem, de tal modo que o Governo profano estava sempre em dia no conhecimento dos nossos nomes e tarefas”[7].

      Mas, segundo uma fonte, depois da Grande Dieta de 1815, o Grande Oriente Lusitano “entabulou Tratados de Aliança com os Grandes Orientes de Inglaterra e da Suécia …; aniquilou uma loja monstruosa que se havia erigido… com o título Leais Portugueses…aniquilou os cismas que os Irmãos Washington e Aristides tinham suscitado na Respeitável loja Amizade, … aboliu o infame e desastroso sistema das iniciações por comissão espalhado por todo o território português…”[8]. Destes factos não há notícia, uma vez que não sobreviveu qualquer documentação direta que os comprove; existem, contudo, citações sobre os mesmos que não permitem identificar se a sua concretização foi executada sob o malhete do Grão-mestre Gomes Freire de Andrade.

      Um testemunho contemporâneo de quem nunca pertenceu à maçonaria[9], comenta, sem qualquer fonte, que, na época, a fação ou partido constitucional, essencialmente lisboeta, se tinha “transformado em sociedades secretas, e teve um aumento imenso quando o exército português vitorioso, voltou de França em 1814”.

      Alguma historiografia – Graça e J. Silva Dias, 1986 – aceita este testemunho como válido, tirando daí a ilação de que as lojas eram laboratórios de ideias onde germinou um liberalismo de origem maçónica.

      Mas o raciocínio é contraditado, pelo que se constata documentalmente: as únicas lojas maçónicas que existiam em Lisboa, em 1814, eram a Loja Virtude e a Loja Regeneração, que possuíam poucos obreiros, dado que ainda estava presente na memória dos lisboetas as perseguições que o poder dos governadores do reino tinha exercido sobre os maçons, principalmente em 1809, e na Setembrizada de 1810.

      Diz-se que sob o malhete de Gomes Freire e prosseguindo a fase de crescimento, foram instaladas novas lojas, em Lagos e, eventualmente, em Peniche e Lisboa.

      Contudo, se estas são as lojas possíveis de identificar com algum provável grau de atividade em 1817, isso não significa que outras não possam ter existido; mas, a terem existido, parece muito normal que as mesmas seriam detetadas pela Intendência Geral da Polícia; não se verifica, porém, qualquer menção da sua presença, quer nos relatórios policiais quer nas Contas da polícia para a Secretaria.

      Mas, no dia seguinte ao da entrega da documentação sobre a conspiração por Beresford a Miguel Pereira Forjaz – 19 de maio –, uma das primeiras reações do Governo foi exatamente emitir uma “Portaria ao Intendente Geral da Polícia recomendando-lhe a maior vigilância sobre as Sociedades, ajuntamentos clandestinos e conferências secretas… procedendo com a severidade das Leis contra os Indivíduos que forem compreendidos[10].

      Ora, não existem neste preciso período de 1817 prisões ou relatórios de relevo sobre os maçons.

      Pensar que os Governadores do Reino não concediam importância a semelhante assunto, é querer ignorar a preocupação constante que os ditos regentes tinham com os maçons, particularmente o Principal Sousa e Miguel Pereira Forjaz, que, já com as deportações da Setembrizada de 1810, tinham manifestado de forma exagerada o seu receio por movimentos ou suas tentativas de manifestações, por parte dos maçons, que identificavam como jacobinos.

      Nesse sentido, há que interpretar o ofício de 11.01.1817 dos Governadores do Reino ao Intendente Geral da Polícia para que investigasse uma memória do marechal Beresford, na qual era denunciada a putativa existência de uma conspiração liberal organizada entre as sociedades secretas de Espanha e Portugal, com o fim de substituir as dinastias e promulgarem uma constituição, na sequência de uma notícia publicada no Correio Braziliense, ou a denúncia de 01.03.1817, feita por Serafim António Gomes à Polícia.

      Enquanto certa historiografia identifica o movimento conspirativo de 1817 com a maçonaria e os jacobinos – José Agostinho de Macedo, António Sardinha, António Rodrigues Cavalheiro, Ramos Ascensão, Barbosa Colen – outros, mais recentemente – Silva Dias –, procuram continuar a querer imputar-lhe a responsabilidade indireta não ao nível da autoria da conjura, mas apenas na metodologia seguida – a “estrutura de apoio”, como é referida –, obtida através da documentação apreendida.

 

III.   Sob ponto de vista institucional, há que perceber até que ponto interveio o Grande Oriente Lusitano na preparação da conspiração, coisa que é radicalmente diferente da participação de maçons ou de simples cidadãos nessa conjura.

      Gomes Freire, quando foi interrogado na fase de inquérito, informou que ele era maçon, mas que os principais membros dessa organização se encontravam no Brasil.

      Nenhum dos desembargadores que o interrogou mostrou interesse – pelos menos não ficou registado – em obter mais informações, quer sobre o Grande Oriente Lusitano quer sobre as lojas maçónicas que existiriam, quer ainda sobre os maçons, quem eram, se estariam implicados na dita conspiração, se possuíam espírito de revolta ou de oposição ao governo e a Beresford, se o assunto era discutido nas lojas, etc.

      E idêntico comportamento é assumido durante o interrogatório dos restantes réus. Tal omissão só permite concluir que era irrelevante para os fins judiciais, que os conspiradores pertencessem ou não, à maçonaria, e que a condição de maçon, não tinha qualquer conexão com o facto de ser admitido na sociedade conspirativa, o que, aliás, se prova pela consulta das perguntas que se fazem ao admitendo.

      Todo este silêncio em torno da questão da maçonaria é surpreendente, quando se sabe que, nos inícios de março desse ano, tinha sido eliminada a revolta do Pernambuco de 1817, na qual cinco dos chefes do movimento eram maçons, que acabaram todos por ser fuzilados ou enforcados.

      Há, nesta altura, um aproveitamento político por parte de alguns dos Governadores do Reino que, na ocasião, lançaram dardos envenenados contra a maçonaria, imputando, sem qualquer fundamento, uma ligação dos conspiradores à maçonaria. Um deles era D. José António de Meneses e Sousa Coutinho (?.02.1757-01.10.1817), o Principal Sousa da Igreja Patriarcal de Lisboa, da poderosa família dos Sousa Coutinho, que tinha como irmão D. Domingos António de Sousa Coutinho, embaixador de Portugal em Londres. Escrevia o primeiro a D. João VI, em 07.07.1817, sobre a conspiração e as sociedades secretas: “É, pois, em tais lojas [de pedreiros-livres] onde existe o foco revolucionário, e todo o Estado que quiser viver sossegado, é preciso que não os deixe reinar, nem empregar em serviço algum, único modo de acabar com tão terrível seita, a cujos princípios, sistema e método de se comunicarem se deve atribuir esta terrível maquinação. Quanto, Augusto Senhor, seria útil que houvesse uma lei que proibisse esta associação no reino!”[11]. Mas, no mês anterior, em 01.06.1817, limitava-se a escrever para a mesma real pessoa, após terem sido realizadas as prisões dos conjurados, que “por ora, nos reconhecidos [conspiradores] se não vê pessoa que possa merecer atenção, à exceção de abocanhar o Povo todos aqueles que estiveram em França, ou que foram na Fragata, tanto nobres, como das outras classes”[12], referindo-se aos que foram na Legião Portuguesa e aos Setembrizados.

      A sentença do processo da conspiração de 1817 não fala uma única vez no Grande Oriente Lusitano, nem nas lojas maçónicas, mas tão só que alguns pertenciam à maçonaria. Talvez isso se justifique, pelo conhecimento por parte dos magistrados de que esta Obediência se encontrava acéfala, sem qualquer controle sobre as lojas que existiam, tendo cada loja praticamente um poder individualizado, o que significa que cada loja operava como uma célula autónoma.

      Tendo assumido o cargo de Grão-mestre, em 1816, não há notícias concretas que Gomes Freire de Andrade tenha alterado esta situação, continuando as lojas do Grande Oriente Lusitano sem qualquer direção central.

      Uma vez que a Polícia e o Tribunal da Inconfidência não concederam qualquer importância à maçonaria de então, constata-se que os intérpretes da história fizeram dos factos interpretações tendenciosas de base ideológica, que os dados não toleram.

      Quanto à responsabilidade indireta atribuída à maçonaria por causa da metodologia seguida na preparação da dita conspiração, dir-se-á que ela poderá ser mais notória no plano formal do que no campo do conteúdo.

      Efetivamente, é através da documentação apreendida que alguns autores consideram que os escritos revelam características maçónicas, sendo visível a utilização da cifra, o método de recrutamento e da admissão com juramento, esta última de alguma forma ritualizada, etc.

      O argumento é deveras insuficiente para se pretender fazer tal conexão, pois o que se verifica da análise de toda esta documentação é que José Ribeiro Pinto, o principal mentor dessa trama “conspirativa”, pouco mais fez do que seguir grosso modo, o que o seu primo José Máximo Pinto da Fonseca Rangel tinha escrito nove anos antes[13], cujo modelo foi seguido na sua generalidade. Indubitavelmente, o modelo seguido pelo Supremo conselho Regenerador de 1817 bebe, não na maçonaria, mas no modelo do Conselho Conservador de Lisboa de 1808, embora este possua algumas características que se podem tipificar como para-maçónicas. Esclareça-se que a autoria deste sistema de recrutamento, criado em 1808, é devida a António Coutinho Pereira de Seabra e Silva, 1º tenente de Infantaria, que, em 1807, era membro da loja maçónica Concórdia, em Lisboa.

      Mas são inexistentes as concretas referências às intervenções de lojas maçónicas, ou do próprio Grande Oriente Lusitano, não bastando as questões formais, v.g. cifra, juramento, etc., para se atribuir à maçonaria alguma responsabilidade ou coresponsabilidade na preparação da conspiração.

 

IV.  Um dos elementos mais importantes neste movimento “conspirativo” é o facto do recrutamento dos seus membros não ser tendencialmente universal, insistindo-se nas Instruções para que o recrutamento dos “Associados que deves recomendar, sejam quantos mais militares melhor”. Tal facto salienta que o objeto principal da conspiração era, primariamente, um golpe militar e, secundariamente, civil. E isso torna-se evidente nos poucos indivíduos que tinham sido recrutados até 25.05.1817, maioritariamente militares ou ex-militares.

      Mas quem participou e foi preso à ordem do processo de devassa que investigou a conjura de 1817? Teria esta sido efetivamente obra de maçons? Ou a maioria dos indivíduos detidos nem sequer eram iniciados na ordem maçónica?

      Do processo só consta uma denúncia sobre reuniões suspeitas, feita por Beresford, no dia 25.05.1817, no dia anterior ao das prisões efetuadas durante a madrugada de 26, enviada a Miguel Pereira Forjaz, informando-o que “houve muitas assembleias na casa do capitão-mor de Alhandra”[14], João Carlos Palmeiro, então venerável da loja Amizade. Mas daí a que a polícia tomasse diligências práticas contra os maçons, contra as lojas, no geral, nada se deteta, exceto a detenção no caso de Palmeiro, o qual seria posteriormente libertado, sem sequer lhe ter sido deduzida qualquer acusação como conspirador, tal como ocorreu com José Dionísio da Serra (Lisboa, 09.10.1772-Lisboa, 14.07.1836), capitão de engenheiros, um dos implicados no movimento da Setembrizada de 1810 e maçon.

      Até os autores manifestamente antimaçónicos, que receberam a encomenda da defesa da existência da conspiração, como parece ter sido o caso do Frei Mateus de Assunção Brandão, ultra-absolutista, numa obra sua[15], não atribuem, em primeiro lugar, as culpas aos maçons, ao declarar que “não considerarei, pois, a Seita dos Pedreiros-Livres, ou Franc-Maçons, como única, e primária causa desta presente Conspiração: porque se não houvesse outra causa além desta, …. seria muito maior, do que na realidade foi, o número dos Réus conspiradores”.

      Não se concede, portanto, grande importância aos maçons neste movimento conspirativo, nem mesmo pelos seus habituais detratores na época.

      Dos condenados, quem pertencia à maçonaria era, em primeiro lugar, Gomes Freire de Andrade, que “não conhecia a existência da Sociedade da Conjuração, não obstante ser Maçon, ou Pedreiro Livre…”; depois dos executados, em Lisboa, no Campo de Santana, temos os seguintes maçons: por auto confissão, José Ribeiro Pinto que “suspeitava ser a causa da sua prisão a Sociedade de maçon, em que entrara, e a outra da sublevação”[16]; José Francisco das Neves, que tinha o nº 92 como membro do Conselho Conservador de Lisboa, em 1808; Maximiano Dias Ribeiro, que menciona no seu depoimento ter prestado juramento numa sociedade em que entrou, a que pertencia o seu amigo coronel Monteiro, oferecendo 19.200 réis para a dita sociedade, que pensava ser maçónica, mas que não chegou a entregar, ignorando-se a que loja pertencessem estes últimos quatro; e Christian Adolph Friedrich, Barão de Eben.

      Resumindo, em 18 réus, apenas oito são conhecidos como maçons, dos quais dois foram libertados, e de quatro ignoram-se as lojas a que pertenciam; dos condenados, com a certeza absoluta de serem maçons, apenas Gomes Freire de Andrade e o Barão de Eben.

      Embora admitindo hipoteticamente que todas estas oito personagens fossem maçons, há que perguntar qual a influência tiveram estes maçons e suas lojas na preparação da conjura. A resposta é nenhuma, pois o que sobressai da devassa efetuada individualmente a estas personagens, é a sua comum qualidade de militar ou ex-militar.

V.   A propósito dos contactos de Gomes Freire com o brigadeiro Francisco Javier de Cabanes y de Escofet, os historiadores procuraram apresentar Cabanes como um liberal e provável maçon. Quanto a este último atributo, não se descortina – nem há prova alguma – de que Cabanes estivesse de alguma forma ligado à sobrevivente maçonaria espanhola, uma vez que, sendo tantas as perseguições aos maçons patrocinadas por Fernando VII, dificilmente ele incumbiria um maçon de trabalhar para si, em qualquer empreendimento, e em particular na espionagem.

 

VI.  A permanência ao longo da história da ideia de que a maçonaria ou os maçons estiveram implicados no movimento conspirativo de 1817 tem de ser compreendida.

      O pensamento da regência de que vivia sob a ameaça de uma conspiração era uma constante, como se pode deduzir dos relatórios da Intendência Geral da Polícia, na sua atividade de vigilância sobre os súbditos do príncipe regente, depois rei, ausente no Brasil. Os exemplos sobre os maçons com as perseguições de 1809, e com a Setembrizada de 1810, geraram nos portugueses sentimentos ambivalentes, por um lado, de medo, mas por outro, o desejo da mudança.

      No que respeita ao fantasma conspirativo que assombrava os Governadores do Reino, surge, em 15.02.1817, meses antes da “conspiração de Gomes Freire”, um relatório da Polícia Secreta sobre a Duquesa de Cadaval e seus filhos, regressados do Brasil a Lisboa, em 04.11.1816, família que – ainda não se falava da conspiração –, já era considerada uma potencial candidata à substituição da casa reinante dos Bragança[17].

      Como se manifesta então a ideia da imputação da conspiração à maçonaria? Terão sido provavelmente as cartas escritas pelo Principal Sousa, um dos governadores da regência, dirigidas a D. João VI, que despoletaram semelhante ideia.

      Principal Sousa chama a atenção do monarca para o facto de que “este rastilho (conjura) ainda é o refugo da revolução que existe por toda a Europa: em Suécia, Dinamarca, Londres, França e também tem chegado à América; há partidistas ocultos, os quais laborando nas Sociedades ocultas, chamam a si os descontentes e ambiciosos, os quais reunidos aos malévolos, intentam subverter os Estados para se aproveitarem do poder e interesses que desejam conseguir”[18]; e, no mês seguinte, com o conhecimento das investigações policiais, escreve que à exceção dos três apontados [Gomes Freire, Barão de Eben e Monteiro de Carvalho], nos mais (implicados) parece impossível que houvesse tal arrojo, sem haver instigação e associação poderosa oculta…”[19].

      As afirmações feitas não passavam de meras conjeturas, pois não se apontavam em concreto, nem atos nem indivíduos que pudessem ser imputados aos maçons e à maçonaria.

      Frei Mateus de Assunção Brandão, identificava-se com este pensamento e, como se viu, escreveu que atribuía a responsabilidade, primeiro, às paixões pessoais dos atores históricos, e, em segundo lugar, “aos escritos, exemplos, e esforços dos Pedreiros-Livres”.

      Posteriormente, em 1823, surgiria outro grande mentor do anti-maçonismo português – José Agostinho de Macedo, escrevendo que “aparece em 1817 … uma Conspiração contra o Governo estabelecido, os Pedreiros Livres se confessam seus autores neste Manifesto”[20], quando o conteúdo da obra não permite retirar tal conclusão.

 

VII  A notícia da conspiração foi amplamente divulgada em Inglaterra pelo jornal Times. Mas não só. No The Gentleman´s Magazine, de Silvanus Urban, podia ler-se no número de novembro de 1817, uma sucinta notícia sobre a conspiração contra o governo e o Estado, concluindo-se que “o objetivo dos conspiradores era derrubar influência inglesa, matar o Marechal Beresford e instalar um governo revolucionário”.

      Nem uma palavra sobre Gomes Freire de Andrade ser o Grão-mestre, nem qualquer referência à responsabilidade da maçonaria ou das lojas na dita conjura.

      Apesar de haver poucas referências à maçonaria durante esse processo de “conspiração”, chefiada em 1817, por Gomes Freire de Andrade, o facto é que não pode ser considerada mera coincidência o anúncio da edição de duas obras antimaçónicas, no próprio dia 18 de outubro de 1817, dia do enforcamento dos conjurados: A Atalaia contra os Pedreiros Livres e Nova Sentinella contra Massoes. O anúncio saiu na folha oficial do Governo, a Gazeta de Lisboa, nº 247, do próprio dia 18 de outubro. Era o início de um novo ataque contra a maçonaria.

 

Conclusões:

1. As teses que dão a maçonaria como responsável ou corresponsável pela conspiração de 1817 não se fundamentam em factos concretos históricos, mas apenas em especulações de conteúdo estritamente político-ideológicas, antiliberais e antimaçónicas, que se mantiveram até à atualidade;

2. Não há qualquer base documental, testemunhal, ou outra, que permita asseverar a existência de interesses específicos da maçonaria em geral, do Grande Oriente Lusitano, das lojas ou de maçons nos atos preparatórios e executivos da conspiração de 1817, sendo apenas referidos como maçons, com certeza histórica, Gomes Feire de Andrade e o Barão de Eben;

3. Qualquer um destes mantinha relações próximas com o Duque de Sussex, Grão-mestre da United Grand Lodge of England, sendo abstrusa a ideia de que Gomes Freire de Andrade fosse maçon defensor das ideias maçónicas revolucionárias e jacobinas.

4. A libertação pelo próprio magistrado instrutor de dois maçons presos como suspeitos da conspiração, antes de ser deduzido qualquer despacho de acusação no processo de devassa, demonstra que, para as autoridades policiais e judiciais, tais maçons não estavam implicados na trama conspiratória;

5. Sendo a ideia da liberdade identificada com as novas correntes de pensamento geradas pelo iluminismo, a igreja portuguesa tomou-a como um ataque ao “altar e ao trono”, levando os Governadores do reino a encetar uma cruzada no sentido de apresentar junto de D. João VI, a maçonaria como a grande responsável pelo aparecimento de liberdades atentatória do status quo, apresentando relatórios nesse sentido da autoria do Principal Sousa, que, complementados com pareceres de juristas no Brasil, forçaram o Rei a uma posição legislativa contra a maçonaria, materializada pelo Decreto proibitivo das associações secretas de 1818;

6. O poder dos Governadores do reino cultivou a ideia de que havia uma conspiração montada entre maçons de Portugal e Espanha, através do Brigadeiro Cabanes e Gomes Freire, ideia que não passou de uma artimanha de que se serviu Miguel Pereira Forjaz para imputar à maçonaria a autoria moral da conspiração de 1817, não havendo provas históricas de que alguma vez tivesse existido tal plano;

7. O movimento independentista do Pernambuco, em maio de 1817, pode ter influído de alguma forma na tomada de posição de D. João VI, embora tal não tivesse qualquer relação com a maçonaria do Grande Oriente Lusitano;

8. No processo que é movido contra os conjurados nunca houve a acusação – por parte do marechal Beresford, ou dos magistrados –, de que a conspiração tenha sido planificada pela maçonaria ou por maçons.

 

Bibliografia

Abstract of Principal Foreign Occurrences. The Genteleman´s Magazine by Silvanus Urban, November 1817. London. 457.

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Ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça 1687/1918. Negócios de Justiça 1821/1910. Série43. Conspiração de Gomes Freire de Andrade 1817/1822. Sentença e mais papéis sobre os réus que conceberam a detestável e horroroso desígnio de suscitar uma sublevação, para o fim de mudar o governo estabelecido pelo legítimo soberano [...] D. João VI, intentando substituir-lhe outro revolucionário com o fingido título de conselho regenerador. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Lisboa.

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[1]    Jornal Minerva, Ein Journal historischen, und politischen Inhalts, Zweiter Band, Für das Jahr 1819, Jena, 1819. abril. maio. junho.191.

[2]    Dias. 1853. 32, tal como Felner. 1845, já o tinha indicado. Freitas. 1861 (7ª memória). 36, copia os anteriores, assim como Grainha. 1912. 54.

[3]    A numeração é do quadro que lhe foi atribuída em 1815. Não se confunda com a Loja Regeneração, instalada em 1820, que foi parte no Manifesto do Grande Oriente Lusitano contra a Loja Regeneração, publicado em 1821, e dado a conhecer ao grande público, por intermédio de José Agostinho de Macedo, em 1823 e 1829.

[4]    Estatutos… 1809.

[5]    Acórdão da Relação de Lisboa de 03.06.1815. Boletim do Arquivo Histórico Militar, 12º vol. 1942. Vila Nova de Famalicão. 1942.153-157.

[6]    Gouveia, 1835.183-184.

[7]    Manifesto, 1823. 13.

[8]    Manifesto, 1823. 14.

[9]    Araújo, 1846. 5-6.

[10]    Livro 4º da Polícia, fls. 32, citado em Ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça 1687/1918. Negócios de Justiça 1821/1910. Série43. Conspiração de Gomes Freire de Andrade 1817/1822. Sentença e mais papéis…. ANTT. Lisboa

[11]    Pereira, 1958. 90.

[12]    Pereira, 1958. 88.

[13]    Rangel, [1808].

[14]    Soriano, 3ª época. Tomo VI. 1887.163.

[15]    Brandão, 1818. 2-3.

[16]    Brandão, 1914. 225.

[17]    Pereira, 1958. 144-145.

[18]    Carta de 01.06.1817, in Pereira, 1958. 88.

[19]    Carta de 07.07.1817, in Pereira, 1958. 88. 90.

[20]    Macedo, 1829. 6.

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