* Pode dizer-se que iniciámos o ano de 2019 numa conjuntura estratégica marcada pela incerteza e pela prevalência de comportamentos que podem influenciar decisivamente a estabilidade e a paz mundial.
Assistimos à postura estratégica, cada vez mais interventiva da Rússia e da China, a par de uma política externa dos Estados Unidos da América (EUA) marcada pela imprevisibilidade de Trump e a sua disponibilidade para denunciar acordos anteriormente firmados, para a crítica fácil aos aliados e, ainda, periodicamente levantar dúvidas, quer quanto à solidariedade transatlântica quer mesmo quanto ao papel e interesse da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) nesse domínio.
Na Europa, mantém-se o diferendo entre a Rússia e a Ucrânia e as consequências da situação na Crimeia, quer no processo de sanções económicas em vigor quer na evidência das diversas reacções europeias a esse propósito; também a atitude da Turquia relativamente aos Curdos na Síria e às suas ideias quanto à criação de uma zona tampão no norte daquele país, bem como a sua predisposição para ir mais longe, assumindo uma evidente anexação de território, invocando razões de segurança.
A situação europeia continua marcada também por uma incerteza quanto à forma como se irá concretizar o BREXIT, com um crescimento económico residual e com os efeitos de uma crise económica e financeira que tarda a dissipar-se, a par das interrogações que se colocam relativamente às eleições europeias, decorrente do crescimento do populismo nos partidos europeus e qual será a configuração final do Parlamento Europeu por esse facto e em função da redução de lugares de 751 para 705, pela saída do Reino Unido. Ainda no domínio económico, os EUA continuam uma fase de contínuo crescimento, assiste-se a uma desaceleração por parte da China e a Índia, a entrar para o grupo dos dez países com maior crescimento económico, com 7,6%.
Também a actual situação na Síria, fruto de um maior controlo da situação no terreno por parte das forças governamentais, e continuado envolvimento da Rússia, com as declarações americanas de retirada daquele país e às intenções já mencionadas por parte da Turquia, que não são de molde a favorecer a estabilidade e a paz na região. Igualmente, a turbulência no Médio Oriente, envolvendo a Palestina, o Irão e Israel, incluindo a questão do acesso à capacidade nuclear, merecem atenção e preocupação.
Neste último domínio, se, por um lado, são legítimas as expectativas relativas ao entendimento entre as duas Coreias e à desnuclearização da Península, assiste-se, por outro, à posição de Trump de denúncia do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio de 1987 (INF); situação que poderá colocar também em causa o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START), assinado em 2010, e que deverá ser revisto em 2021, eliminando-se, pela primeira vez, desde 1972, os limites aos arsenais nucleares, abrindo caminho a uma nova corrida armamentista, neste domínio.
Não devem também ser ignoradas as tensões nos mares do sul da China, quer pelas reivindicações territoriais relativas a diversas ilhas, designadamente o caso das ilhas Paracel e Spratly e demais ilhotas e à militarização de algumas delas pela parte chinesa, quer pela relação sempre difícil, que repetidamente vem a público, entre a China e Taiwan, a discussão sobre as virtualidades de “um país, dois sistemas” e o desejo de uma afirmação cada vez mais autónoma por parte do segundo, situação declarada inaceitável para o primeiro, tudo isto perante uma nova e clara intenção de investimento e aumento da capacidade militar, assumida pelo Japão.
Este é o ano do 70º aniversário da OTAN, prevendo-se que neste mês de abril, em Washington, seja consagrado o seu estatuto de um percurso estratégico de sucesso, de vencedora da Guerra Fria, embora Trump, com a imprevisibilidade das suas declarações, possa sempre estragar a festa. Na actualidade, a Aliança confronta-se com as críticas à sua postura estratégica por parte dos países membros com fortes correntes populistas; com a diversidade de percepção da ameaça, em que os países membros do norte a configuram na Rússia e os do sul que enfatizam as preocupações ligadas à imigração ilegal e a instabilidade na margem sul da bacia do Mediterrâneo; com a Turquia a desenvolver acções militares de sua iniciativa e com especiais relações com a Rússia; e, também, não menos importante, o debate com os EUA sobre os gastos e investimentos na defesa, designadamente o objectivo dos 2% e o desagrado pelo apoio europeu à manutenção do acordo sobre o nuclear com o Irão.
Cabe naturalmente a questão acerca de como se poderá desenvolver o conceito europeu da Cooperação Estruturada Permanente (PESCO) neste quadro político-militar e uma maior capacidade de afirmação no domínio da defesa, por parte da União Europeia, quando países como a Áustria, a Itália, a Hungria, a Polónia e a Turquia onde, ou crescem as correntes populistas, ou se desenvolvem políticas de aproximação à Rússia.
Nos últimos anos, a Europa tem estado confrontada com um movimento massivo de imigrantes ou refugiados, de difícil qualificação rigorosa, que, sendo também um problema de segurança, é mais premente do ponto de vista humanitário e mostra, simultaneamente, a fragilidade da solidariedade europeia, a verdadeira face de alguns governos europeus e a prevalência dos interesses nacionais sobre os tão repetidos interesses e valores europeus. As soluções propostas e os mecanismos que as deveriam implementar não só estão longe do consenso, como algumas delas se destinam a manter essas massas humanas fora das fronteiras europeias e outras não conseguem ser concretizadas, face à rejeição de alguns países membros.
Este será, contudo, um próximo grande desafio, pois os conflitos armados e o desrespeito pelos direitos humanos não são as únicas causas para o movimento dos refugiados ou imigrantes, são também as alterações climáticas que têm transformado zonas agrícolas em desertos, como está a acontecer no Médio Oriente e em África, particularmente na região do Sahel, onde a falta de água é crítica.
No futuro próximo, para além dos refugiados de guerra, poderemos estar confrontados com outros fluxos, provocados por catástrofes climatéricas como cheias diluvianas ou secas severas, que destroem culturas, dizimam rebanhos e a caça, e promovem a desertificação, ou a pesca intensiva e a poluição dos oceanos e dos grandes rios, que põem em causa os bancos piscatórios. As alterações climáticas, a poluição, a falta de água, a escassez de recursos alimentares, passam a constituir um multiplicador dos riscos e das ameaças e a gerarem vagas de migrantes à procura não só de segurança, mas também de abrigo e de subsistência, parecendo ser as designadas “caravanas” que se têm vindo a revelar na América do sul, em direcção aos EUA, o primeiro indicador deste fenómeno.
A realidade da conjuntura actual configura um novo ambiente estratégico, mais exigente, menos previsível, com episódios de grande conflitualidade e de grande incerteza, em que a gesticulação militar já assumiu o recurso a meios e processos que se tinham por ultrapassados. Uma incerteza que resulta das características de uma nova ordem internacional, em que um conjunto de actores dispõe de uma inesperada liberdade de acção e afirmação política que, no passado recente, era objecto de uma regulação por uma ordem bipolar e que, hoje, o processo da globalização lhes abre possibilidades e oportunidades para a promoção dos seus interesses, quer a nível regional quer influenciando negativamente a estabilidade internacional.
Uma nova ordem internacional em processo de consolidação, desafiante e não estabilizada, cujos únicos aspectos seguros são reconhecimento de que a anterior já não é valida, que os novos paradigmas são instáveis, que a mudança é acelerada, que a informação constitui recurso estratégico e que transformou o discurso em acção e que o fenómeno da globalização, sem regulação institucional possível, constitui inegável motor de progresso, mas agudizou, também, as desigualdades.
A informação é reconhecida, hoje, como constituindo o mais valioso recurso estratégico que, relativamente aos demais que detêm essa qualidade, tem a característica de ser “não finito”, pelo contrário, quanto mais se utiliza mais se amplia e é factor do conhecimento e da inovação. As Tecnologias de Informação Global trouxeram também, naturalmente, o seu impacto estratégico para esta dimensão.
Importa igualmente considerar que os avanços nas tecnologias de informação global levantam algumas interrogações, no que toca aos desenvolvimentos das aplicações públicas e privadas, no âmbito das redes e sistemas 5G, que se podem transformar num sistema de controlo centralizado de dados, provenientes dos serviços mais sofisticados no domínio da segurança e do “intelligence”, que poderão atingir, no futuro, segundo os especialistas, um volume de 4 mil GB diários (4 Terabytes), alojados em “clouds”, cujo acesso poderá ficar exposto a entidades não consideradas, aquando da sua constituição. Se esse acesso a dados, quer pessoais quer de outra natureza, resultar de uma acção por parte do Estado, dos Serviços de Segurança ou, eventualmente, também por parte dos instrumentos militares, estarão em causa a própria Democracia e a Segurança, em sentido lato.
Uma incerteza, ainda que, perante uma passividade política, tem permitido que poderes autoritários e, em alguns casos, novos actores da cena internacional se apropriem do Poder do Estado em proveito próprio, sejam esses poderes autoritários, o terrorismo internacional, de que o DAESH ainda é o exemplo mais significativo, sejam as máfias e/ou os cartéis da droga, sejam os fundamentalistas radicais, ideológicos ou religiosos, mas também os “media”, os mercados e o poder económico que, por ausência de regulação, surgem, igualmente, como participantes activos dessa apropriação.
Constituem ainda sérios desafios à segurança internacional, o terrorismo, a pirataria, o tráfico de pessoas e recursos, a proliferação de armas de destruição maciça, a disseminação da tecnologia de mísseis balísticos, o cyberterrorismo, a necessidade da garantia do acesso às fontes e continuidade dos fluxos energéticos, a liberdade de navegação e a escassez dos recursos estratégicos, designadamente a água e o aumento permanente da procura de energia e dos metais raros, indispensáveis às novas tecnologias.
Em matéria de estratégia militar, a incerteza referida e este clima penalizador da estabilidade e da paz levanta a questão de como encarar e responder à real dimensão estratégica e sociológica dos conflitos abertos com que temos vindo a ser confrontados, sejam “intra ou inter” estatais, se os mesmos devem continuar a ser equacionados no quadro daquilo que hoje designamos por guerras híbridas, de baixa intensidade ou de terrorismo e, se é possível, assumir que as guerras entre estados e de alta intensidade estão definitivamente erradicadas das relações entre actores e que as estratégias nacionais deixaram de ser determinadas, politicamente, pelos interesses nacionais. Embora uma avaliação racional da actual conjuntura estratégica aponte, como pouco provável, um conflito aberto entre as maiores potências, a probabilidade da procura de uma hegemonia regional poder levar a um conflito aberto mais alargado, assume outro grau de possibilidade.
Esta incerteza quanto à resposta estratégica a este tipo de percepção difusa da ameaça, resulta também de uma dúvida, na Aliança, relativamente ao estabelecimento de medidas, capacidades e atitudes operacionais, que não encontram unanimidade relativamente à fronteira ente a dissuasão que as mesmas pretendem garantir e o sentimento de provocação e de escalada que podem provocar no adversário. Dúvida também quanto à forma de lidar com um ataque cibernético; o que deva ser uma resposta proporcional? Uma acção retaliatória? Um ciber-ataque preventivo, logo que detectados os primeiros indícios de uma acção agressiva? Dúvidas que não favorecem critérios de coesão e de credibilidade.
Tornou-se igualmente claro que os espaços de aplicação estratégica, para além da terra, mar e ar, se ampliaram para o espaço cósmico e para o Cyberespaço. O actual ambiente estratégico reconhece a importância, quer do Cyberespaço quer da utilização continuada do espaço sideral em múltiplos domínios, associada à utilização segura da “informação” e do acesso a “dados” de natureza multidisciplinar, pelo que a utilização de ambos tem de ser garantida em permanência, assim como evitar que qualquer actor a possa pôr em causa.
Neste ambiente estão identificados os actuais riscos para a segurança global, que decorrem dos inerentes à violência: a guerra, o terrorismo, a proliferação das armas de destruição maciça, tendências radicais, mas também as máfias e a criminalidade internacional organizada, a que se juntam os riscos decorrentes da introdução de factores de desequilíbrio do Ecossistema e as alterações climáticas, os ligados à evolução da tecnologia, incluindo a nuclear e os novos “vírus”, biológicos, tecnológicos e informáticos, que geram as pandemias e afectam decisivamente o Cyberespaço.
Estamos já confrontados com a política dos EUA para o espaço cósmico, com a criação do Space Command e com o impulso e investimentos na National Aeronautics and Space Administration (NASA), em que os novos horizontes incluem o regresso à Lua e a intenção de atingir Marte; paralelamente, são previsíveis os avanços tecnológicos no domínio da Inteligência Artificial, das nano tecnologias, dos materiais compósitos, das “fuel cells”, das hiper-velocidades e das potencialidades da Information and Communication Technology (ICT) e as aplicações desses avanços na estratégia militar.
Nestes domínios surgem como novos competidores, para além da Rússia, a China que, no passado mês de Janeiro, colocou uma sonda na face oculta da Lua e a Índia que, com o veículo espacial Chandrayaan-2, irá, ainda durante este ano, executar a sua segunda missão à Lua e fazer alunar a sonda de forma assistida.
Para além da crescente utilização comercial do espaço, a sua importância é reconhecida para a condução das operações militares, dependentes das informações provenientes da rede de satélites de “intelligence”, de comunicações seguras, de previsão do tempo, do GPS e do fornecimento de dados operacionais em tempo real para o Comando e Controlo dessas mesmas operações. Desta posição americana é legítimo interrogarmo-nos quanto a duas ordens de implicações: por um lado, como conciliar aquela intenção com o Tratado de Utilização do Espaço, assinado, em 1967, por 104 países, proibindo a utilização da Lua como plataforma militar e a colocação de armas de destruição maciça em órbita, sendo que as armas anti-satélite, por serem consideradas armas convencionais, estão fora dessa proibição; por outro, como escamotear a realidade incontornável de que, quando um actor cria mais um instrumento no domínio da estratégia militar, a sua finalidade última será sempre gerir a coacção militar em seu favor.
Por último, e ainda no domínio da utilização do espaço, como controlar o incremento constante de lançamento de satélites de pequenas dimensões, caso dos LEO (Low Earth Orbit) com órbitas da ordem das centenas de quilómetros de altitude, com fins puramente comerciais e que, juntamente com o “debris” que já existe, torna mais provável o choque entre eles, podendo dar origem a situações mais gravosas de colisão em cadeia, de satélites de outra natureza.
Permitam-me que refira ainda, sobre os desafios da actual conjuntura estratégica, as declarações de responsáveis políticos de três grandes actores da cena internacional: por parte da China, o Ministro das Relações Externas, Wang Yi, chamava a atenção para o facto e passo a citar, “o nosso mundo está a experimentar profundas transformações, pelo aumento da incerteza e dos desafios que se colocam ao sistema e ordem internacionais; a paz e o desenvolvimento estão na ordem do dia, a globalização da economia, a multi-polaridade e a aplicação das tecnologias de comunicação global, associadas à diversidade cultural estão a transformar as nossas sociedades profundamente”. No caso da Rússia, assistiu-se no final no ano passado, a Putin, parafraseando Mackinder, afirmar, relativamente aos desenvolvimentos respeitantes à Inteligência Artificial, que, ”quem se constituir como líder nesta esfera do conhecimento, governará o mundo”. Quanto aos EUA, Trump declarava, em 17 de Janeiro, no Pentágono, “temos de garantir que as nossas capacidades de defesa não têm rival”, fim de citação.
Esse esforço americano está a ser colocado em três áreas: no reforço da capacidade anti-míssil, na criação de um novo arsenal nuclear com engenhos de menor potência, menos devastadores e que, em teoria, poderiam ser usados no campo de batalha, anunciado em Fevereiro de 2018, aquando da divulgação da nova estratégia de defesa nuclear e, por último, na inovação, missão atribuída ao US Army Research Laboratory (ARL) e à Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA).
É interessante notar que aquelas entidades têm vindo a debater a questão crucial do reconhecimento tradicional desde a antiguidade, de que, “quando o inimigo consegue um dardo mais perfurante é necessário inventar uma melhor protecção/couraça”; o debate decorre também sobre se se deve procurar a arma absoluta, que confere a surpresa estratégica e a inequívoca vantagem ou se a aposta deve ir para a capacidade de resposta, que torna obsoletos os instrumentos militares de hoje e de amanhã.
Esses projectos de investigação e desenvolvimento incidem sobre veículos autónomos, não tripulados e robots, capazes de uma maior mobilidade, evoluindo-se das rodas e lagartas para “pernas hidráulicas computorizadas”, incluindo os drones de dimensões e finalidade diversas, com aptidão para realizarem missões distintas, isoladamente ou em enxame (swarming drones); igualmente, incidem sobre as armas de energia dirigida, as “rail guns” lançadoras de projécteis com uma dinâmica e velocidade electromagnética e os mísseis hipersónicos, com velocidades superiores a cinco vezes a velocidade do som e uma verdadeira ameaça aos porta-aviões americanos.
Fazem igualmente parte dessa I/D, os novos explosivos convencionais de alta potência, a tecnologia stealth, os lasers destinados a destruir mísseis, drones, aviões e satélites, de forma silenciosa e a grande distância, mas também com capacidade para cegarem, física ou electronicamente, os diversos intervenientes no campo de batalha. Paralelamente, aposta-se nas capacidades da computação quântica, como forma de obter as melhores respostas de defesa para estes novos desafios, a par da melhoria dos sistemas IRS (Informação, Reconhecimento e Vigilância).
Estamos assim num novo ambiente operacional, em que a tecnologia eliminou a escuridão, permitiu neutralizar a camuflagem e ver no interior dos oceanos e das infra-estruturas, mas que nos permite ampliar a realidade, fazendo coexistir o real com o virtual, gerando “hologramas” tridimensionais sónicos, a par da presença de novos “jammers”, de sensores e de satélites que perturbem ou impeçam a obtenção de dados necessários ao Comando e Controlo.
O futuro espectro do ambiente operacional apresenta-se, previsivelmente, mais volátil e ambíguo, colocando às forças militares que nele operam um conjunto de desafios, de que se destaca a “compressão” e maior conexão entre os níveis de decisão – estratégico, operacional e táctico – pelas implicações que as acções operacionais, realizadas num dos níveis poderão ter na actuação dos outros.
Neste ambiente operacional, os instrumentos militares têm de ter presente que a revolução da Informação, a conectividade e a presença constante dos “media”, não só permite um permanente escrutínio das acções militares e dos seus efeitos, como a sua divulgação, quer nas redes sociais quer na comunicação social, ou a partir de um simples telemóvel, levantando questões, quer de segurança para as tropas quer de interferências no Comando e Controlo e eliminando o confinamento geográfico dos Teatros de Operações, globalizando o seu conhecimento, submetendo a sua avaliação à grande opinião pública, podendo provocar constrangimentos na liberdade de acção e decisão política.
Perante este cenário, onde a realidade e a ficção têm uma fronteira ténue e difusa, cabe a questão de quem será, efectivamente, o soldado do futuro. Será ele o militar como um sistema de armas complexo, com uma visão ampliada do campo de batalha, através de meios termais, computacionais e optrónicos, receptor de informação multidisciplinar fornecida por sensores à distância, capaz de fazer intervir operacionalmente interceptores de natureza diversificada e ainda em termos humanos, assistido físico e biologicamente para ampliar, temporalmente, a sua capacidade de combate, dispondo também de um exo-esqueleto, o terceiro braço, que lhe permita transportar armamento mais letal?
Ou será o “hacker”, que utiliza o Ciberespaço, para provocar a disrupção dos Sistemas de Comando e Controlo, para controlar satélites, alterar o destinatário da informação ou alterar a sua órbita ou mesmo destruí-los, paralisar o funcionamento de um país, afectando redes eléctricas, abastecimento de água, sistema financeiro, controlo aéreo, hospitais, fábricas e, naturalmente, o emprego do seu instrumento militar, podendo gerar um verdadeiro estado de guerra, sem se saber, concretamente, quem o desencadeou?
Este clima de esforço de investimento e de investigação tecnológica faz lembrar o lançamento do projecto da “Guerra das Estrelas”, que teve as implicações estratégicas que se conhecem, ajudando a alterar a geopolítica mundial, com as consequências para a Rússia, à data União Soviética, e para o estatuto das principais potências da altura.
Se no domínio da utilização e aplicação da estratégia no Cyberespaço temos assistido a reais capacidades ofensivas por parte de diversos actores, o passo seguinte que agora nos vem sendo sugerido, a utilização do espaço como aplicação do poder nacional para atingir um determinado objectivo estratégico, não parece ser fácil e estar ao alcance de qualquer um, mesmo daqueles que hoje são referidos como grandes potências.
Uma corrente armamentista contém, na sua dinâmica, a possibilidade de consequências imprevisíveis, incluindo a possibilidade da alteração qualitativa de comportamento daqueles que têm convivido, na cena internacional actual, com a percepção da superioridade militar dos EUA, mas que considerem inaceitável um estatuto assumido por este, de supremacia militar no contexto estratégico internacional.
Esta atitude associada à denúncia de acordos firmados sobre esta matéria parece estar a esquecer os verdadeiros fundamentos do Controlo de Armamentos: reduzir o potencial militar e limitar as suas condições de emprego, reduzir o risco da Guerra e aumentar a estabilidade estratégica, permitindo ainda facilitar a gestão de crises. Não só estes fundamentos parecem ter perdido relevância como a aposta parece ir em sentido inverso, na procura de capacidades que confiram nítida vantagem estratégica, situação que altera, decisivamente, a estabilidade estratégica internacional e aumenta o risco da Guerra.
Apesar de a Tecnologia continuar a apostar na precisão dos interceptores, o controlo dos danos colaterais continua a revelar-se uma problemática não ultrapassada. O Bureau of Investigation Journalism, sedeado em Londres e que acompanha de perto a actividade operacional dos UAV, revelou, em meados do ano passado, que, desde que a CIA e a US Air Force começaram a utilizar operacionalmente os Drones MQ-1 Predator e MQ-9 Reaper, armados com bombas de 500 Lbs e mísseis Hellfire, operados remotamente a partir do Nevada, conseguiram eliminar milhares de combatentes, no Corno de África e no Médio Oriente, mas são igualmente responsáveis por uma cifra que se situa entre 751 e 1555 de baixas civis; esta situação levanta naturalmente questões éticas de Direito Internacional e de Direitos Humanos.
A realidade conflitual actual tem demonstrado que a incapacidade de desafiar do ponto de vista tecnológico os países mais avançados neste domínio, tem levado o agressor a procurar situações operacionais, em que a eficácia dessa superioridade seja afectada na sua rendibilidade e escolher Teatros de Operações, que se possam constituir como factores dessa degradação de capacidades e igualizadores do potencial de combate, em que o sucesso não se obtém por acções tácticas, mas sim atingindo o nível estratégico e político, através de acções violentas de grande espectacularidade e a procura máxima do efeito psicológico.
Manda a prudência que a superioridade tecnológica seja encarada, a nível estratégico, como um elemento adicional da Força, porque não substitui a capacidade humana e a sua intuição, o espírito de iniciativa e de inovação, para o aproveitamento de janelas de oportunidade e para lidar e dar resposta a situações inesperadas – a surpresa nunca será eliminada.
Igualmente, no que toca às novas tecnologias de informação e ao recurso que a mesma representa, torna-se indispensável ter presente o seu carácter perverso, de que um excesso de informação poder complicar o processo de decisão ou transferi-lo para uma avaliação em que essa escolha é feita por uma matriz de algoritmos ou, ainda, possa contribuir para um irracional excesso de confiança e para um perigoso sentimento de segurança e de sucesso garantido.
Também as tecnologias de informação global, redes sociais, a ênfase nas “fake news” e o consequente tratamento da imagem e a sua associação ao discurso para as sustentar, transformam estas em instrumentos de manipula-
ção das consciências e das opções de escolha, em que o facto observado e representado, com omissão do contexto em que se insere, não é necessariamente a realidade do acontecimento e, como elemento para a decisão, passa a requerer instrumentos específicos de validação.
Os especialistas das Agências de I/D, que foram referidas anteriormente, têm prospectivado um campo de batalha onde as operações militares decorrerão de forma continuada, vinte e quatro horas por dia, em quaisquer condições de tempo, sem descanso, onde a Inteligência Artificial permitirá que robots lutem ao lado dos humanos e possam, inclusive, no futuro, fazê-lo de forma autónoma dispensando-os. Algo, no entanto, está, desde já, assumido, que num grande conflito futuro os robots lutarão entre si.
Uma última reflexão, que tem a ver com aquilo que tem sido o factor fundamental da Dissuasão, num ambiente estratégico onde prevalece o factor nuclear, como instrumento de contenção do conflito entre os principais actores da cena internacional e que é o reconhecimento e o receio dos danos inaceitáveis que um conflito dessa natureza provocaria.
Se a realidade futura aceitar que a Ciência progrida sem consciência e a Tecnologia evolua sem valores, a par do afastamento do elemento humano do campo de batalha e do seu controlo sobre a Inteligência Artificial, desaparecem os factores que Clausewitz considerou inerentes à guerra e à sua contenção – a incerteza e o medo, cabendo ainda a questão de onde fica e qual é o factor inibidor da maior letalidade conflitual, a par da garantia do Direito da/e na Guerra, da Ética, da Compaixão e da Solidariedade, que sempre estiveram presentes nos Combatentes. Quando deixarmos que o algoritmo decida por nós, estamos a perder Poder e a transferi-lo para outros.
* Conferência Internacional organizada pela Armed Forces Communications and Electronics Association (AFCEA) – Portugal – “MILTEC19”, em 21 de fevereiro de 2019, com o apoio do Estado-Maior-General das Forças Armadas e do Instituto Universitário Militar.
Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964.
Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.
Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.
Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.