A denominada reforma do Sistema de Saúde Militar (SSM), vertida no Despacho nº 2943/2014, de 21 de fevereiro, pela acção do XIX Governo Constitucional, na sua matriz limitou-se a extinguir as estruturas hospitalares dependentes dos Ramos das Forças Armadas (FA), levando a cabo uma mera redução da estrutura dos respectivos serviços de saúde, num formato que não teve na devida conta as reais necessidades e os desafios que, há muito, se impunham à racionalização e à eficácia do Sistema.
No âmbito da referida reforma, apontava-se para a concentração de um conjunto de estruturas e de capacidades do âmbito da saúde militar, até à época da responsabilidade dos Ramos das FA, não se tendo, no entanto, conseguido evoluir para um campus de saúde militar, tão anunciado por parte do Ministro da Defesa Nacional (MDN) da altura.
Contudo, a verdadeira razão que terá estado na base do quadro legal aprovado centrou-se, essencialmente, na extinção dos Hospitais Militares dos Ramos, na sua fusão e respectiva concentração no chamado Hospital das Forças Armadas (HFAR), assentando numa métrica simplista, e num timing irrealista e politicamente orientado.
Na verdade, passados mais de quarenta anos sobre o final das guerras de África, com a decorrente retracção do dispositivo das FA, e com a drástica diminuição dos efectivos associada, seria legítimo esperar muito mais de uma reforma de um Sistema considerado crucial para o cabal empenhamento e prontidão da Força Militar, e para o indispensável apoio à respectiva Família.
Ao longo desse período, as várias iniciativas levadas a cabo na área da saúde militar terão permitido, certamente, uma reflexão aprofundada e crítica, apontando direcções, que supostamente deveriam ter contribuído para que a reforma em questão se tivesse apresentado com a oportunidade e eficácia exigidas, e que, fundamentalmente, pudesse assegurar uma visão estratégica e prospectiva para a transformação desejada.
No entanto, o que terá sobrado, pouco mais foi do que um exercício de explícito oportunismo político, com o objectivo de, mediaticamente, exibir trabalho acabado, embora, lamentavelmente, à custa dos utentes e dos profissionais de saúde militar.
Tendo esta realidade como pano de fundo, verificou-se que com a concentração dos universos dos utentes oriundos dos Ramos das FA, em paralelo com uma deficiente organização dos serviços, passou-se a assistir, desde o início do processo, a uma manifesta falta de capacidade de resposta do HFAR, bem patente na reconhecida dificuldade nas marcações de consultas e de actos médicos, dando origem a filas de espera que se prolongavam (e continuam a prolongar) por largos períodos de tempo, com os graves prejuízos para as condições de saúde de quem procurava o indispensável apoio médico, num claro desrespeito pelos seus direitos e expectativas.
O erro dos pressupostos em que o programa funcional do HFAR assentou, quando do seu desenho, induziu à alienação, desconstrução e sub dimensionamento de várias valências e capacidades clínicas existentes nos hospitais dos Ramos, com reconhecida certificação científica.
No mesmo sentido, com as limitações verificadas no domínio das instalações e infraestruturas, a capacidade de internamento do HFAR, com menos de 200 camas no seu polo de Lisboa, não salvaguardou a efectiva dimensão do universo a apoiar, perdendo, face aos anteriores hospitais dos Ramos, cerca de 400 camas.
Situando-se a ocupação média hospitalar, no modelo anterior, em valores reconhecidamente elevados, questiona-se como se pôde, então, processar o internamento dos utentes, vítimas daqueles cortes.
Passados que foram cinco anos sobre a pseudo reforma do SSM, a situação descrita continua, nos dias de hoje, a manter níveis deficitários preocupantes e não compatíveis com as necessidades dos Militares e das respectivas famílias, não se vislumbrando as medidas efectivas para a sua normalização, realidade bem patente na interrupção verificada ao nível da intervenção programada das infra-estruturas do HFAR, a par da saída precoce e continuada de pessoal médico e de enfermagem, sem substituição de qualquer natureza, e, ainda, pela falta de renovação e de investimento em materiais e equipamentos.
Confirmava-se, assim, que com o modelo funcional do HFAR aprovado não tinha sido possível garantir o referencial de qualidade suficiente, que, como corolário da concentração dos recursos obtidos pela fusão dos hospitais dos Ramos, seria expectável, obrigando a soluções alternativas de complementaridade duvidosa, asseguradas por instituições de saúde protocoladas para o efeito, aumentando os custos de operação, bem como o valor da factura a pagar pela Assistência na Doença aos Militares (ADM), como é do conhecimento público.
Por outro lado, a reforma não acautelou o apoio aos Militares que, por acidente ou doença, se pudessem tornar carenciados de períodos de convalescença prolongada, levando, inclusive e não raras vezes, ao afastamento definitivo do serviço activo.
No mesmo sentido, os Militares na situação de reserva e de reforma ficaram, igualmente, desprotegidos em situações daquela natureza, cumulativamente agravadas pelo seu escalão etário, e por condições de saúde mais fragilizadas.
Teria sido indispensàvel que se tivesse levantado uma unidade hospitalar de rectaguarda, ajustada aquelas carências, podendo funcionar como hospital de dia, e fazer a denominada cirurgia do ambulatório, para além da capacidade para internamento de doentes para cuidados paliativos ou continuados.
Semelhante estrutura poderia ter sido encontrada entre os ex-hospitais dos Ramos, uma vez que estes dispunham de estruturas logísticas adequadas, bem como de equipamentos médico-sanitários, facilmente adaptáveis para o efeito.
Actualmente, o SSM depara-se, assim, perante uma séria ameaça de descaracterização, com uma capacidade de resposta pronunciadamente abaixo dos níveis desejáveis por que se deveria reger, decorrente da degradação da qualidade e eficiência do seu funcionamento, em particular da sua dimensão hospitalar e assistencial.
Como resultado, a situação decorrente da reforma de 2014 tem vindo progressivamente a desmotivar os profissionais de saúde do Sistema, pelo defraudar das suas legítimas expectativas e pela impossibilidade sentida na normal manutenção de competências nas respectivas áreas de especialização, enquanto, por outro lado, os utentes vêm, progressivamente, procurando no exterior as respostas, que não encontram no Sistema, aos seus problemas de saúde.
No âmbito da componente operacional, questiona-se, ainda, como é que o actual SSM poderá funcionar com a prontidão e eficiência exigidas em resposta às necessidades específicas da saúde operacional, nas suas áreas de prevenção e de cuidados de saúde, privilegiando os serviços e especialidades mais directamente relacionadas com o apoio sanitário às Forças.
Deste modo, uma capacidade reconhecidamente diminuída pela carência progressiva de meios humanos, materiais e financeiros, a par de conceitos organizacionais de eficiência não comprovados, obriga, com legitimidade, a interrogar sobre o futuro do SSM.
Num quadro tão repleto de limitações, como de interrogações, tornava-se urgente inverter a presente realidade, devendo chegar o momento para afirmar um SSM ajustado às reais necessidades das FA, composto por quadros motivados, com uma valorização profissional adequada, e dotado dos recursos que pudessem satisfazer os padrões de qualidade exigidos, no âmbito da sua intervenção.
Entretanto, acrescendo ao quadro de interrogações levantado, de referir duas situações recentemente ocorridas, que pelo seu significado e relevância merecem a devida ponderação, prendendo-se a primeira com um relatório sobre o SSM, elaborado por um grupo de trabalho no âmbito do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), com vista à racionalização do Sistema e a incrementar a qualidade dos serviços prestados pelo HFAR.
Tratou-se dum trabalho que, decorrendo directamente da Directiva do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) para 20018-20120, levantou as mais fundadas expectativas em relação às conclusões apresentadas e aos modelos a explorar, tendo em vista a sua eventual implementação.
A segunda situação teve a ver com um despacho do MDN, datado do dia 14 de abril de 2019, criando um Grupo de Trabalho (GT), coordenado por uma ex-ministra da saúde (Ana Jorge), com o objectivo de desenvolver um estudo de avaliação sobre o SSM, concorrendo, na prática, com os mesmos objectivos do trabalho referido anteriormente.
Deste modo, se aquele trabalho se inseriu, naturalmente, no quadro das responsabilidades funcionais do CEMGFA, tendo o mesmo sido entregue, oportunamente, ao MDN, já o despacho citado permite levantar algumas interrogações quanto ao seu objectivo último.
Em primeiro lugar, afigura-se no mínimo estranho que, quando um estudo elaborado sob a responsabilidade do CEMGFA, destinado à análise e decisão por parte da respectiva tutela política, esta possa vir a fazer “tábua rasa” das respectivas conclusões e propostas, e num aparente desrespeito institucional, faça nomear um GT, cuja missão é definida com propósito e objectivos similares.
Em segundo lugar, se se considerar que, em 2006, um outro GT, também da iniciativa do MDN, com objectivos idênticos e, por coincidência, coordenado pela mesma pessoa, apresentou propostas, que objectivamente não serviam as reais necessidades das FA e dos Militares, e que só não terão sido implementadas pela firme determinação dos chefes militares, na altura, é legítimo que se questione sobre as verdadeiras intenções do estudo agora encomendado.
Igualmente se deverá atentar ao facto da data fixada para a conclusão do referido estudo, 31 de maio de 2019, se integrar, curiosamente, no ciclo eleitoral do ano em curso, não podendo, assim, impedir-se a comparação com o timing seguido pelo anterior governo, que com a apelidada reforma do SSM, em 2014, também em ciclo eleitoral, pretendeu, acima de tudo, mostrar serviço, ordenando o encerramento dos hospitais militares das FA, de forma abrupta e irresponsável, sem previamente ter cuidado das condições efectivas à sua substituição e adequado funcionamento.
Com a reforma de 2014 o SSM ficou abalado com gravidade, com serviços médico-sanitários descontinuados, com a ausência de efectivas condições de trabalho dos seus profissionais, culminando, não raras vezes, com a interrupção do seguimento clínico de grande número de utentes, levando, inclusive nalguns casos, à irreversibilidade dos seus padecimentos.
Tenhamos fé para que o mesmo não possa vir a ocorrer, novamente….
Obs: O autor escreveu em consonância com o anterior acordo ortográfico, não autorizando a respectiva transição para o novo acordo.