Nº 2608 - Maio de 2019
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
O relato dos enfermeiros do Hospital de Marinha: fonte inédita para o estudo da adesão e ação dos militares da Armada na revolução republicana de 5 de Outubro de 1910
Dr.
Diogo Campos Rodrigues

Introdução

O breve relato que julgamos relevante publicar insere-se no vasto esforço de divulgação e disponibilização de fontes relativas aos acontecimentos revolucionários de 3 a 5 de outubro de 1910. Este esforço, para além dos relatórios e testemunhos memorialísticos publicados em período contemporâneo aos acontecimentos ou na vigência da Primeira República por motivação dos autores ou exigências de serviço à República e instituições militares, teve também um ponto de referência em 1978, aquando da publicação de vários relatórios coligidos por Carlos Ferrão e até aí inéditos e fundamentalmente desconhecidos dos investigadores e do público, na obra “Relatórios sobre a Revolução de 5 de Outubro”. Ao abrigo do centenário da implantação da República, prosseguiu-se este intento, e foi nesse contexto que o Grupo de Trabalho para as Comemorações Municipais [de Lisboa] do Centenário da República, considerou pertinente lançar uma reedição da obra referenciada, aumentando-a, incluindo dois relatórios nunca antes publicados. No entanto, é de realçar que todos os dez relatórios publicados na obra citada, oito apresentados por oficiais e dois por sargentos, são de elementos do Exército, naturalmente espelhando primordialmente, se não mesmo exclusivamente, as ações e omissões de forças terrestres de 3 a 5 de outubro de 1910.

Invertendo o paradigma em termos de fontes publicadas, o académico e oficial da Marinha Carlos Valentim publica, também no âmbito do Centenário da Implantação da República, a obra “A Marinha no Movimento Revolucionário Republicano – O Relatório das Unidades que Participaram na Revolução de 4 e 5 de Outubro de 1910”, que, para além de um interessante estudo sobre o papel da Marinha no movimento revolucionário de 1910 e seus antecedentes, é ainda composta pela relevantíssima edição do “relatório do movimento revolucionário da parte que diz respeito às forças da Marinha nas suas ações no quartel e cruzadores”. Um dos documentos que compõem a descrição dos acontecimentos e do concurso da Marinha no movimento revolucionário, é o relatório do médico da Armada Alexandre José Botelho de Vasconcelos e Sá, elaborado enquanto chefe do serviço de saúde dos revolucionários da Armada, encargo que lhe fora cometido pelo Almirante Carlos Cândido dos Reis e pelo diretório do Partido Republicano Português e que versa fundamentalmente sobre a ação do Hospital de Marinha enquanto unidade e do seu pessoal de saúde. Apensa ao relatório encontra-se a relação de oficiais, sargentos e serventes revolucionários da Armada que o mesmo chefe do serviço de saúde julga dignos de recompensa, assim como uma relação de baixas e feridos da Armada.

O documento que em seguida apresentamos encontra-se impresso e chegou-nos através da aquisição de parte do espólio parlamentar de um deputado à Assembleia Nacional Constituinte de 1911.

Não o consagramos enquanto relatório, por considerarmos que essa designação sugere uma conotação de documento oficial, geralmente requisitado pela hierarquia – política ou militar – para exposição de factos, acontecimentos e reconstituição de condutas coletivas e individuais. O relatório oficial é efetivamente o apresentado e subscrito por Vasconcelos e Sá. Cremos ser de realçar que o relato que se segue não foi redigido pelo comando, mas sim por pessoal intermédio, por militares pertencentes à classe de sargentos, conferindo assim uma visão distinta dos contributos para a causa republicana – sempre circunscritos ao Hospital de Marinha e ao pessoal de saúde da Armada – em que os autores escrevem e agem em defesa própria, apresentando a sua versão dos acontecimentos.

Originalmente redigido enquanto documento justificativo do papel dos agraciados dentro de uma classe delimitada de militares e revolucionários – os enfermeiros navais adstritos ao Hospital da Marinha, recompensados por serviços prestados à causa republicana nos acontecimentos de 3 a 5 de Outubro, trata-se ainda de um documento oficioso e voluntarista, por ter sido impresso para entrega a uma comissão parlamentar constituída para analisar os serviços dos revolucionários militares e civis, em outubro de 1910. Este breve relato surge então enquanto contributo para a análise e escrutínio parlamentar de recompensas, reclamando justiça face a benefícios já atribuídos e reconhecidos pelos poderes públicos a alguns indivíduos que serviram no Hospital de Marinha, provavelmente no decurso das recompensas propostas no relatório oficial de Vasconcelos e Sá, e pedindo o suprimento de faltas de reconhecimento, reportadas pelos autores, face a outros intervenientes comprometidos com o movimento revolucionário.

Como é amplamente reconhecido pela historiografia contemporânea, a adesão e ação dos sargentos e praças sublevados – muitos dos quais não somente como aliciados mas também como aliciadores e elementos ativos da propaganda republicana nos quartéis – e que constituem a base das Forças Armadas, foi fundamental para o triunfo da revolução republicana de 1910. No caso do Exército, foram os 9 sargentos da Rotunda – todos de Artilharia 1 – que, a partir da manhã de dia 4 de outubro até à proclamação da República e rendição do quartel-general monárquico, comandaram o fogo das peças de Artilharia 1 e comandaram os sectores de defesa correspondentes na Rotunda, afirmando-se como inexcedíveis auxiliares de Machado Santos e preferindo a sorte dos soldados sublevados à dos oficiais que retiraram perante a situação desesperada e a falta de perspetiva de evolução positiva do movimento revolucionário, com a honrosa exceção do alferes de Artilharia 1, Camacho Brandão, que, tendo retirado da Rotunda após o conselho de oficiais da manhã de dia 4 de Outubro, para lá regressou pouco tempo passado, ocupando o seu posto de combate até à vitória republicana. Foram ainda 3 outros sargentos, Eduardo Frederico Valdez Faria, de Infantaria 15, Manuel d’Oliveira de Engenharia e Luís Pessoa, de Caçadores 5, encarregados de funções relevantes na Rotunda. O primeiro, encarregado do comando das pequenas frações militares que se vinham apresentando nas barricadas, o segundo, de dirigir a infantaria e os populares que faziam frente ao inimigo na avenida Fontes Pereira de Melo e o terceiro, foi investido no comando da infantaria que guarnecia o lado da avenida Braancamp[1]. No caso da Marinha, foram também sargentos e marinheiros revolucionários de diversas especialidades que assumiram um papel primordial na sublevação dos cruzadores no Rio Tejo, em particular no caso do São Rafael, que sublevaram e tomaram sem o concurso de qualquer oficial da Armada, na madrugada de 4 de outubro, recebendo a bordo o tenente Tito de Morais para assumir o comando, pelas 9 horas da manhã. Também a bordo do cruzador ‘Adamastor’ e, mais tarde, no ‘D. Carlos’, a adesão dos elementos intermédios, nomeadamente os sargentos, e também de praças foi fundamental para o curso dos acontecimentos, ficando os revolucionários senhores dos navios e do poder de fogo no Tejo e credores da vantagem que se constituía no desembarque das guarnições.

No relatório intitulado A Revolução Portuguesa, de António Machado Santos – o comandante das forças da Rotunda e oficial de Administração Naval, à época comissário naval de 2ª classe – assume a missão de alargar o espectro narrativo dos acontecimentos, inclusivamente relatando factos relativos à ação da Marinha, nomeadamente relatando as movimentações nas forças navais no Tejo, no quartel de marinheiros ou a ação revolucionária em Vale de Zebro; nessa obra, a única referência ao Hospital de Marinha surge em decurso da justificação de Machado Santos para o contributo individual do 1º Tenente médico Vasconcelos e Sá, no Quartel de Marinheiros: “o médico naval dr. Vasconcelos e Sá, vendo o plano geral alterado, não tendo recebido as armas que esperava para com os doentes do hospital de Marinha tomar parte na ação, mandou-os recolher aos leitos e foi bater-se ao lado dos seus camaradas no quartel de Marinheiros”[2].

Num estudo mais recente do papel da Marinha no 5 de outubro, o académico Carlos Valentim regista três factores para o sucesso da revolta republicana sobre o qual afirma não se ter ainda consagrado o devido relevo histórico. O primeiro factor é referente ao número de oficiais da Armada comprometidos com o movimento revolucionário e ao facto destes terem assegurado o devido enquadramento das forças militares da Armada – e mesmo do Exército e civis armados – no curso dos acontecimentos, o segundo relativo ao uso por parte dos marinheiros revoltosos do Posto Radiotelegráfico do Arsenal de Marinha, prestando relevantes serviços de comunicação entre as forças em terra e os navios no Tejo, e, por último, o terceiro factor invocado diz justamente respeito às circunstâncias e ação revolucionária do Hospital de Marinha, que se encontrava de prevenção na noite de 3 para 4 de Outubro, mas “apenas guarnecido com pessoal revolucionário, desde o porteiro, enfermeiros, serventes, até médicos de serviço”. O mesmo autor refere a relevância do funcionamento do banco do Hospital “onde se socorreram todos os feridos que ali vieram nessa noite e dias seguintes, em número de 50 marinheiros, soldados, polícias e populares […]”[3], demonstrando que para o triunfo dos republicanos obraram não apenas os recursos humanos da Armada, mas também, neste caso concreto, os meios e estruturas que disponibilizaram para a causa com o qual estavam comprometidos, entre estes figurando o Hospital de Marinha como retaguarda dos serviços de saúde, colocando a sua plena operacionalidade profissional ao serviço dos revolucionários.

O relato que em seguida se transcreve, traz à luz a participação de diversos intervenientes, alguns até aqui anónimos e que carecem de reconhecimento na historiografia da revolução de 5 de outubro de 1910. No registo da ação individual, é particularmente relevante a descrição dos serviços prestados por Jaime de Morais, militar e político republicano reconhecido na história do século XX português, mas cuja participação nos acontecimentos do Hospital de Marinha encontra-se simplesmente ignorada no relatório oficial de Vasconcelos e Sá.

De igual forma, as referências à ação coletiva da Carbonária ao longo do relato e a identificação de elementos desta associação secreta entre o pessoal de saúde da Armada merece igualmente destaque.

Estamos certos de que a publicação desta fonte, outrora inédita – que representa mais um trecho dos acontecimentos de 3 a 5 de outubro de 1910, – virá valorizar o trabalho do investigador e o entendimento do leitor que procure empreender ou compreender uma análise global dos fundamentos e dimensões do fenómeno revolucionário que permitiu a implantação da República em Portugal, reforçando em particular o estudo do contributo da Marinha republicana.

 

Relato dos Enfermeiros do Hospital de Marinha

Senhores Deputados da Nação Portuguesa,

Tendo aparecido diversos relatórios acerca dos factos que concorreram para a implantação da Gloriosa República Portuguesa, lamentam os enfermeiros da Armada recompensados pelos serviços prestados à Revolução que luz não tenha neles sido feita em todas as minucias, que bem podiam mostrar que não houve uma rigorosa distribuição de recompensas.

Assim, sabendo eles que pela digna Assembleia está nomeada uma comissão para um inquérito, acerca dos serviços prestados, julgam do seu dever informar a mesma comissão, como testemunhas próprias, da veracidade do que afirmam.

De facto o pessoal de saúde da Armada prestou o seu concurso para a implantação das instituições que felizmente nos regem, não só na parte profissional, como também na parte activa do combate, pois que o Hospital da Marinha foi um poderoso baluarte onde se conservaram na noite de 3 para 4 de outubro 150 carbonários e os doentes válidos uniformizados prontos a sair.

Os carbonários foram ali introduzidos por iniciativa do 2º tenente médico, sr. Moraes[4], que aliciou o 2º sargento enfermeiro Pinto, e este, por sua vez, aliciou Alfredo Martins, Coelho Flor, Ramiro e os ajudantes Cabrita e Costa[5] os quais na noite de 3 para 4 se evidenciaram, acompanhando uns o 1º tenente médico, sr. Vasconcellos e Sá[6], saindo outros sós com a incumbência de esperarem as forças que iam desembarcar à Rocha do Conde de Óbidos e seguirem para o Quartel de Marinheiros, no caso das mesmas forças não desembarcarem, o que fizeram, apresentando-se ao sr. Tenente Maia[7] no referido quartel.

O referido enfermeiro Pinto, sendo o que estava mais em contacto com o médico sr. Moraes, não saiu do Hospital, porque ali lhe distribuiu o mesmo médico o encargo de vestir os doentes, armá-los e acompanhá-los, bem como aos carbonários, enquanto ele, médico, ficou de comparecer com o armamento acompanhado pelo servente do mesmo Hospital, Branco[8], que desempenhou, quer na carbonária, da qual foi um grande aliciador, quer no Hospital, um lugar de destaque.

Não tendo aparecido o armamento, por circunstâncias anormais, o referido enfermeiro só por esse motivo não saiu e transmitiu aos carbonários a ordem de saída dada pelo médico sr. Vasconcellos e Sá, armando-os nessa ocasião com bombas que conseguiram obter. Tinha, nesse lapso de tempo, mandado apagar as luzes em volta do Hospital, cumprindo assim uma ordem do médico sr. Moraes, para assim facilitar a entrada dos carbonários no Hospital.

Por este processo aliciou ele ainda os enfermeiros António Gomes, Marcelino, Amaral, Trindade e Novaes Rodrigues[9], dando sempre uma relação com estes nomes ao referido médico, sr. Moraes, com quem se entrevistava. Estes últimos enfermeiros, apresentaram-se no Hospital às 8 horas da noite de 3, prontos para saírem com a coluna de doentes e carbonários, o que não se efectuou pelos motivos acima expostos, prestando os seus serviços profissionais a dentro do edifício durante os dias e noites que durou a revolução, e prontos sempre a sair para onde os seus serviços fossem reclamados pelos revolucionários.

O dr. sr. Vasconcellos e Sá que se encontrava no Hospital, mandou pelas 12 horas da noite de 3 sair para o serviço que lhes foi determinado (espera das forças de bordo) os enfermeiros Coelho Flor e Ramiro dos Reis e os ajudantes Cabrita e Costa.

Estes ao chegarem próximo da Rocha do Conde de Óbidos ouviram os tiros dos sinais, encontrando nessa ocasião o médico sr. Moraes ao qual transmitiram um recado do médico sr. Vasconcellos e Sá, dizendo que esperava no Hospital os automóveis. O médico sr. Moraes só lhes disse que não se juntassem a um grupo civil que se encontrava próximo. Tendo, porém, esperado muito, e não lhes aparecendo nenhum oficial, dirigiram-se ao grupo civil, de que fazia parte o sr. Ribeiro de Carvalho[10], ao qual o enfermeiro Coelho Flor auxiliou na prisão de um alferes comandante do posto da Guarda Fiscal, cuja força se encontrava formada, alguns soldados da qual tentaram disparar sobre eles, impedindo-os disso o mesmo sargento enfermeiro Coelho Flor. Não tendo desembarcado a força, e ouvindo tiroteio, dirigiram-se os referidos enfermeiros e ajudantes ao quartel de marinheiros, local que lhes parecia o teatro do fogo, e onde de facto prestaram serviços, porque havia feridos de gravidade produzidos pela luta entre as forças de infantaria 1 e quartel de marinheiros. Foi oportuna a sua chegada ali porque enfermeiro algum se encontrava na enfermaria, ajudando-os, todavia, com grande vontade, os serventes da enfermaria do quartel.

Tendo terminado o seu serviço profissional, foram juntar-se às outras praças na parada do quartel. Regressaram depois ao Hospital com os feridos, à exceção do ajudante Costa que se conservou no quartel.

Quando foram ouvidos os tiros que estavam anunciados como sinal de bordo, o médico sr. Vasconcellos e Sá, que tinha armado três enfermeiros, chamou o enfermeiro Martins e disse-lhe: «Vamos?». Este respondeu afirmativamente e acompanhou-o.

Ao saírem do Hospital, e logo nas escadinhas do mesmo, foram abordados por um grupo de polícias que transportavam um colega seu ferido ao hospital e, de revólver à cara, quiseram tomar-lhes o passo, desistindo de o fazerem tendo-o reconhecido como oficial da Armada. Ao chegarem próximo aos caminhos de ferro uma força da Guarda Fiscal, deixou-os livremente passar; outro tanto não sucedeu, porém, em frente da esquadra dos caminhos de ferro, onde um grupo de polícias, comandados pelo chefe Pinto, de carabina e baioneta calada, os intimou a parar, cruzando baioneta, formando semicírculo em volta do referido médico e enfermeiro. O médico sr. Vasconcellos e Sá, declinando a sua qualidade de oficial, fazendo-se ignorante do movimento e dizendo que ia à Majoria receber instruções, conseguiu que o deixassem seguir, depois das instancias dos polícias para que não prosseguissem.

Ao chegarem em frente da casa da guarda do museu de artilharia, em volta do qual não havia luzes, foi-lhes perguntado por uma força: «Quem passa?» respondendo o dr. Vasconcellos e Sá: «oficial de marinha». Responderam com três descargas cerradas, ante as quais não foi possível resistir, porque não vieram ao reconhecimento, e tiveram de retroceder para o hospital, onde prestaram os seus serviços.

Cerca das 11 horas da manhã do dia 4 o dr. Vasconcellos e Sá, acompanhado pelos sargentos enfermeiros Martins, Coelho Flor e Neves Coelho (este último tinha-se apresentado no hospital essa manhã) foram num automóvel, arranjado pelo mesmo médico, para o quartel de Marinheiros, onde então já se encontrava o enfermeiro Sebastião Lopes[11] que acompanhou no mesmo dia o médico e enfermeiros para bordo do São Rafael, os quais embarcaram com as forças do quartel.

Do cruzador desembarcaram no dia 5, destacando o mesmo dr. Vasconcellos o enfermeiro Coelho Flor para a força comandada pelo tenente Maia e os restantes para o posto médico onde apareceu o médico sr. Moraes que se conservou no referido posto enquanto o médico sr. Vasconcellos saiu a prestar outros serviços.

Pouco depois, constando no Arsenal que o Quartel de Marinheiros estava novamente sendo atacado (já depois de proclamada a República) o médico sr. Moraes acompanhado pelos enfermeiros Lopes e Pinto (este tendo vindo do Hospital) seguiram para o referido quartel donde regressaram ao Hospital.

Prestaram mais serviço no Hospital da Marinha os sargentos enfermeiros Gouveia e Garrudo[12] [sic]; este último estando de serviço à farmácia, foi incansável nos serviços do banco.

Isto, quanto aos sargentos enfermeiros.

Há, todavia, outros homens que injusto seria esquecer, e que de longa data, alguns deles, vinham prestando valiosos serviços.

Assim, o servente Branco, acima mencionado, tendo introduzido os carbonários no Hospital, saiu a prestar o valioso serviço de exploração em Alcântara e até à Rotunda da Avenida, donde foi ao Hospital dizer que ali se combatia com êxito e sem esmorecimentos, produzindo as suas palavras excelente impressão no animo do pessoal que ali se encontrava, entre o qual o médico sr. Vasconcellos e Sá.

 Apresentou-se às 9 da noite o cozinheiro do Hospital e às 12 o porteiro que prestou sempre bons serviços.

Um homem há que não está recompensado e que, só por lapso, pode ter deixado de o ser. É o servente Figueiredo, do mesmo Hospital. Este homem, carbonário de longa data, tomando uma parte activa no movimento de 28 de janeiro, sendo-lhe mesmo distribuído armamento e posição, não teve menor papel no movimento de 5 de Outubro. Foi ele quem apagou as luzes em volta do Hospital e quem serviu de porteiro para a introdução dos carbonários pela porta do carro, ficando pronto a acompanhá-los.

Por isso só por um lapso, repetimos, deve deixar de ser galardoado. De resto, todos os serventes disputavam a condução das ambulâncias, ganhando a luta os serventes Terrelo e João Baptista, os quais, se não saíram, foi porque o armamento não apareceu.

Tendo estado doente no Hospital de Marinha o 2º contramestre da armada Eduardo Damião, foi também ali aliciado pelo referido enfermeiro Pinto. Como tivesse tido alta uns dias antes, apresentou-se no Hospital na noite de 3 para seguir com a coluna formada pelos doentes válidos e pelos carbonários. Não saiu pelos motivos já conhecidos.

Achavam-se ainda no Hospital os médicos navais srs. Fernandes, Faria e Magalhães[13], onde prestaram relevantes serviços, os quais ali foram nessa noite certamente por conveniência para a causa da revolução, visto que só um, o médico Fernandes, estava de serviço, e este por troca com outro clínico.

Além dos citados estavam mais os médicos civis Mac-Bride e Pulido Valente[14].

Completando estes subsídios para o inquérito, julgamos do nosso dever mencionar as recompensas obtidas e que são:

Pensão anual de 73$000 reis:

Os enfermeiros Pinto, Martins, Coelho Flor, Gouveia, Gomes, Ramiro, Neves Coelho e Lopes, ajudantes Cabrita e Costa e servente Branco.

Pensão anual de 55$000 reis:

Os enfermeiros Marcelino, Trindade, Adro[15], Amaral, Rodriguez.

Pensão anual de 36$000 reis ao porteiro Luís Sequeira[16].

Senhores Deputados: este nosso ligeiro relato, comparado a bastantes outros relatórios apresentados, mostra bem que não houve uma narração sucinta dos serviços prestados pelos diversos indivíduos, pois só esta serviria de base para a distribuição das recompensas e não resultariam desigualdades bastante flagrantes.

Os enfermeiros da Armada prestaram iguais e superiores serviços, mesmo, a outros a quem foi dado o posto de oficial.

Mas em vista das recompensas que estão propostas a indivíduos, já melhor galardoado que eles, e cujos serviços, só pela sua posição, se poderiam considerar superiores aos seus, resolveram vir perante V. Ex.as, não pedir aumento de recompensas, que seria um acto anti-patriótico e altamente egoísta, tanto mais que se lembram de que existem ainda heróis mutilados, viúvas e órfãos das vitimas que combateram em prol do grande ideal, vivendo do minguado recurso, produto das subscrições, mas unicamente pedir que justiça se faça.

Os Enfermeiros Recompensados

Tipografia, Rua do Alecrim, 82

 

Fontes e Bibliografia utilizados na introdução e elaboração de notas

Arquivo do Grémio Lusitano, Livro de Matrícula Livro nº 3, registo nº 5336 e Livro de Matrícula n.º 4, registo nº 7127 e registo nº 6550.

Oliveira Marques, A. H. (coord.), Paulo Guinote, Pedro Teixeira Marques e João José Alves Dias, “Parlamentares e Ministros da 1ª República”, Lisboa, Assembleia da República, Edições Afrontamento, 2001.

Relatórios sobre a Revolução de 5 de Outubro, 1ª edição, prefácio e notas de Carlos Ferrão, Lisboa, Câmara Municipal, 1978.

Relatórios sobre a revolução do 5 de Outubro, 2ª edição revista e aumentada, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, DMC: Grupo de Trabalho para as Comemorações Municipais do Centenário da República, 2010.

Santos, António Machado, “A Revolução Portugueza 1907-1910: Relatório”, Lisboa, Papelaria e Typographia Liberty, 1911.

Ventura, António Pires, “A Marinha de Guerra Portuguesa e a Maçonaria”, Nova Vega, 2013.

Valentim, Carlos Manuel, (2010). “A Marinha na Primeira República (1910-1926) ” in Revista da Armada, nº 445, ano XL, setembro/outubro 2010, pp. 17 a 21.

Valentim, Carlos Manuel, “A Marinha no Movimento Revolucionário Republicano”, Lisboa, Comissão Cultural da Marinha, 2010.

 


[1]    Santos, António Machado, “A Revolução Portugueza 1907-1910: Relatório”, Lisboa, Papelaria e Typographia Liberty, 1911, p. 81.

[2]    Santos, António Machado, “A Revolução Portugueza 1907-1910: Relatório”, Lisboa, Papelaria e Typographia Liberty, 1911, p. 102.

[3]    Valentim, Carlos Manuel, (2010). “A Marinha na Primeira República (1910-1926)” in Revista da Armada, n.º 445, ano XL, setembro/outubro 2010, pp. 17-21.

[4]    Morais, Jaime Alberto de Castro de, nasceu em Macedo de Cavaleiros, em 1882, e faleceu em Niterói, Brasil, em 1973. Médico e oficial naval, destacou-se enquanto governador-geral de Angola, em 1917-18, e governador-geral da India Portuguesa, de 1919 a 1925. Foi opositor ativo do 28 de Maio de 1926, tendo-se assumido como um dos principais lideres militares do Reviralho, o que lhe valeu a demissão e um longo exilio em Espanha, Bélgica, França e Brasil. Amnistiado e reintegrado como capitão-tenente na reforma, em 1950, manteve-se como opositor ao salazarismo. Era maçon, iniciado em 1909 e presumivelmente carbonário. A presença e ação de Jaime de Morais no Hospital de Marinha, descrita pelos enfermeiros neste relato, não é de todo referida no relatório oficial de Vasconcelos e Sá, não sendo proposto para a atribuição de qualquer recompensa.

[5]    Tratam-se dos segundos sargentos enfermeiros Manuel Henrique Pinto, Alfredo Martins, Emídio Augusto Coelho Flor, Ramiro dos Reis e dos cabos ajudantes de enfermeiros João de Sousa Martins Cabrita e Eduardo Rodrigues da Costa.

[6]    Vasconcelos e Sá, Alexandre José Botelho de, nasceu no Porto, em 1872, e faleceu em Lisboa, em 1929. Médico e oficial naval, destacou-se militarmente como chefe do serviço de saúde nas campanhas do sul de Angola, em 1914-15, durante a Grande Guerra. Foi deputado na Assembleia Nacional Constituinte e em sucessivas legislaturas ao Congresso da República. Foi ministro das colónias do consulado sidonista, em 1918, e ainda ministro da Agricultura, em 1923. Alcançou a patente de capitão de mar-e-guerra.

[7]    Maia, José Carlos da, nasceu em Olhão, a 16 de março de 1878, e faleceu em Lisboa, assassinado, a 19 de outubro de 1921. Oficial da Marinha, foi deputado à Assembleia Nacional Constituinte, em 1911, sendo posteriormente deputado ao Congresso da República. Governador de Macau, de 1914 a 1916, foi presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Lisboa e ministro da Marinha, em 1918, e ministro das Colónias, em 1919. Na revolução republicana teve ação de mérito na sublevação do Quartel de Marinheiros, a bordo do cruzador ‘São Rafael’ e em particular na tomada definitiva do cruzador ‘D. Carlos’. Foi Maçon, iniciado em 1907.

[8]    António Branco, servente, era barbeiro do Hospital e, segundo a relação apensa ao relatório oficial, assumiu-se como chefe dos civis revolucionários ocultos nas instalações.

[9]    Tratam-se dos segundos sargentos enfermeiros António Gomes, António Marcelino, António da Silva Amaral, Vitorino dos Santos Trindade e Manuel Artur Novais Rodrigues.

[10]    Ribeiro de Carvalho, Joaquim, nascido em 1880, em Arnal, concelho de Leiria, e falecido em Lisboa, em 1942. Foi propagandista republicano, desde 1897, consagrando-se profissionalmente enquanto célebre jornalista, escritor e publicista. Com a implantação da República é eleito deputado ao Congresso da República, onde se conserva de 1911 a 1925. Presumivelmente carbonário, foi iniciado na Maçonaria em 1911.

[11]    Tratam-se dos segundos sargentos enfermeiros Adelino José das Neves Coelho e Sebastião Lopes.

[12]    Apenas conseguimos identificar o segundo sargento enfermeiro Manuel Nunes Gouveia.

[13]    No relatório oficial de Vasconcelos e Sá são somente referenciados os médicos navais António Augusto Fernandes e Jaime dos Santos Faria, sendo omissa a presença do médico naval José António de Magalhães, pelo que não é proposto para a atribuição de qualquer recompensa, ao contrário dos dois camaradas para os quais Vasconcelos e Sá propõe a atribuição de um louvor.

[14]    Tratam-se dos médicos civis Alberto Mac-Bride Fernandes, à época chefe de clínica na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e Francisco Pulido Valente, à época médico do Hospital de São José. Ambos propostos para a obtenção de louvor no relatório oficial de Vasconcelos e Sá.

[15]    Trata-se do segundo sargento enfermeiro Luís Marques de Adro.

[16]    Trata-se do porteiro do Hospital, Luís Sequeira, que pela função que ocupava não integrava formalmente o serviço de saúde da Armada. Encontrava-se graduado no posto de cabo.

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2019-11-06
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by COM Armando Dias Correia