Nº 2609/2610 - Junho/Julho de 2019
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
O Pacto do Atlântico e a defesa de Portugal

Revista Militar

 

Da Imprensa

 

A Direcção da Revista Militar resolveu transcrever o artigo que segue, publicado no conceituado jornal nortenho O Comércio do Porto, em 29 de Julho passado. É seu autor, o já antigo e brilhante escritor militar, Sr. General RAUL ESTEVES, actual presidente da Assembleia Geral deste centenário periódico.*

 

A inclusão de Portugal no Pacto do Atlântico apresenta o nosso exame um interessante problema estratégico-militar, que importa considerar sob os diversos aspectos em que ele pode influir na organização da nossa defesa nacional.

É evidente que o estudo completo do assunto deve, por certo, ter sido já feito por aqueles a quem incumbe a preparação dessa defesa, e deve também presumir-se que as conclusões a que· se chegou não deixaram de ter em conta todas as circunstâncias impostas pela nossa especial situação geográfica.

Mas, o livre exame da questão é também acessível a quem, de algum modo, tenha estudado e trabalhado nos assuntos que interessam à defesa do nosso País, quer na parte respeitante à manutenção da sua secular independência, quer na parte relativa à nossa intervenção nas lutas europeias.

Ora, encarado na sua verdadeira significação, o Pacto do Atlântico representa, pràticamente, uma espécie de aliança em que vamos entrar, e que nos há-de criar deveres a satisfazer na medida das nossas forças, Como em todos os problemas de carácter estratégico-militar, teremos, portanto, para o seu devido estudo, de considerar três pontos fundamentais: a fiscalização do acordo estabelecido, a contribuição que devemos fornecer para essa finalidade, e a forma de efectivar essa contribuição.

Não pretendemos apresentar, neste simples artigo, uma completa apreciação dos pontos assim enunciados, mas socorrendo-nos da nossa experiência e dos ensinamentos da Historia, procuramos expor o que sobre esta importante questão nos ocorre dizer.

Não cremos que seja indiscrição censurável dizer que a verdadeira finalidade do chamado Pacto do Atlântico é, sem dúvida, a organização de uma defesa militar da Europa Ocidental que, como o seu nome indica, só pode ser preparada contra um eventual inimigo proveniente lògicamente, das regiões orientais.

Sem entrarmos em desnecessárias aclarações, o problema põe-se, portanto, como uma organização defensiva com frente para Leste, e cuja base de operações se deve supor estabelecida na zona do Atlântico.

Tomando, como hipótese, que essa organização abrange, na chamada Europa Ocidental, a parte que vai até ás fronteiras do Reno e dos Alpes, concluímos, sem esforço que as defesas avançadas terão de ser estabelecidas nessas fronteiras, e que nas regiões situadas desde aí até às costas atlânticas deverão ser preparadas outras linhas defensivas onde se executarão sucessivas operações de resistência.

Na zona extrema das costas atlânticas é que serão organizadas as bases de operações.

Ora, para estas bases de operações, dada a origem norte-americana dos mais importantes auxílios para a luta, temos de concluir que é o território português que, geográfica e historicamente, está mais indicado como devendo constituir o principal ponto a considerar.

Assim, devemos frisar bem este ponto: a melhor base de operações para a luta dirigida na Europa, 110 sentido de Oeste para Leste e partindo de uma origem atlântica é, sem dúvida, Portugal com as suas ilhas adjacentes.

Este facto tem-se comprovado sempre no decurso da História, e dele provém que a nossa secular aliança luso-britânica constitui o melhor auxílio para qualquer luta que tenhamos de empreender, quer na defesa da nossa independência, quer na intervenção que operemos nas, lutas europeias, como sucedeu, por exemplo, na guerra da Sucessão e na Guerra Peninsular.

E deve também notar-se que é Portugal para estes casos a verdadeira base de operações, e não a Península Ibérica, porquanto esta constitui um teatro de operações mais complexo, e a melhor cidadela a considerar na defesa da base marítima atlântica há-de ser sempre constituída pelo território português cobrindo os seus importantes portos de desembarque.

Este ponto já foi por nós devidamente estudado num modesto trabalho sobre a guerra de Espanha de I936-39, e nele se comprovava historicamente a conclusão a que chegamos.

 

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Estabelecido, nestes termos, o primeiro ponto da questão, vejamos agora como se apresenta a perspectiva da contribuição que devemos trazer para a realização da finalidade do Plano de defesa atlântica.

Ora, abstraindo do eventual envio de forças para colaborarmos na luta executada nas zonas avançadas da Europa Ocidental, e que seria a reprodução fiel do que fizemos na Grande Guerra de 1914, essa contribuição deverá consistir precisamente na organização e defesa do nosso território como base de operações.

Teremos, assim, que o problema, em última análise, assume precisamente a forma concreta de uma defesa do território nacional, e, portanto, a ele se devem aplicar todas as medidas que têm sido preconizadas com tal fim.

É evidente que, para uma luta com o carácter geográfico que lhe é assinalado, a importância do território português não depende de› qualquer outro elemento mais do que a sua posição estratégica e do poder naval dos seus aliados.

Ligar a defesa do nosso território a outra qualquer zona geográfica, pode ser, para o caso corrente, mais prejudicial do que vantajoso para o fim comum, se não curarmos estritamente da defesa completa do País.

Basta atentarmos em exemplos de guerras bem recentes, para se verificar o que afirmamos.

Assim, na Grande Guerra de 1914, a França descurando a defesa da sua fronteira com a Bélgica, que aliás foi depois sua aliada, não opôs a necessária resistência ao movimento envolvente dos exércitos alemães, aos quais nem se puderam opor as praças fortes de Lile e de Maubange, impensadamente desarmadas, Também o mesmo facto se reproduziu na última Grande Guerra, quando a Bélgica, reassumindo uma singular neutralidade, não pôde fazer actuar, em devido tempo, a sua linha defensiva que protegia o flanco esquerdo da célebre linha Maginot.

 

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Finalmente, resta-nos examinar o terceiro ponto que apontámos: a forma de efectivar a nossa contribuição para a finalidade do Plano comum de defesa.

Ora, do que atrás deixamos dito ja se pode inferir que dois elementos se podem considerar para essa contribuição: a organização e preparação das forças com que tenhamos de figurar na luta avançada, e a completa organização da defesa do nosso território como base de operações da Europa Ocidental.

Para a organização e preparação do contingente a fornecer, é óbvio que as medidas tomadas para completa eficiência do nosso sistema militar devem ter encarado uma hipótese análoga a esta, e assim tudo permitira satisfazer tal encargo se ele nos for cometido.

É, como dissemos, uma situação idêntica à que assumimos na Grande Guerra de 1914, e tem também certa analogia com o que fizemos para a Guerra da Sucessão e pai a a célebre campanha do Rousillon de que aliás nenhum proveito tirámos.

Quanto à organização defensiva do nosso território, como principal base de operações da luta no continente europeu, cremos que ela deve obedecer aos rigorosos principies de uma defesa nacional.

Em todos os tempos da nossa História se verificou que a nossa verdadeira base de operações é o mar, e que, por tanto, o que importa essencialmente é defender completamente o fácil acesso às nossas costas marítimas, de todos os auxílios pessoais e materiais que por ele terão de vir.

Assim, a nossa defesa terrestre terá de procurar manter integralmente a posse de todas as regiões que servem de cobertura aos nossos portos de mar.

Do lado marítimo a nossa defesa, sem descurar o emprego dos nossos próprios meios, ficará completamente assegurada pelo enorme poder naval dos aliados no Pacto do Atlântico.

Importa, portanto, que todo o nosso esforço convirja para assegurar igualmente uma boa defesa terrestre da nossa costa atlântica.

Como objectivo fundamental a nossa frente deve ser voltada para o lado terrestre, e a própria lição da História nos prova a verdade desta conclusão.

Em 1807, por uma tardia adesão ao bloqueio continental decretado por Napoleão, voltamos as nossas forças para o lado do mar, e o desmantelado exército de Junot efectuava impunemente uma marcha terrestre desde a fronteira até Lisboa.

Dada a situação geográfica do nosso território continental, e seja qual for o inimigo a considerar, é pelo mar que nos hão-de chegar todos os auxílios dos nossos aliados, e é frente ti terra que teremos de nos defender, dentro do nosso território nacional.

A. inversão desta posição pode ser funesta à nossa independência, como o ensina a nossa História.

 

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*  Publicado na Revista Militar, Volume 101, n.º 8/9, agosto/setembro de 1949, pp 521-525.

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