A propósito das evocações feitas nos grandes meios de comunicação da chamada Grande Guerra (1914-18), justifica-se, talvez, um breve ensaio de síntese trans-temporal acerca das condições a que estavam sujeitos os combatentes – e também as populações que, por azar delas, eram residentes nesses cenários de violência – no quadro da acelerada evolução social e tecnológica verificada sobretudo a Ocidente desde meados do século XIX.
As guerras napoleónicas, as civis (na América Latina, países ibéricos, Itália, nações germânicas, etc.) e de assenhoreamento colonial (por parte de franceses, ingleses ou portugueses) moveram-se ainda num quadro pré-moderno onde os poderes imperiais se confrontavam entre si ou sobre terceiros por via dos seus homens-de-armas (sempre que as pressões político-diplomáticas não chegavam), em terra e no mar, sendo as populações pouco mais do que uma “paisagem”, equiparável à geografia ou aos recursos económicos mobilizáveis. A guerra da Crimeia (1853-56) ou a civil americana (1861-65) foram importantes operações de guerra que poderemos qualificar de transição porque: em terra, na manobra estratégica já surgiu a utilização do caminho-de-ferro para a movimentação das tropas, mas na batalha foram ainda usadas em exclusivo as trincheiras, as marchas e as cargas de infantaria e as da cavalaria, com o apoio local do fogo de artilharia; e no mar misturavam-se então os navios de madeira e propulsão vélica com as novidades tecnológicas do ferro e do vapor, dentro das antigas concepções tácticas do bloqueio, do cruzeiro, da escolta e da batalha naval.
Consideramos a guerra franco-prussiana (1870) como a primeira moderna, na medida em que, além de enormes massas humanas de exércitos em movimento, guerreando-se, se usou uma artilharia de longo alcance (fora da visão directa dos artilheiros), elementos de observação aérea (por balões) e uma estratégia de acção rápida dirigida ao centro de poder da potência adversária – neste caso, a cidade de Paris –, coagindo a respectiva população e assim forçando o governo inimigo a aceitar as suas condições para a paz seguinte. Ambos os contendores beneficiaram em pleno das comunicações por telégrafo eléctrico para assentar decisões de estado-maior. E a acção defensiva utilizou já um sistema de fortificações mais ligeiras e insinuadas no terreno do que as grandes fortalezas em pedra dos séculos anteriores mas mostrou-se impotente para conter a concentração momentânea de força destrutiva que o adversário era capaz de reunir. A desmoralização da população urbana assim rodeada e constrangida foi um factor essencial para reduzir a capacidade e a vontade de combater das tropas do seu “partido”. Mas que motivações levavam estes homens ao combate? Essencialmente, a inculcação e aceitação de um dever de obediência ancorado numa subordinação social das classes populares (rurais e mesmo urbanas), agora operado por um corpo de militares profissionais de enquadramento (com um papel doravante muito importante dos oficiais subalternos e dos sargentos) e uma formação já longa e especializada dos comandos superiores. E foi o estado de esgotamento anímico dos habitantes de Paris que conduziu ao levantamento insurreccional da Comuna (18 de Março, até finais de Maio de 1871), processo “civil” de que se aproveitou o vencedor bélico para consolidar politicamente o seu triunfo, com a passagem de duas importantes províncias de aquém-Reno (Alsácia e Lorena, de populações misturadas mas com boas jazidas mineiras) para a sua soberania.
Chegou depois o caso extremo da guerra europeia de 1914-18 que, não sem razão, alguns apelidaram logo de “guerra total”. Para além das causas estruturais mais geralmente apontadas para a ocorrência do conflito – apetites imperialistas, nacionalismos vigorosos, poderosas indústrias de armamento, governantes medíocres –, deve notar-se que quase todos os países ocidentais (mas não o Reino Unido e os EUA, naturalmente protegidos pela geografia) se tinham dotado de um serviço militar obrigatório que, para os jovens, corria na sequência de uma escolarização onde o patriotismo era especialmente insuflado no âmbito de uma cidadania “republicana” (mesmo se “knuto-germânica”), juntamente com a obrigação do respeito aos superiores (pais, professores, chefes, patrões e governantes) e da submissão à lei e à força armada. Não espanta, por isso, que no Verão de 1914 os primeiros combatentes mobilizados, de um e outro lado, partissem para a frente em manifestações de alegria, “la fleur au fusil”, frustrando completamente as expectativas internacionalistas-pacifistas que o movimento operário “a-nacional” tinha alimentado durante as últimas décadas.
O conflito bélico tornou-se devastador, em termos de destruições e de vítimas, para os soldados, os marinheiros e as populações civis. A artilharia de grande potência e alcance teve efeitos arrasadores, acrescidos agora com os bombardeamentos aéreos e os gases, e a acção letal das metralhadoras anichadas nas trincheiras. Mas a evolução técnica fez-se sentir também com umas rudimentares comunicações radio-telegráficas (TSF) e por telefones-de-campanha (TPF), o transporte rodoviário mecanizado (por camiões) que quase eliminou os cavalos dos teatros de operações, o aparecimento dos carros-de-combate blindados e de “lagartas”, e o início da aplicação de anestésicos para minorar os sofrimentos dos feridos-de-guerra. Mas a vida nas trincheiras era duríssima, má a alimentação, desapropriado o vestuário, poucos os tempos em reserva de 2ª linha e nenhumas as licenças (salvo para alguns oficiais), além da terrível gripe pneumónica que também os atingiu. Ser ferido ou adoecer sem gravidade era muitas vezes a situação mais desejada pelo soldado, porque significava a necessária evacuação. Aos prisioneiros, destinaram-lhes a concentração em “campos” cercados e guardados, e condições mínimas de sobrevivência, fruto já das Convenções Internacionais de Genebra e Haia. As populações civis não foram poupadas, caso se encontrassem em zonas de combates, restando-lhes a fuga para lugares mais seguros: mas, além da mobilização militar de homens das sucessivas classes etárias (até perto dos 45 anos), todos (homens, mulheres e crianças, velhos e incapazes) sofreram pela escassez e carestia dos abastecimentos e pela falta de braços úteis para o trabalho manual, substituídos por recursos de ocasião (mulheres em fábricas de armamentos, intensificação da produção, etc.), com a censura à imprensa e à correspondência a impor-se a todos, e especialmente às minorias política ou socialmente mais activas: pacifistas (entre os quais se contavam intelectuais como o inglês Bertrand Russel, o francês Romain Rolland ou o alemão Einstein) e objectores de consciência, alguns dos quais religiosos, anarquistas e outros radicais, desertores, etc. Quanto aos recrutados nos impérios coloniais, esses não apenas sofreram todas aquelas provações como não obtiveram quaisquer recompensas palpáveis para os seus povos no final. No entanto, esta lição marcaria algumas das suas elites (vg Gandhi), que dela se não esqueceram vinte anos mais tarde.
Mas esta guerra notabilizou-se sobretudo pelas erróneas concepções tácticas e estratégicas que prevaleceram ao nível dos altos-comandos. Confiando os atacados na inexpugnabilidade das suas “linhas defensivas” e os atacantes numa rápida campanha, ambos se enganaram redondamente entrando-se numa “guerra-de-trincheiras” e em ofensivas suicidárias, sem que nenhuma manobra de grande envolvimento estratégico (em Salónica contra austríacos e búlgaros ocupantes da Sérvia, e em Galipoli contra os turcos, o 3º dos Impérios Centrais) pudesse alterar este estado de coisas. No mar, o bloqueio naval inglês ao mar do Norte apenas suscitou uma tímida tentativa alemã de grande batalha naval (Jutlândia, 1916) e Berlim optou então pela guerra submarina contra o abastecimento mercante aliado, arma nascente deixada a descoberto pelos tratados recentemente assinados. No campo de batalha terrestre, o imobilismo das frentes só muito tarde foi vencido pelo progresso técnico, com os “tanks” a passarem facilmente por cima dos arames farpados e, imunes ao fogo das metralhadoras, a poderem atingir as retaguardas adversárias – deixando indicações precisas para o futuro mas sem serem decisivos para a conclusão desta guerra. O resultado de tudo isto foi um arrastar do conflito, um movimento de amotinação colectiva dos fantassins duramente reprimido pelos seus generais em 1917 (com fuzilamentos), a “paz separada” dos soviéticos, o reforço norte-americano e, finalmente, outra revolta de militares, desta vez os marinheiros da esquadra alemã de alto-mar, que determinou a débacle e o fim do reinado dos Hohenzollern.
A guerra de Espanha não trouxe novidades de monta, nem técnicas nem tácticas, salvo um mais intenso uso dos carros blindados (em vias de substituir a cavalaria nas suas típicas manobras de reconhecimento, exploração ou envolvimento rápido no combate) e a experimentação dos bombardeamentos aéreos maciços (Guernica).
Com tais lições, Hitler e a Wermacht logo se lançaram numa “guerra-relâmpago” que vitimou a Polónia em poucas semanas e submeteu a França quando mais lhes conveio, numa “drôle de guerre” onde a famosa “linha Maginot” mostrou toda a sua inutilidade e o conscrito francês fraca vontade de combater, talvez recordado do sacrifício dos seus pais, e também porventura devido aos efeitos secundários de um certo pacifismo-de-bom-tom e porque o partido comunista (industriado de Moscovo pelo pacto Molotov-Ribbentrop, de Agosto passado) logo apelou a receber de braços abertos os “irmãos proletários” germânicos.
A capacidade destrutiva desta nova guerra (maxime, a bomba atómica), agora verdadeiramente mundial (com o teatro do Pacífico), ultrapassou tudo o que a humanidade anteriormente conhecera. Os soldados coagidos à incorporação estavam mais bem treinados, equipados e assistidos – da ração-de-combate aos “divertimentos” na retaguarda e à recuperação dos inválidos de guerra –, mas a bala adversária ou a explosão produziam os mesmos efeitos depressivos para os sobreviventes. Os progressos das telecomunicações electrónicas também ajudaram a promover um afastamento físico dos comandos superiores em campanha das suas tropas, tornando-os menos sensíveis aos sofrimentos dos homens. Apesar disso e do ambiente protegido das salas-de-operações dos quartéis-generais, ainda se mantiveram almirantes embarcados, tão sujeitos ao afundamento dos seus navios como os mais humildes dos marinheiros.
A arma aérea não só se tornou ameaça e efeito destruidor essenciais (pela surpresa, o metralhamento ao solo e o bombardeamento de posições adversárias, bases industriais e aglomerados urbanos, aterrorizando as populações civis) como gerou um novo campo de combate e heroicidades – o da “caça” e do combate aéreo –, alterou profundamente a logística do transporte, permitiu o aparecimento das tropas paraquedistas e tornou as principais batalhas no mar em batalhas aeronavais (com os novos navios porta-aviões), onde o principal do esforço de guerra se plasmou na escolta aos comboios de navios mercantes e na luta anti-submarina, arma a que Berlim recorreu de novo, em grande escala, com as suas vantagens de discrição, surpresa, torpedos, minas e homens-rãs. Também nesta época surgiram os primeiros ensaios de projécteis auto-propulsionados (das bazookas portáteis às bombas-voadoras alemãs). E a estas novas tecnologias “pesadas” se juntaram outras mais “leves” e discretas como o radio-telefone, o radar ou o sonar. Por compromisso inicial dos beligerantes, não se empregaram aqui gases nem os meios bacteriológicos já disponíveis, mas os primeiros não deixaram de ser usados para a “solução final” do “problema judaico” hitleriano, e uma pequena arma particularmente cruel como o lança-chamas foi bastante utilizada por vários dos exércitos. Enquanto isto durava, foi-se acelerando a investigação tecnológica para a produção de uma “arma terrível”, que veio a ser usada para fazer render o Japão.
Deste modo, com tanta mecanização, a disponibilidade de fontes energéticas petrolíferas tornou-se um dado essencial da geoestratégia para a condução “macro” do conflito e (a partir de 1943) na gestação da futura pax bipolar, como o perceberam líderes políticos como Hitler, Estáline, Churchill ou Roosevelt. Além deste, o outro factor essencial da condução desta guerra foi o da propaganda, controlo e punição directa sobre as populações civis dos beligerantes. A radiodifusão, a “defesa civil do território”, o “governo militar” das regiões ocupadas, os bombardeamentos sobre cidades e zonas residenciais (inglesas como alemãs ou nipónicas), as actividades armadas das resistências clandestinas e as sucessivas represálias sobre as populações – eis as formas principais que assumiu esta nova “frente” do antagonismo violento e destruidor entre nações e estados soberanos em meados do século XX. Mas, como desde tempos imemoriais, as populações dos territórios ocupados foram vítimas indefesas de todas a pilhagens e violências de uma soldadesca desbragada: em especial as mulheres, como bem se sabe.
Finalmente, a espionagem e o “Intelligence” deram aqui um novo salto em frente, em articulação com as técnicas inventivas das “tropas especiais” que, dissimuladamente e sem uniforme (arriscando, portanto, logo o fuzilamento), praticaram golpes-de-mão, sabotagens, colocação de minas, recolha de informações, etc., atrás das linhas inimigas.
O nazi-fascismo e o expansionismo japonês foram finalmente vencidos em 1945, graças à coragem de ingleses, ao sacrifício do povo russo (a partir do Verão de 1941) e à potência militar-industrial norte-americana, que disso tirou proveito posterior. E se o moral dos combatentes dos aliados euro-atlânticos já não seria propiamente ditado pelo patriotismo (pois as liberdades falavam já mais alto), as suas atitudes e aptidões para a luta foram sendo observadas e encorajadas por psicólogos especializados, os homens servidos por melhores condições materiais (e não apenas honrarias) e ocorreram mudanças sociais significativas nos países aliados, como o envolvimento das mulheres no esforço de guerra ou a entrada em força dos negros americanos no seu quadro nacional, que terão melhor motivado os combatentes, para além da repulsa causada por certos métodos bárbaros usados pelos países do “Eixo”. E o pós-guerra selou o afundamento do antigo espírito aristocrático-militarista japonês e prussiano.
No quadro da “guerra fria” entre o “Ocidente” e o “bloco comunista” (1948-1992) reinou uma paz oficial, só aqui e ali perturbada por guerras localizadas e de mais ou menos curta duração (Palestina, Coreia, Indochina, Cuba, Argélia, colónias portuguesas, Malvinas e mais alguma outra). Aqui predominaram os conflitos “assimétricos e de baixa intensidade” geralmente designados por guerra revolucionária ou subversiva, os quais recuperaram a antiga concepção táctico-estratégica das guerrilhas mas agora com largo uso de camponeses-combatentes, “santuários” de treino situados em territórios vizinhos, mobilização clandestina das populações amigas, emboscadas a forças adversárias em deslocamento, minagem de itinerários, acções terroristas, infiltração de informadores e emprego de armas ligeiras modernas, as quais todavia podiam evoluir para outras com maior poder destrutivo (artilharia, foguetes) em fases finais decisivas para a obtenção da vitória.
A isto, as forças da “contra-insurreição” opuseram diversos dispositivos militares e de “acção psico-social”, usaram o helicóptero e a rápida evacuação aérea dos feridos, mas apostaram sobretudo no emprego das tais “forças especiais” (com métodos semelhantes aos do adversário mas sem uma população onde estivessem “como peixe na água”), as quais, a despeito da sua superioridade técnica, não puderam geralmente obter resultados concludentes, fosse por más decisões políticas superiores, fosse por desagregação do seu próprio bloco social (com deserções e fuga maciça à conscrição, divisões na opinião pública, desafecção dos seus próprios quadros militares mais jovens e mais em contacto com as dificuldades do “mato”, enquanto a confortável distância os estados-maiores congeminavam operações irrealizáveis, etc.).
De facto, esta estratégia mostrou-se vencedora no médio-longo prazo, permitindo uma mais rápida ascensão à independência política dos últimos territórios de colonização ocidental (1946-1974), bem como a manutenção de situações instáveis (nem guerra, nem paz) em vários países ou zonas de fronteiras (Balcãs, Médio-Oriente, etc.).
A ameaça “terrorista” que tem incidido particularmente sobre os países da Europa Ocidental e Estados Unidos da América, provindo sobretudo de movimentos islâmicos radicalizados, não deixa de ser uma forma adaptada daquela mesma estratégia, com os enxertos trazidos pelas experiências esquerdistas ocidentais da “luta armada” e da “guerrilha urbana”, agora jogando a fundo com o efeito amplificador dos meios audiovisuais de comunicação social. Por outro lado, os actores dirigentes dessas novas formas de acção política violenta apresentam-se de modo cada vez mais informal e difuso, sendo difícil chegar até eles para entabular processos negociais que poupassem vidas e destruições, e ficando incerto até que ponto sejam governos institucionalmente reconhecidos que, na sombra, os possam estar a financiar, ajudar ou tentar “usar” em proveito próprio.
Face a isto, o extraordinário desenvolvimento tecnológico das armas actuais (mísseis, satélites, ciber-espionagem e condicionamento psicológico, etc.) e os sistemas orgânicos de segurança e defesa em vigor parecem talvez pouco credíveis. Fala-se já no ciber-espaço como uma “4ª dimensão” das guerras futuras, de que desde já observaríamos sinais na “pirataria” que vem interferindo com o funcionamento de grandes empresas e serviços públicos, perturbação de processos eleitorais, “intoxicação” informativa, etc.
Mas, por outro lado, também é verdade que as ameaças “convencionais” (ou mesmo a “chantagem nuclear”) não desapareceram, vistas as disposições e atitudes de grandes potências armadas como são a China ou a Rússia, ou agora as indefinições de uma América sujeita a declarações e decisões surpreendentes dos seus principais dirigentes políticos. Ora, quase todos os países (no Ocidente) deixaram de ter preocupações de defesa “externa” relativamente ao seu território – tanto quanto relativamente à população que o habita (nacional, residente ou visitante) –, um e outra deixados agora apenas ao cuidado das forças de segurança e geridos sobretudo com instrumentos de influenciação psicológica e propagandística (com a Justiça e o Intelligence na retaguarda), o que, manifestamente, para além de contentar certos interesses, também tem os seus limites.
As forças armadas da actualidade, altamente profissionalizadas e muitíssimo menos numerosas do que no passado foram, não deixam contudo de necessitar de integrar pessoas – agora, tanto homens como mulheres – recrutadas na sociedade civil e que com ela mantêm laços pessoais indestrutíveis, onde também deve subsistir o vínculo da cidadania. É talvez aí um dos terrenos onde se jogue um pouco do nosso futuro.
Sociólogo. Professor catedrático aposentado e Professor Emérito do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa.