Nº 2613 - Outubro de 2019
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Editorial
General
José Luiz Pinto Ramalho

Esta edição da Revista Militar é dedicada aos assuntos da Saúde, face ao que o Tema representa para os militares, quer no serviço ativo quer para os que se encontram na situação de reserva e reforma, assim como para a garantia do apoio neste domínio à Família Militar e aos Deficientes das Forças Armadas (DFA). A evolução da situação, desde a chamada reforma do Sistema de Saúde Militar (SSM), materializada pela criação do Hospital da Forças Amadas (HFAR) e encerramento dos hospitais dos Ramos, a astenia de capacidades do Instituto de Apoio Social das Forças Armadas (IASFA) e não financiamento da Assistência na Doença aos Militares (ADM), a par das orientações recentes do Ministro da Defesa Nacional (MDN) para o setor, são de molde a reforçar as preocupações do universo social que por este deveria ser apoiado. Nas orientações produzidas prevalece a visão economicista, a ausência de quaisquer preocupações no sentido da garantia daquele apoio social e um desconhecimento sobre o que deve ser o SSM e as especificidades de cada Ramo, relativamente ao mesmo.

A anunciada reforma consistiu na criação do HFAR, como resultado de uma ótica reducionista e economicista, decorrente do processo de concentração dos hospitais militares em funcionamento na região de Lisboa, subordinada a um calendário político, disponibilizando um investimento mínimo, alheado das recomendações institucionais e dos direitos e garantias de assistência aos utentes; essa reforma produziu uma integração atabalhoada de serviços médicos e de diagnóstico, que se traduz num HFAR a funcionar com manifestas dificuldades por insuficiências de recursos humanos, de valências e de infraestruturas, de deficiente resposta a situações de urgência, o que corresponde a uma sobrecarga da ADM e a procura de respostas na urgência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), agravando o funcionamento deste.

Em todo o processo reformista conduzido de forma autocrática pela Tutela, sem consideração pelos alertas e propostas dos Ramos, nunca se consideraram os princípios básicos para o dimensionamento de um SSM, como peça de um sistema de defesa nacional credível. O MDN não foi capaz e continua a não ser, de definir e caracterizar com clareza, um conceito da cadeia de saúde militar e daquilo que acontece ou pode acontecer, em termos operacionais num Teatro de Operações e qual a capacidade de resposta que aí deve existir, a par da estrutura de apoio de retaguarda que deve funcionar no Território Nacional, designadamente, como garantir a medicina operacional, a hospitalização, os cuidados primários e o serviço de urgência, a medicina assistencial, assim como os cuidados continuados e paliativos, em suma, um SSM onde se insere, naturalmente, o IASFA.

É um erro avaliar e estudar o SSM segundo uma ótica administrativa civil, subjacente a um funcionamento do SNS em tempo de paz. O que distingue o SSM é o carácter do seu apoio sanitário em termos operacionais, as circunstâncias de tempo e de lugar e as expectativas de resposta subsequente e articuladas na retaguarda; em relação à primeira, tem a ver com o número e simultaneidade dos feridos que é necessário tratar e estabilizar, quanto à segunda, tem a ver com as condições em que o apoio sanitário é prestado e, por último, com que meios e com que oportunidade se fazem as evacuações para a retaguarda e a vocação de resposta das infraestruturas de acolhimento, os hospitais militares.

Quer isto dizer que o SSM deve ser dimensionado para acolher e tratar, para além dos utentes normalmente estimados para o tempo de paz, mas também para um acréscimo previsível, quer da necessidade do incremento do Sistema de Forças Nacional quer pelas baixas expectáveis decorrentes de uma crise ou de um conflito de média intensidade em que o país seja envolvido; no domínio hospitalar, com evidente incidência operacional, a OTAN preconiza ainda que os países membros devam dispor, como resposta às novas ameaças bioquímicas, de uma capacidade de resposta, que envolva uma infraestrutura hospitalar dedicada, que proporcione uma possibilidade de internamento entre 50/100 camas com contenção biológica, reserva de meios de tratamento, meios de evacuação específicos e orientados para esta situação e profilaxia e formação especializada de pessoal médico e paramédico, aptos a responder à necessidade de tratamento de uma centena de casos agudos.

Este acréscimo instalado ou capacidade sobrante dos hospitais militares constitui efetiva reserva estratégica do SNS, para picos epidémicos ou situações de catástrofe, pode ser parte ativa de resposta regional no domínio das urgências hospitalares e das outras missões de interesse público e assumir o apoio na saúde do pessoal fora do serviço ativo, dos DFA e da Família Militar, para além de outros protocolos que seja adequado estabelecer, explorando e potenciando áreas de excelência e específicas do SSM, como sejam as medicinas aeronáutica e hiperbárica.

Para além do referido, a Tutela prosseguiu a pretensa reforma, confundindo e ignorando as especificidades, condicionalismos e grandes objetivos dos subsistemas de saúde que materializam o SSM: as necessidades específicas de cada um dos Ramos em matéria de apoio sanitário; a ADM; e o IASFA. Se em relação aos dois últimos as soluções podem ser encontradas através de legislação e financiamento adequado, relativamente às necessidades de capacidades específicas de cada um dos Ramos para responder no domínio da saúde, estas devem ser respeitadas e não desvalorizadas, e o êxito de qualquer reforma na saúde dependerá desse reconhecimento.

Se, no caso da Força Aérea e da Marinha, o apoio na saúde é prestado fundamentalmente em infraestruturas hospitalares, ou no caso da navegação marítima, nos navios ou a partir deles com evacuações para as infraestruturas já referidas, relativamente ao Exército, este deve ser capaz de levantar unidades sanitárias que acompanhem as tropas em operações, estabelecer hospitais de campanha e responder neste domínio, junto das populações no quadro das outras missões de interesse público.

O Módulo Cirúrgico Móvel é o elemento fundamental da estrutura hospitalar de campanha que deve, de acordo com a doutrina OTAN, constituir o apoio operacional de uma Brigada ou “Battle Group” em operações, capacitada para o desempenho dos níveis de tratamento designados por ROLE 2 E, que faz a transição entre a triagem e a cirurgia de controlo de danos e possibilita a acção de evacuação para a cirurgia mais especializada e para os cuidados intensivos e pós-operatórios. Aquela estrutura hospitalar de campanha deve ter capacidade para, na frente, destacar equipas médicas aptas a realizarem cirurgias de emergência essencial, com a prioridade de salvar vidas e possibilitar a evacuação para a estrutura hospitalar.

Perante esta reflexão e a realidade do SSM atual, são legítimas as dúvidas quanto às capacidades existentes, assim como o empenhamento político em as alcançar, face às resoluções últimas que são conhecidas. Mas cabe também a questão: a quem serve um SSM, que não cumpre na totalidade a sua missão institucional e não tem capacidade para apoiar cabalmente, o universo dos servidores militares, no ativo e pensionistas, os Deficientes das Forças Armadas e a Família Militar?

Uma reforma do SSM apenas centrada numa visão minimalista do HFAR e na persistência das insuficiências e deficiente financiamento para o funcionamento do IASFA, não credibiliza o SSM, não motiva os recursos humanos dedicados à saúde, mina a confiança que deve existir no universo que tem a expectativa de ser por ele apoiado e coloca um acréscimo de pressão financeira e económica na ADM e na imagem do IASFA, face à sua residual capacidade de resposta.

Relativamente à ADM, importa referir o que foi transmitido às Chefias Militares, pelo MDN, no seguimento da assinatura do Memorando de Assistência Financeira ao país e que passo a citar: ”os cortes previstos para o conjunto dos sistemas públicos de assistência na doença, no acordo com a troika, não afetará a especificidade e autonomias próprias do regime específico dos militares (…) essa redução far-se-á preservando o regime da ADM, que é uma dimensão associada à condição militar e é extensível à família dos militares” (Lusa e DN, 7/5/2011). Compromisso de que a Instituição Militar continua a ser credora.

Querer fazer mais e melhor, ampliar capacidades e fazer evidência de competência e excelência, não pode constituir uma ilegalidade e ser objeto de crítica ou de reprovação. Quem é que está contra um SSM de grande prestígio, de grande competência, com áreas de excelência, que se constitua como uma referência nacional, no domínio da saúde, a bem da Instituição Militar e do País?

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General

José Luiz Pinto Ramalho

Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964. 

Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.

Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.

Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.

REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia