Nº 2613 - Outubro de 2019
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
No dealbar da Pletismografia em Portugal
Major-general
Esmeraldo Alfarroba

Entre as diversas missões dos Serviços de Saúde Militares tem particular relevo a selecção de pessoal, no contexto do recrutamento e a sua avaliação posterior, em caso de doença, ferimentos ou acidentes, nomeadamente, em situações de guerra.

De uma boa selecção depende a escolha dos elementos mais válidos, capazes de exercer as acções de que forem incumbidos, sem limitações físicas ou anímicas.

Por outro lado, quer por uma pronta capacidade assistencial, extensiva à família militar, quer por uma correcta avaliação médico-legal, transmite-se a certeza e confiança de não ser descurado o apoio em caso de doença, acidente, trauma ou suas sequelas.

Estas componentes da Medicina Militar contribuem para que a saúde, como um todo, seja indispensável e decisiva para o moral e bem-estar dos combatentes, seja um factor crítico e multiplicador do potencial de combate, disponibilizando os militares envolvidos para as dífíceis e muito difíceis tarefas operacionais, na exacta medida em que os liberta psicologicamente de preocupações e ameaças de constrangimentos, presentes e futuros, pelo menos, quanto à doença.

O século passado foi vivido permanentemente com o espectro das doenças infecciosas, razão de, na esfera militar, haver um Hospital unicamente direccionado para estas patologias – o Hospital Militar de Belém (HMB), também designado num período intermédio da sua existência como Hospital Militar de Doenças Infecto-Contagiosas (HMDIC).

A localização do Hospital considerava-se esplêndida para a prática da infecciologia, na meia encosta solarenga da Ajuda, todo virado a sul, num edifício construído por frades mendicantes (Eremitas Descalços de Santo Agostinho) que, após o terramoto de 1755, viram o seu convento na Boa-Hora destruído e ali foram construir a Igreja de Nossa Senhora da Boa-Hora e o convento (razão para aquela zona ser designada, ainda hoje, de Boa-Hora à Ajuda).

Figura1 – Igreja da Boa-Hora e Hospital Militar de Belém.

 

O belo edifício, de arquitectura tipicamente pombalina (figura 1), foi confiscado à Ordem Religiosa, em 1834, na sequência das lutas liberais, pelo decreto de Joaquim António de Aguiar, o “mata frades” e foi Hospital Militar, a partir de 1890 (figura 2).

No início, foi hospital geral, tendo sido elaborada uma descrição pormenorizada da sua evolução e quotidiano, pelo Tenente Médico Miliciano Gilberto Monteiro, no seu livro intitulado “Esboço Histórico do Hospital Militar de Belém”, editado em 1944.

Nesse texto ressalta que o Hospital, tal como as pessoas, teve períodos de apogeu, mesmo brilho e notoriedade, e noutros foi ofuscado pela subalternização e apagamento, coincidindo, tal como é habitual nas estruturas militares, no primeiro caso, com os ventos de guerra e, no segundo caso, com os períodos de paz.

Figura 2 – Azulejaria – início da actividade hospitalar.

 

A primeira referência a um Serviço de Tisiologia é em 1941, pela acção do Capitão Médico Norberto Lima Coelho de Magalhães, transferido do Hospital Militar Principal (HMP), onde era assistente do Serviço de Clínica Médica e vogal da Assistência aos Tuberculosos do Exército (ATE).

Da leitura daquele livro ficamos a saber que, na década de 1940, havia um bom apoio laboratorial, desenvolveu-se a radioscopia, executava-se pneumotorax terapêutico, durante o internamento, os doentes aumentavam de peso, o que pressupõe alimentação abundante e a quem era diagnosticada tuberculose era enviado para o Caramulo.

Em toda a década de 1960, até meados dos anos setenta do século passado, Portugal viu-se envolvido numa guerra pela manutenção das possessões em África.

Para fazer face à missão nestes territórios foi necessário as Forças Armadas mobilizarem tropas do continente europeu em número elevadíssimo (cerca de 900.000 homens, entre 1961 e 1974), para efectuarem períodos de permanência nos três teatros operacionais – Angola, Guiné e Moçambique –, por cerca de dois anos, pelo menos.

Era neste ambiente que o trabalho médico se desenvolvia nos Hospitais de retaguarda, em Lisboa, no HMP, localizado na Estrela e, no então, designado HMDIC, situado em Belém.

Ao HMDIC competia efectuar as medidas preventivas relativamente aos militares mobilizados, o que fez por lá passar milhares de soldados antes do embarque e receber doentes com suspeita de tuberculose, para diagnóstico e tratamento, bem como outras doenças pulmonares ou infecciosas.

A avaliação funcional respiratória era efectuada por espirometria (figura 3), com equipamentos de registo moroso e pouco fidedignos, havendo dificuldade na obtenção dos volumes internos pulmonares.

Figura 3 – Espirómetro de campânula marca Pantestor (HMB, anos de 1960).

 

Ao Chefe de Serviço do Serviço de Fisiopatologia Respiratória, o então Capitão Médico Viegas Correia, Pneumologista, era um desiderato a obtenção de  equipamentos tecnologicamente mais evoluídos, para dar resposta, entre outros, a dois tipos de problemas:

– Por um lado, no momento da selecção, pretendendo obter a melhor avaliação possível para caracterizar correctamente as diversas situações clínicas e para identificar, com rigor, nos casos de queixas de dispneia asmatiforme, a asma brônquica;

– Por outro lado, no momento da alta, para atribuir o mais correcto grau de desvalorização.

Sempre procurando a melhoria das condições dos doentes, foi iniciada a construção de um novo edifício hospitalar (figura 4) com capacidade para 250 camas, com verbas provenientes dos descontos dos militares para a luta antituberculosa – Assistência aos Tuberculosos das Forças Armadas (ATFA).

Figura 4 – Novo edifício do HMB (1973).

 

Foi nestas circunstâncias que surgiu a oportunidade, com a colaboração e assessoria do Prof. Doutor António Couto (figura 5), regressado de uma estadia prolongada na Alemanha, onde se doutorou, transmitindo a sua experiência, para que a aquisição do pletismógrafo corporal fosse uma realidade.

Não foi fácil a colocação dos equipamentos no 6.º piso de um Bloco Hospitalar ainda em obra e sem elevadores a funcionar. Valeu o soldado, os generosos socorristas que, à força de braços, carregaram os caixotes, de material pesadíssimo, até ao local de instalação pelos técnicos especializados.

    Fonte: Jornal do Exército, n.º 158, de Fevereiro de 1973)

Figura 5 – Demonstração pelo Prof. A. Couto, ao Ministro da Defesa e do Exército, sobre o funcionamento do pletismógrafo no dia da inauguração.

Figura 6 – Primeiro Pletismógrafo (Jäeger) em Portugal.

 

E foi assim que, em 15 de Janeiro de 1973, na cerimónia da inauguração do novo edifício hospitalar, o Serviço estava totalmente apetrechado com equipamentos altamente sofisticados para a época e únicos em Portugal, dispostos em mais do que uma sala:

– Um pletismógrafo (figura 6) composto por uma cabine hermeticamente fechada com porta de vidro que dispunha de um pneumatacógrafo e um sistema valvular para obtenção do Volume de Gás Intratorácico;

– Um conjunto de vários módulos constituídos por termómetros e higrómetros, para obtenção das condições ambientais, integradores de pressões e volumes, em consonância com as diversas amplitudes, mostradores e escalas para análise das pressões bucais e da cabine e sua programação interactiva;

– O registo era efectuado num registador XY, onde se obtinham os traçados dos diversos parâmetros: Capacidade Vital, Volume Expiratório Máximo por Segundo, Curva Débito/Volume e ansas Alfa e Beta, calculados posteriormente, pelo técnico de cardiopneumologia, com utilização de uma régua, um transferidor e uma régua padronizada própria para a determinação das Resistências das Vias Aéreas e do Volume do Gás Intratorácico;

– Um outro grande módulo era composto por um equipamento com mostradores e diversos comandos, entre os quais o analisador de monóxido de carbono utilizado para a obtenção da transferência alvéolo-capilar do CO, por método de Steady State, colocado num segundo módulo (figura 7);

– Outros meios disponíveis permitiam determinar os volumes-minuto e corrente e a frequência respiratória. Através do analisador de Oxigénio, obtinha-se o consumo de O2 e os seus equivalentes ventilatórios e com o analisador de Dióxido de Carbono determinava-se a retenção de CO2 e seus equivalentes ventilatórios;

– Um computador activado através de cartão magnético permitia o armazenamento em disco de fita magnética e uma impressora efectuava o registo em papel;

– Outras peças eram um cicloergómetro, um ergómetro e um aparelho para doseamento dos gases no sangue, de marca Eschweiler.

Deste modo, foi possível fazer juz à melhoria das tecnologias de saúde, possibilitando a melhor avaliação do foro pneumológico.

Após a mobilização para a Guiné do Dr. Viegas Correia, em finais de 1973, a Chefia do Serviço foi exercida pelo Dr. Galvão Lucas, entretanto contratado.

A utilização destes equipamentos e a consequente determinação quantitativa de parâmetros fidedignos provocou o estabelecimento de regulamentação para as Juntas Médicas da ATFA, plasmada no Decreto Regulamentar n.º 56/78, de 30 de Dezembro, do Conselho da Revolução, promulgado na Presidência do General António Ramalho Eanes, através de uma tabela de desvalorização funcional resultante das lesões tuberculosas, também utilizada, por similitude, no meio civil.

Figura 7 – Módulos da Difusão e Ergopneumotest de marca Jäeger.

 

Outra actividade, não negligenciável, foi permitir a execução de trabalhos de investigação (figura 8), área a que o Hospital deu sempre particular atenção e foi determinante para a manutenção do reequipamento e consequente desenvolvimento hospitalar nas décadas seguintes.

O HMDIC, de novo designado por HMB, a partir de 1990, manteve sempre esta tónica de actualização e modernidade (figura 9), porque, aos combatentes dos teatros de operações das derradeiras Campanhas de África, foram-se juntando os das missões iniciadas posteriormente, no âmbito da NATO, ONU, União Europeia e Cooperação Técnico-Militar com os países de expressão portuguesa. Esta realidade obrigou a continuar a insistir no apoio à saúde operacional, epicentro da razão de ser do Serviço de Saúde Militar, não descurando o apoio aos deficientes em combate.

Figura 8 – Capa de separata da “Revista Portuguesa de Medicina Militar” com a publicação de comunicação efectuada em 1974 no Laboratório de Fisiopatologia Respiratória do, então, HMDIC.

 

Sociologicamente, todas as guerras têm fim e é assim que o entende vulgarmente a sociedade civil em que estamos inseridos, mas os profissionais de saúde, em contacto com estes doentes, sabem que as guerras só terminam quando morrer o último homem que nelas participou, carregando eles, até ao fim, as sequelas, as perdas pessoais, as ambiguidades perturbadoras e insuportáveis, os brutais dramas humanos, razão para que, no que se refere à avaliação funcional respiratória, tenhamos de ter os meios mais sofisticados e actualizados, para determinar a mais justa desvalorização do foro pneumológico.

Nesta história de sucesso os intervenientes foram médicos, enfermeiros e técnicos, militares e civis, com uma vontade inabalável de demonstrar a valia das suas propostas e bem-servir a população militar. Quebraram barreiras económicas, legislativas e burocráticas, foram o farol do desenvolvimento da ciência médica no âmbito da Pneumologia, espantando a comunidade científica da época e tornando o Hospital Militar num escol de modernidade e saber.

Figura 9 – Medalha comemorativa do 10.º aniversário do Laboratório de Fisiopatologia Respiratória com referência ao pioneirismo da informatização no estudo da função respiratória (desenho de E. Alfarroba).

 

Hoje como ontem e em rápido crescendo, qualquer organização não baseada em inovações tecnológicas, constantemente actualizadas, torna-se obsoleta e, por isso, inapta para actuar em ambiente de decisão sob incerteza. Simultaneamente, é pelo recurso às tecnologias mais avançadas, através da obtenção de equipamentos modernos e sofisticados, que se consegue elevar a motivação dos profissionais de saúde, quer militares quer civis, prosseguindo um trilho de qualidade hospitalar e assistencial e obtendo a confiança, neste caso, de militares e familiares.

Fazendo um balanço retrospectivo, ressaltam muitos outros exemplos de pioneirismo nos Hospitais Militares, recordando, sem pretender ser exaustivo:

– A vacinação pela BCG e a câmara hiperbárica, na Marinha;

– No Exército, a fibroscopia brônquica, a lavagem bronco-alveolar e as áreas de pressão negativa no HMB e a hemodinâmica, a ecografia e a cirurgia laparoscópica no HMP;

– As Medicinas Aeronáutica e Nuclear, na Força Aérea.

É este o espírito do Hospital Militar em que gerações e gerações de médicos militares se dedicam com labor e de forma efectiva, apoiados por uma hierarquia acreditando no Serviço de Saúde, sua acção e eficácia.

Nesse percurso, houve confrontos com dificuldades orçamentais, impossibilidades tecnológicas, falta de desenvolvimento dos meios próprios face ao progresso, constrangimentos por teias administrativas burocráticas, até a própria realidade humana, por vezes redutora, levando a questiúnculas menores e sem um objectivo edificante, mas com perdas de tempo irrecuperável.

Actualmente, a preparação, o planeamento e a condução do Hospital Militar não pode dispensar tecnologias permanentemente actualizadas como recurso-chave, tais como, a Ressonância Magnética e a cirurgia robótica num Bloco Operatório renovado, entre outros.

Herdeiro deste Serviço de Fisiopatologia Respiratória do HMB, compete actualmente ao Hospital das Forças Armadas – Pólo de Lisboa (HFAR-PL) continuar esta missão.

Esperemos que as nuvens sombrias não tenham reflexos limitadores sobre o processo de crescimento do hospital e que permita, para além da Pletismografia, manter outras técnicas como a da avaliação cardio-respiratória do esforço físico, tão importante para a medicina castrense.

Termino com uma palavra de esperança, para que o novo edifício de Saúde Militar, fundado nos valores e na camaradagem das Academias, seja sementeira urgente de renovação e integração na prática duma Medicina moderna e de qualidade.

 

AGRADECIMENTO: Ao técnico de cardiopneumologia Luís Quintão Caldeira pela colaboração em detalhes de pormenor deste artigo.

 

Referências bibliográficas

ALFARROBA, Esmeraldo – Apontamentos sobre o Hospital Militar de Belém e a Pneumologia, in TELES DE ARAÚJO, Artur, PINA, Jaime e GRAÇA FREITAS, Maria da, História da Pneumologia Portuguesa, 1994, ed. Sociedade Portuguesa de Pneumologia.

GOMES, Abílio e ALFARROBA, Esmeraldo – Resenha Histórica do Hospital Militar de Belém, 1995, ed. HMB, Lisboa.

FREITAS E COSTA, Manuel – Alguns aspectos da história da Pneumologia, in SEGORBE LUÍS, António e SOTTO-MAYOR, Renato – Atlas de Pneumologia, 2010, ed. Permanyer Portugal e GlaxoSmithKline, Vol. 3:1851-3, Lisboa.

GALVÃO LUCAS, BUGALHO DE ALMEIDA e TEREZA NOGUEIRA – Interesse diagnóstico da ergometria em Fisiopatologia Respiratória, 1974, in Revista Portuguesa de Medicina Militar, Vol 22, n.º 2, Lisboa.

MONTEIRO, Gilberto – Esboço histórico do Hospital Militar de Belém, 1946, ed. da tipografia da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, Lisboa.

MONTEIRO, Gilberto – Esboço histórico do Hospital Militar de Belém, in Boletim da Direcção do Serviço de Saúde Militar, 1944, n.º 3 e 4, ed. da Tipografia da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, Lisboa.

PEDRO, A. Oliveira – Esboço histórico do Hospital Militar de Belém, in HMB-HMDIC, Passado, Presente e Futuro, 1990, ed. HMB, Lisboa.

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Major-general

Esmeraldo Alfarroba

Pneumologista, ex-Director do Hospital Militar de Belém. Chefe do Serviço de Fisiopatologia Respiratória (1989-2002).

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by COM Armando Dias Correia