Nº 2614 - Novembro de 2019
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Uma estratégia quando não se sabia
Coronel
Luís Alves de Fraga

Nota explicativa para o leitor

O Autor teve sorte no facto de, ao longo da vida, ter adquirido valências cognitivas que passam pela contabilidade, economia, finanças, sociologia, política, estratégia, história, geopolítica, antropologia, relações internacionais e outras mais.

Desde sempre, foi um interessado na solução de problemas. Poderia ter sido polícia ou jornalista de investigação, mas orientou-se para a pesquisa de situações históricas carecidas de melhor esclarecimento, de mais completa explicação. Para ele, de há muitos anos até hoje, a curiosidade animou-o a não se satisfazer com a dilucidação vulgar, buscando outras, resultantes de novas perspectivas para olhar o mesmo assunto.

Uma das suas preocupações é a de não distorcer os factos, por forma a que passem a confirmar os seus pontos de vista. Para o Autor não há acasos; o acaso é uma forma de esclarecer aquilo que se não consegue explicar, por isso, todos os caminhos estão em aberto e todas dúvidas são possíveis. É assim que coloca perante a crítica dos Leitores os assuntos que vai tratar.

 

Perspectiva metodológica

O general André Beaufre, grande teórico da estratégia, começa o seu livro mais notável dizendo que toda a gente faz estratégia não sabendo que a faz. E é verdade!

Isto leva-nos a podermos afirmar, com alguma segurança, que o ardil, a manha, enfim, a estratégia faz parte, desde sempre, da vida do Homem. Há condições para que seja assim; se se não verificarem, nada do que dissemos é verdade.

Com efeito, para se definir uma estratégia, tem de existir um conflito – nem que seja potencial ou meramente uma situação de concorrência ou competição – entre seres vivos capazes de raciocínios lógicos, ou seja, é imperioso haver capacidade dialéctica. Ora, o Homem, sendo eminentemente social e sociável, é, em simultâneo, conflitual. Porque sempre foi assim, chegamos, com relativa facilidade à conclusão da existência de estratégias ou relacionamento estratégicos, desde a formação do mais remoto agregado humano. Isso dá-nos liberdade para falar de estratégia sem estarmos a cair em anacronismos. Afinal, conseguimos ir um pouco mais longe do que o general Beaufre.

Depois deste esclarecimento introdutório com cariz metodológico e científico, é-nos possível passar, sem hesitações, para a temática que há muito nos intriga e nos leva a reflectir com alguma ousadia, enquanto mourejamos por ser cautelosos: D. Afonso Henriques e o modo como conseguiu ser rei, fundando Portugal. Note-se, não temos a pretensão de fazer História; interessa-nos a mera especulação, admitindo hipóteses capazes de possuir alguma verosimilhança e, assim, encontrar outras explicações, com algum grau aceitabilidade, embora discutíveis. Não nos move recriar a História, mas ajudar a explicá-la, mesmo seguindo caminhos não comprovados documentalmente. Não nos eximimos ao estudo directo e exaustivo de Alexandre Herculano, aquele historiador que tem servido de ponto de partida para todos os respeitáveis e probos medievalistas que se lhe seguiram. Não é a obra deles que pomos em causa; antes nos interessa especular sobre esse trabalho sério e colocar hipóteses alternativas àquilo que dizem, por parecerem poder ser postas.

 

Por quê Henriques?

Aos amantes da História de Portugal não terá passado despercebido que ao primeiro rei sejam sempre atribuídos dois nomes Afonso e Henriques. Nunca mais tal situação se repetiu ao longo de séculos. Contudo, a prática vem, pelo menos, dos anos de quinhentos ou anteriores (Duarte Galvão, cronista, no começo do século XVI, assim identifica o primeiro rei de Portugal). É certo que Afonso VII de Leão e Castela, seu primo, porque filho de uma meia-irmã de sua mãe, era tratado na juventude por Afonso Raimundes, recolhendo do pai o segundo nome, assim no-lo identifica Herculano, no entanto, passou à História como Afonso VII.

Deixemos de lado esta questão e avancemos para uma outra curiosidade, também estranha, relacionada com o fundador do reino.

Analisando o tempo de vida de todos os monarcas da primeira dinastia – de 1109 a 1383 – concluímos ter sido D. Afonso Henriques aquele que quase chegou aos oitenta anos; morreu com setenta e seis.

Vejamos quais as idades de falecimento da descendência de Afonso I: Sancho I, 57 anos; Afonso II, 37; Sancho II, 39; Afonso III, 68; D. Dinis, 64; Afonso IV, 66; Pedro I, 46; e, por fim, Fernando I, 37 anos.

De nove monarcas, só foram sexagenários quatro, ou seja, uma fracção menor, verificando-se o caso ímpar de D. Afonso Henriques ter vivido, no geral, mais uma década do que os mais velhos dos seus descendentes.

Vamos, agora, juntar mais um elemento a esta teia: se o conde D. Henrique, pai de O Conquistador, morreu em 1112 temos que o filho tinha a idade de três anos à data do falecimento. Das crónicas e da tradição – sem entrarmos em muitos pormenores – sabe-se que a criança foi entregue aos cuidados de uma grande, importante e poderosa família de Entre-Douro-e-Minho, a de D. Egas Moniz de Ribadouro (Paulo Alexandre Loução e Miguel Sanches de Baena).

Temos os ingredientes necessários para avançar para a primeira parte da nossa hipótese. Seguir-se-lhe-á a segunda.

Atingir setenta e seis anos de idade, no começo do século XII, era, estamos em crer, uma proeza só reservada a alguns homens gozando de excelente saúde. Terá sido o caso de D. Afonso Henriques? Ou haverá uma conjugação de factores a merecerem uma análise mais ousada?

Sabemos que Henriques era a forma medieva de se indicar que Afonso era filho de Henrique. Sabemos que Egas Moniz tinha um filho, também Afonso, O Moço, para se distinguir do filho de D. Teresa. Consta de crónicas ter nascido o filho do conde D. Henrique com alguma deformação física. Não carecemos de grandes provas para termos conhecimento da elevada mortalidade infantil naqueles séculos. Não temos dúvidas sobre as lutas constantes entre as dioceses de Braga, Toledo e Compostela para determinar a qual se deveria obediência, por razões de importância e antiguidade. Dúvidas também não há quanto ao clima de intriga e conflito entre os grandes senhores de Entre-Douro-e-Minho e os da Galiza, procurando uns desligarem-se dos laços de dependência e outros demandando o seu reforço. Havemos conhecimento de igual disputa ter existido entre o conde D. Henrique o seu primo D. Raimundo, conde da Galiza; desacordo que se prolongou para além de ambos através das suas viúvas com os apoios dos grandes senhores de ambas as regiões.

Sabido tudo isto, ocorre-nos, sem invocarmos ineditismo, a possibilidade de:

– O filho do conde D. Henrique e de D. Teresa não ter sobrevivido à maleita apresentada aquando do seu nascimento (tolheito das pernas, segundo a Crónica de 1419, condição que José Mattoso considera improvável, dada a distância temporal entre os acontecimentos e a escrita do relato);

– Egas Moniz, na defesa do interesse daqueles que desejavam libertar-se da dependência dos barões galegos, ter substituído o filho dos condes de Portucale por um filho seu, daí resultando a necessidade de cognominar o seu Afonso de O Moço;

– Para reforçar a certeza da sua atrevida decisão, fazer marcar que o outro Afonso era o Henriques, que perdurou ao longo dos séculos.

Sugerimos – somente sugerimos – esta hipótese, que poderá encontrar lastro de verosimilhança na longevidade de D. Afonso I de Portugal. Com efeito, se se verificassem as condições antes expostas, a única coisa que Egas Moniz não poderia alterar era o ano de nascimento do filho dos condes de Portucale. Assim se justificaria a longevidade do primeiro rei de Portugal, porque o substituto teria nascido alguns anos depois de o verdadeiro Afonso Henriques. Mas um outro facto poderá ajudar a dar alguma, embora fraca, consistência à nossa hipótese (trata-se de uma lenda, que talvez tenha certo fundamento de realidade): a célebre apresentação do velho Aio, em trajes de condenado e com o baraço ao pescoço, a Afonso VII de Castela, pelo facto de Afonso, dito Henriques, ter faltado à palavra dada; poderia admiti-lo ao filho dos condes, mas jamais ao seu próprio filho!...

Nada na documentação coeva dá garantias competentes para transformar as hipóteses sugeridas em conjecturas sem plausibilidade, por isso mesmo, temos a ousadia de as colocar, pois as lacunas documentais – há que levar em conta o silêncio documental sobre Afonso Henriques até à idade de catorze anos – permitem preenchê-las com pressupostos que não padeçam de anacronismos.

Terá, efectivamente, o primeiro rei de Portugal sido outro que não o legítimo? Jamais o saberemos, daí que possamos aventar hipóteses atrás de hipóteses tão aceitáveis, umas como outras. Atenhamo-nos aos factos documentados e nunca saberemos mais do que muito pouco sobre esse rei, que foi Conquistador e, também, Fundador.

 

A Estratégia de D. Afonso I

Como dissemos no início deste capítulo, a História serve para explicar o que aconteceu, pois não basta narrar. A narrativa, sem mais nada, liberta a possibilidade de se usar a História como se entender, mas, a explicação torna compreensíveis os factos, ainda que não haja forma de identificar se, na realidade, ela corresponde, exactamente, àquilo que esteve no pensamento de quem executou a acção. Contudo, a força da lógica, sem cometer anacronismos, pode colocar-nos no caminho certo. Eis a justificação para avançarmos com mais hipóteses sobre a estratégia de D. Afonso I, se é que a teve, ainda que deste conceito nada se falasse no Portugal do século XII.

Nada sabendo de Estratégia, o rei de Portugal sabia o que lhe interessava: conhecia o contexto em que se movimentava, os apoios com que poderia contar e as oposições que se levantavam à realização dos seus desejos. Assim, podemos dizer, estava definido o âmbito da estratégia a seguir, o mesmo é dizer, a dialéctica a usar para alcançar os objectivos por si tidos como importantes. É isso que, em grandes e largas linhas, vamos tentar provar.

 

O contexto

Dividamos em dois este tema: o interno e o externo, ainda que, em boa verdade, olhando os documentos e os relatos antigos, a parte endógena e a exógena se confundam, porque o sentimento mais dominante neste século recuado era o de, com alianças, promessas e recuos, os grandes interesses regionais se misturarem com os mais largos e ambiciosos prosseguidos pelos reis ou pretendentes a sê-lo. Necessariamente, socorremo-nos desta separação tão-só para facilitar a explicação.

No plano interno, admitimos, tudo era favorável ao jovem conde D. Afonso: a diocese de Braga disputava, junto da Santa Sé, a sua primazia como velha igreja visigótica que havia sido; os barões de Entre-Douro-e-Minho ambicionavam desligar-se das prisões que os ligavam aos senhorios galegos, desejando, talvez, sobreporem-se-lhes; os povos eram mansos, sujeitando-se aos senhores tradicionais. Um só obstáculo se lhe levantava: o bom entendimento – passado, parece, por um casamento depois de ter ficado viúva de D. Henrique – de sua mãe com os Peres de Trava, galegos importantes e dominantes. Não era despiciendo este escolho no caminho de uma independência e da ascensão ao trono de rei, deixando para trás a cadeira de conde ou duque como lhe chamavam na Santa Sé. Contava, está claro, com o apoio dos grandes senhores da terra portucalense e dos dignitários católicos desejosos de autonomia.

No plano externo, a situação era-lhe bastante adversa: Afonso VII, seu primo, não abria mão do condado portucalense e dispunha-se a fazer valer os seus direitos mesmo recorrendo à guerra, os grandes senhores da Galiza não abdicavam de estender a sua influência a Sul, sobre o condado de Portucale, junto a Coimbra era a fronteira onde combatiam os Mouros desejosos de chegar ao Norte, e, mais do que tudo, a Santa Sé não se mostrava interessada na criação de um novo reino cristão na Península.

 

Os apoios

Se fosse possível hoje D. Afonso I dizer-nos quais os apoios com que contava para alcançar os seus objectivos não teríamos de ficar espantados ao saber que ele nos indicava os poderosos senhores da terra de Entre-Douro-e-Minho, os altos membros do clero portucalense e alguns moçárabes importantes a viver nos reinos mouros da Península. E sabia porquê, embora, talvez, não nos dissesse! Mas nós vamos descobrir essas razões escondidas.

A vinda do pai de Afonso Henriques, D. Henrique, e a do primo deste, D. Raimundo, para a Península, tal como a de muitos outros nobres e cavaleiros francos, não se deve em exclusivo ao desejo de, por fé, combater contra os infiéis muçulmanos; essa tem sido a justificação mais fácil e mais conveniente para a Igreja Católica. O motivo mais animoso provém do tipo de economia da época.

Com efeito, não nos podemos esquecer que, no início do século XII, ainda se vivia segundo as regras e princípios feudais, os quais estabeleciam, com grande clareza e exactidão, a funcionalidade dos grupos sociais: o clero tinha por dever salvar todos, rezando, na luta contra o Demónio; à nobreza, cavaleiros incluídos, cabia defender todos dos ataques dos seus inimigos; e, por fim, o povo estava obrigado a trabalhar para todos, alimentando-os, para que fossem capazes de exercer as suas funções.

Como poderia a nobreza cumprir a sua finalidade funcional? Somente vivendo de e para a guerra – a qual era limitada, por força das intempéries, a determinados meses do ano, no seu conjunto, poucos – que procurava como forma de ocupação, mas, mais do que tudo, como forma de rendimento.

Na verdade, a fortuna estava na posse da terra, pois era dela que vinha o sustento. Contudo, na falta de terras, para ocupar ou conquistar, elas tinham de ser conseguidas, oferecendo serviços militares onde fossem necessários. A este destino estavam condenados os filhos segundos da nobreza feudal – armados cavaleiros e, por conseguinte, dispostos a lutar – e os nobres detentores de magras propriedades agrícolas. Cabia aos reis, em geral, providenciar pela satisfação desta fome de terra como forma de rendimento. Foi assim que D. Raimundo e D. Henrique acabaram na Península, espaço óptimo para fazer fortuna, dado o que faltava conquistar aos Mouros.

Não era só para estrangeiros que se oferecia a possibilidade exposta; dela deveriam e poderiam beneficiar os grandes senhores, no caso vertente, do condado portucalense. E, também, as ordens religiosas, de matriz militar ou não, que contribuíssem para a conquista ou para o povoamento. Todavia, a vida na corte do rei de Leão e Castela, bem como nos condados da Galiza e de Portucale, não era nada pacífica no tocante a relações interpessoais. A intriga, a traição, as alianças, seguidas de mudança de sentido, eram frequentes, constantes, mesmo. A ambição grassava por todo o lado e em todos os cantos. Era necessário saber viver, estando atento para onde viravam os ventos convenientes ao enriquecimento e à vantagem.

Quanto aos moçárabes – cristãos culturalmente absorvidos pelos islamitas ao longo de séculos – alguns deles, naturalmente impulsionados por razões económicas, estavam dispostos a colaborar, como quinta-coluna nos territórios islamizados, favorecendo D. Afonso e os seus cavaleiros na chamada reconquista.

Como se vê, D. Afonso tinha muitos para o apoiarem na persecução dos seus objectivos.

 

As oposições

Um projecto de independência do condado portucalense da suserania de Castela e de Leão impunha, em princípio, a elevação do conde à condição de rei. O desejo desta mudança tanto poderá ter sido resultado da vontade de D. Afonso como da vontade expressa pelos mais importantes senhores da terra que o rodeavam e aconselhavam. Tem-se personalizado esse desejo no primeiro rei de Portugal, mas mais sensato e ponderado seria dividi-lo em partes iguais entre ele e os seus próximos, fazendo dos inimigos daqueles que o aconselhavam e o apoiavam os inimigos comuns. É verdade, também, que já D. Teresa e, de certa forma, D. Henrique manifestaram vontade de fugir ao dever de vassalagem imposto por Leão, mas resta, de facto, ter certezas – quase impossíveis de se obterem – se era manifestação de independência ou vontade de desobedecer dentro da tradição medieval.

Identificando as oposições podemos assumir que eram, em primeira instância, os barões mais importantes da Galiza, pois que, por estar ao sul daquele território, o condado de Portucale constituía a área de expansão natural dos desejos desses insaciáveis senhores da guerra. Acrescia que, mais a sul, ainda havia campo para maiores expansões, conquistando terra aos Mouros. Também estes eram inimigos, especiais, do conde D. Afonso de Portucale, porque ambicionavam recuperar toda a parte da Península de onde haviam sido expulsos havia já séculos.

Chegados aqui, há que fazer um breve intervalo para explicar o que foi a presença islâmica naquilo que se veio a tornar Portugal.

Não é errado se dissermos que toda a Península, com excepção das Astúrias, foi conquistada pelos islâmicos, vindos do Norte de África, no ano de 716. Para termos uma vaga noção do que foi esse domínio no Norte do nosso território nacional, basta recordar que somente cerca de cento e cinquenta anos depois é que foram submetidos, pelos cristãos, os lugares onde hoje estão as cidades de Guimarães e Porto; Coimbra só definitivamente ficou em posse dos reconquistadores trezentos e trinta anos após a caída nas mãos do Islão. Deste modo, com números, se percebe bem a influência muçulmana e a dificuldade de desalojar aqueles que foram, realmente, senhores daquilo que agora é Portugal. Expulsar os Mouros da Península Ibérica foi um desafio de muitos séculos para os cristãos vindos do Norte, quando já nada os identificava com os povos peninsulares anteriores ao domínio muçulmano. E quanto mais os anos passavam menor era essa suposta identificação. Lamentavelmente não é esta a visão que nos foi (é?) transmitida pelos manuais escolares.

Então, D. Afonso, tendo de vencer três grandes oposições – já que a Santa Sé não concordava com a existência de tantas rivalidades entre cristãos – teve, garantidamente, de desenvolver manobras distintas para se posicionar rumo aos objectivos em mente. Se em determinadas circunstâncias podia aliar a guerra à diplomacia, noutras tinha somente de usar a última. É o que veremos mais à frente.

 

Os objectivos

Já percebemos que um dos objectivos de D. Afonso era conseguir a independência do seu condado, de modo a exigir para si, à Santa Sé e ao seu primo, Afonso VII, a condição de rei. Mas, se este era o intento primeiro, havia, para o alcançar, de cumprir outros, constituindo como que uma pirâmide. Assim, colocava-se no patamar imediatamente abaixo o reconhecimento do seu reino e da sua condição de rei pela Santa Sé; logo mais abaixo, tinha de conquistar território aos Mouros na zona ainda por eles dominada para atingir, de uma só vez, quatro outros objectivos: cair nas boas graças da Santa Sé, pagar os serviços prestados pelos seus cavaleiros na luta contra a moirama, cedendo-lhes senhorios de onde pudessem obter sustento para si, na velhice, privilegiar as ordens monásticas militares que o auxiliassem na conquista ou aquelas que ajudassem a repovoar as áreas ocupadas por islâmicos já subordinados ao jugo cristão e, por fim, ganhar dimensão geográfica suficiente que, dando dignidade ao seu reino o dignificasse a si como soberano.

Ia ser difícil gerir a manobra estratégica para satisfazer, um por um, os objectivos enunciados. Só conseguiremos mostrar a capacidade de O Fundador se, embora de forma aligeirada, conseguirmos seguir a acção.

 

A acção

Numa atitude de franca rebeldia e desassombro, não só contra D. Teresa, Fernão Peres de Trava e mesmo Afonso VII de Leão e Castela, D. Afonso, conduzido e apoiado pelo arcebispo de Braga, D. Paio Mendes – expulso do condado –, na catedral de Zamora, no dia de Pentecostes do ano de 1122, armou-se cavaleiro por suas próprias mãos. Era o começo da marcação dos seus objectivos: não aceitar subordinação feudal a nenhum senhor, por ser neto de rei, ainda que pela via bastarda.

Afonso VII de Leão percebe o alcance da atitude e, porque queria reduzir D. Teresa e Afonso à condição de vassalos, não deixa de puni-la, embora com algum atraso, em consequência de escaramuças já havidas entre senhores de Entre-Douro-e-Minho e senhores da Galiza, cercando o castelo de Guimarães, em Setembro de 1127. Se Afonso I persistisse na atitude conflitual, ainda que marcando as suas intenções políticas, teria, para ganhar tempo e oportunidade de, como afirma o historiador José Matoso (2014), «(...) não [usar], entre 1128 e 1139, o título de rei, mas de “príncipe” ou “infante”, o que significa, decerto, que não podia resolver por si próprio a questão da sua categoria política; isto é, devia admitir que ela dependesse também do assentimento de Afonso VII, que era, de facto o herdeiro legítimo de Afonso VI. Mas também não usou nunca o título de “conde” que o colocaria numa nítida posição de dependência para com o rei de Leão e Castela».

Do cerco resultou a promessa de prestar vassalagem ao primo rei e, ao mesmo tempo, este reconhecer as pretensões de Afonso ao governo no condado. Assim, o rei de Leão colocou-se ao lado do futuro rei de Portugal contra os interesses dos Trava e de D. Teresa. A única forma de o rei de Leão manter unida a herança de seu pai era obrigar à vassalagem aqueles que lha deviam, mas tal medida possibilitava-lhe uma outra que tinha em mente pôr em execução: fazer-se proclamar imperador e, para tal, tinha de ter reis dele dependentes. D. Afonso vai aproveitar-se da ambição do primo para alterar a sua designação, repudiando a de conde, passando, pouco tempo depois do cerco de Guimarães, à de infante, como já referido. Foi uma jogada estratégica de mestre: transformar o agressor em aliado.

Depois de resolvida a marcação de posição com Afonso VII o, então, pretendente ao governo do condado, apoiado nos companheiros mais próximos, começou por resolver a problemática interna, capaz de lhe tolher os movimentos futuros e, assim, procurou pôr termo à supremacia interna de D. Teresa, fosse ela ou não sua mãe, e de Fernão Peres de Trava. Quebrou, em Portucale, na batalha de S. Mamede, no ano de 1128, a vontade de ambos. Estava livre para se poder afirmar além-fronteiras. É assim que se lança contra a Galiza e conquista, ainda que temporariamente, Tui.

Pode parecer errado este afrontamento, mas, pensando estrategicamente, verificar-se-á que seria insensato iniciar uma acção belicosa contra senhores feudais adversos sem ter a retaguarda consolidada e protegida.

A luta a Norte, contra os grandes senhores da Galiza e o próprio Afonso VII, não foi longa. Em 1137, este último pôs em execução o seu desejo de uso do título de imperador da Hispânia – Leão, Castela e Galiza – e tendo, mais uma vez, Afonso de Portucale iniciado hostilidades na Galiza, foi impor ao impetuoso primo e infante o fim da guerra.

Pouco tempo durou esta trégua. Em 1140, novamente o intempestivo infante reabre a campanha contra a Galiza. Desta vez Afonso VII, em 1143, foi a Tui acompanhado de um legado papal, o cardeal Guido de Vico. Assinou-se a paz, embora se tenha perdido o documento, e o imperador reconheceu o título de rei ao primo. Rei de Portucale. Aliás, título que ele já usava desde a batalha de Ourique contra os Mouros, travada no ano anterior.

A paz assinada resultou numa manobra estratégica significativa, porque, por um lado, a Sul, na região de Coimbra, a fronteira estava a ser ameaçada pelos Almorávidas e, por outro, a presença do representante do papa aumentava as diligências junto da Santa Sé. Foi este segundo aspecto que Afonso de Portugal aproveitou para explorar, em comunhão com os mais altos dignatários do clero do condado, o propósito de ser, efectivamente, rei de um reino com existência reconhecida por Roma. Havia que, agora, desenvolver uma nova acção estratégica: ampliar o território na luta contra os muçulmanos para agrado da Santa Sé e proveito da nobreza desejosa de ver acrescidos os seus bens.

Na luta com a Santa Sé, Afonso de Portugal começou por, tentando um golpe diplomático, em vez de se prometer vassalagem a Afonso VII, prometê-la ao papa (1143). Era um artifício para o condado ser reconhecido como reino. Falhou, embora fosse aceite a vassalagem e, acima de tudo, o pagamento da mesma em ouro.

Os anos passaram-se até que morreu Afonso VII, imperador. O seu império foi dividido pelos dois filhos, cabendo a um Leão e a outro Castela com a Galiza. Acabado o império, Afonso de Portugal sentiu-se desligado de qualquer vassalagem; tinha um reino em paridade com as outras unidades políticas da Península e, em alguns casos, geograficamente maior, depois da conquista de Santarém e Lisboa. Quase conquistou todo o Alentejo, perdido em consequência de uma nova arremetida dos muçulmanos. Mas a fama e a glória ficaram-lhe de tal modo que, só em 1179, o papa Alexandre III reconheceu D. Afonso como rei, e Portugal como reino.

 

Conclusão

No começo, lançámos algumas questões para nos ser possível colocarmos hipóteses com suficiente dose de verosimilhança e, por conseguinte, alguma aceitação, ainda que sem fundamento documental.

Quisemos admitir a possibilidade de compreender se teria valimento lógico a ideia de aquele que se julga ser o filho do conde D. Henrique e de D. Teresa – D. Afonso Henriques – ser, afinal, filho de D. Egas Moniz, para isso, agrupámos alguns indícios, dos quais ressaltámos a excessiva longevidade do primeiro rei de Portugal, comparando-a com a dos seus sucessores. Se, ao menos, algum dos oito soberanos seguintes tivesse atingido a sete décadas de vida, não seria estranho D. Afonso I ter morrido com 76 anos. É que a presumível data de nascimento do primeiro rei constitui o único elemento insusceptível de alteração, tudo o mais, até à idade pública do jovem Afonso, é passível de gerar suposições mais ou menos atrevidas. Nós gerámo-las.

Depois, com base em um comportamento que sempre existiu – o da gestão do conflito baseado na dialéctica – tentámos demonstrar que D. Afonso I de Portugal, sem consciência do conceito, desenvolveu uma estratégia bem pensada para ser reconhecido como rei. É tão clara essa estratégia que ousámos proceder ao estudo da situação e foi-nos fácil verificar que o jovem infante, depois de identificar os contextos conflituais, os apoios e as oposições, terá sido capaz de definir os objectivos e o modo de acção para alcançar o que pretendia.

O nosso estudo não tem a pretensão de fazer História, mas, apoiados neste método – sem gerar anacronismos –, julgamos, tornar-se-á muito mais fácil explicar os factos comprovados documentalmente. Será inteligível, para quem estiver interessado, compreender os acontecimentos do começo da nossa História enquanto Estado. Prestamos, estamos em crer, um serviço à História de Portugal, sem macular a metodologia conveniente para a escrever, despindo, contudo, o discurso narrativo de nacionalismos e patriotismos inapropriados, dando-lhe, ao mesmo tempo, uma explicação lógica, porque assente na dialéctica que sempre ditou a vida dos homens em sociedade.

 

Bibliografia

Beaufre, André – Introdução à Estratégia. Lisboa: Edições Sílabo, 2004.

Galvão, Duarte – Chronica de El-Rei D. Affonso Henriques. Lisboa: Escrptorio, 1906.

Herculano, Alexandre – História de Portugal. Tomo I. Amadora: Bertrand, 1980.

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Marques, A. H. de Oliveira – História de Portugal. 1.º vol. 7.ª ed. Lisboa: Palas Editores, 1977.

Tarouca, Carlos da Silva – Crónicas dos sete primeiros reis de Portugal. (Edição crítica). Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1952.

Baena, Miguel Sanches de; Loução, Paulo Alexandre – Grandes Enigmas da História de Portugal. 1.º vol. 1.ª ed. Lisboa: Ésquilo.

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by COM Armando Dias Correia