Nº 2620 - Maio de 2020
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Editorial
General
José Luiz Pinto Ramalho

A presente Edição da Revista Militar pretende contribuir para uma reflexão sobre o período que estamos a viver, a pandemia Covid-19, e as respostas que foram dadas, que devem constituir lições aprendidas. Desde já, o agradecimento aos Sócios da Revista Militar e às entidades que se disponibilizaram a colaborar com as suas opiniões para este objectivo.

Esta reflexão é importante para o futuro, tanto mais que existe a convicção, cientificamente comprovada, de que são possíveis novas vagas da atual pandemia, até que seja obtida uma imunidade alargada ou a existência de uma vacina adequada, como também é possível surgirem novas pandemias, derivadas e outros vírus, hoje desconhecidos.

Tais situações, na visão do conhecimento científico, decorrem da realidade de uma maior vulnerabilidade da Sociedade Mundial; desde a pandemia de 1918, a população mundial duplicou, assistimos ao desenvolvimento de megacidades, com milhões de habitantes, em que o crescimento demográfico tem progressivamente invadido o “habitat dos animais”. A convivência com estes tem aumentado significativamente, com a criação generalizada de animal farms, de peixes, de aves, de mamíferos e de outros, incluindo mercados onde convivem animais mortos e vivos, alguns deles exóticos que, por tradição, procura ou sugestão gourmet, têm sido introduzidos na cadeia alimentar humana, podendo provocar a zoonose e consequente propagação de vírus nos humanos.

Tudo isso, aliado a um nem sempre eficaz sistema de controlo sanitário e de qualidade e a uma velocidade de propagação de contágios, proporcionada pela globalização e pelos transportes aéreos, marítimos e terrestres.

Também as alterações climáticas criaram condições para o desenvolvimento de vírus em áreas que, anteriormente, não eram propícias a isso. É verdade que a medicina tem hoje respostas mais efetivas do que no passado; no entanto, as consequências da realidade atual estão bem à vista.

Perante estas possibilidades, interrogamo-nos sobre o que devemos fazer e como nos devemos preparar para eventuais situações idênticas, no futuro. O que a presente situação mostra claramente é que a reserva estratégica nacional para uma resposta de carácter geral (equipamentos de protecção individual para o pessoal de saúde e os equipamentos para intervenção nos casos mais graves – ventiladores) era frágil e insuficiente. A necessidade da corrida aos mercados e a resposta decorrente da escassez com que o Governo se confrontou deve servir para ponderação, pois demonstrou que descansar no recurso e na oferta do mercado é uma opção de risco, sendo evidente que não se poder abdicar de capacidades de produção nacional, em matéria da saúde e outras, incluindo no domínio da defesa, em mínimos que devem ser criteriosamente pré-estabelecidos, para evitar as situações de gravosa dependência com que Portugal tem sido confrontado.

Relativamente à capacidade de cuidados intensivos, assistiu-se a uma corrida contra o tempo, ainda não concluída, fruto das fragilidades referidas. Essa corrida traduziu-se na procura de aquisição daqueles equipamentos, num mercado caótico, escasso e selvagem, ao estilo de “quem mais paga é que leva”, com inerentes riscos de qualidade e de preços e que, em paralelo, parecia também que a solidariedade europeia não passava de uma figura de retórica. Uma solidariedade europeia que já tinha tido comportamentos negativos aquando da crise financeira decorrente das dívidas soberanas, para com os países da Europa do Sul, em particular para com a Grécia, mas também durante a crise dos refugiados em 2015, se tivermos em conta o fraco apoio que foi prestado à Itália e à Grécia, Estados-membros diretamente atingidos.

Na atual crise, os pedidos iniciais de ajuda da Itália não só foram ignorados pelos restantes países membros, como os pilares que constituem a União Europeia, de livre circulação de pessoas e bens foram rapidamente desconsiderados; as fronteiras fecharam-se, por iniciativas nacionais, sem coordenação, quer a nível regional quer a nível da UE, assistindo-se a diversos governos a armazenarem medicamentos e equipamentos, sem qualquer preocupação para com os países vizinhos e com a Alemanha a proibir a exportação de material sanitário, em clara contradição com as regras da livre circulação de mercadorias.

No caso nacional, os mais de 500 ventiladores adquiridos vão chegando devagar e espaçados na quantidade e no tempo. De acordo com o jornal Expresso, de 10 de abril de 2020, referindo fontes do Ministério da Saúde, no início da pandemia, havia 1142 ventiladores, número que, após aquisições, doações, empréstimos e reparações de material avariado, atingiria a cifra de 3413 equipamentos. Do material disponível, à data de 29 de abril de 2020, foi possível equipar e guarnecer com pessoal médico adequado cerca de 400 camas de cuidados intensivos para adultos (declaração da Ministra da Saúde, Rádio e Televisão de Portugal, brifingue diário, 2 de abril de 2020) tendo sido atingido um pico de ocupação, de cerca de 60% no princípio do corrente mês, que baixou, na atualidade, para cerca de 50% da capacidade instalada. O jornal Observador, de 15 de março de 2020, num artigo sobre o modelo matemático de uma possível evolução da pandemia, apresentava também uma avaliação sobre os países da UE, em 2012, relativamente a ”The variability of critical care beds in Europe”, indicava que Portugal “era o país da Europa com menor número de camas de cuidados intensivos (per capita – 100 000 habitantes) – a média europeia é de 11,5 e Portugal tinha 4,2”. O mesmo artigo também referia que, em 2020, a taxa nacional de médicos especializados tinha subido para 6,4 e 200 profissionais.

Esta é uma reflexão profunda que tem de ser feita, com base na resposta que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem vindo a dar, para clarificar e definir a capacidade de crescimento que, numa situação de stress, deverá desejavelmente ter, considerando os equipamentos imediatamente disponíveis e uma reserva para substituição de avarias ou necessidades de descontaminação, bem como as infraestruturas adequadas para essa instalação e, mais importante, pessoal especializado, médicos, enfermeiros e outros elementos do serviço de saúde para fazer funcionar tal capacidade; uma capacidade global, que tem de servir as exigências, quer de uma pandemia quer das outras necessidades de resposta, em simultâneo, que ocorrem nas urgências dos hospitais e nos blocos operatórios. De referir, por exemplo, que a Suécia, com uma população semelhante à de Portugal tem uma capacidade instalada de 1500 camas de cuidados intensivos.

Ao longo do período de desenvolvimento da pandemia, por iniciativa das autarquias e outras entidades, fomos assistindo à criação de locais de receção de doentes, mal apelidados de “hospitais de campanha”, certamente com efeitos psicológicos positivos junto das populações, mas de duvidosa utilidade, quer pela precariedade do pessoal de saúde para apoiar essas infraestruturas quer pelas efetivas possibilidades de garantirem, de forma continuada, alimentação, higiene, serviços de lavandaria, etc., e ainda um efetivo controlo dos eventuais utilizadores. Desconhece-se qual foi a procura destes locais e qual a dimensão da sua utilização que não tem sido revelada na Comunicação Social. Contudo, quando ocorreram problemas em lares e nos “Hostel”, as soluções encontradas passaram pela utilização de hospitais e unidades militares.

Em vez de se publicitar e assim se incentivar a proliferação de centros, de difícil apoio em profissionais de saúde, face à sua dispersão territorial, seria preferível criar no SNS uma estrutura hospitalar de contingência, passível de instalação regional, com uma primeira prioridade de resposta para as Regiões Norte e Lisboa/Vale do Tejo e uma segunda prioridade para as Regiões do Centro, Algarve e Alentejo, por esta ordem, tendo em conta a evolução da pandemia nestas regiões. Seria uma estrutura suficientemente robusta, em capacidade de cuidados de saúde, que permitisse libertar os hospitais principais e possibilitar-lhes condições para ampliar a capacidade de cuidados intensivos e intermédios, se isso fosse reconhecido como necessário.

Na resposta à pandemia têm de ser consideradas medidas de confiança na população que as não afaste da estrutura de apoio sanitário do SNS, clarificando muito bem onde e como é feita a resposta e a assistência aos atingidos pela pandemia e aos outros que necessitam de outros cuidados de saúde, assim como a confiança nos centros de saúde, onde se processa o plano nacional de vacinação das nossas crianças. Igualmente, os locais de triagem e de testes têm de incutir confiança à população que acorre aos mesmos e não serem vistos como potenciais locais de contágio. A realidade da situação atual e as críticas que se foram ouvindo, apontam para que esta situação tenha de ser devidamente considerada e aperfeiçoada para o futuro.

O tempo e a capacidade de reação são cruciais na resposta a qualquer pandemia, sendo verdade que nunca se está totalmente preparado para uma situação como a que vivemos na atualidade, a correta interpretação dos avisos, o planeamento de contingência e a existência de reservas estratégicas de material, previsivelmente necessário, fazem a diferença e mostram que alguns países estavam melhor preparados do que outros para, com os seus Sistemas de Saúde, materializarem a resposta adequada.

Nas palavras de Eddy Rubin, ligado ao projeto PREDICT, um dos quatro projetos do programa EPT (Emerging Pandemic Threats), lançado em 2009, pela USAID, responsável pela descoberta de cerca de mil novos vírus em animais e humanos, chama-se a atenção de que um outbreak é como um fogo, se não houver vigilância para o detetar, nem se acorrer rapidamente ao foco inicial, o resultado será um incêndio, associado à propagação das fagulhas, de proporções gigantescas.

No domínio da vigilância e da prevenção, a Comunidade Internacional tem dado pouca atenção aos alertas que, sobre esta matéria, têm vindo a ser feitos. Existem múltiplas referências a relatórios anteriormente produzidos, por diversas entidades, incluindo responsáveis das Nações Unidas, Organização Mundial de Saúde e Banco Mundial, alertando para a possibilidade de uma pandemia no século XXI e para as consequências, quer em perda de vidas humanas quer para as economias e para o consequente caos social.

Foram ignorados os avisos reais do aparecimento do Ébola, em África, em 1972, e o outbreak, em 2014, da SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome), na China, em 2003, da MERS (Middle East Respiratory Syndrome), do Zika e do Dengue, na América do Sul, em que a vontade política para o seu combate e para uma resposta sustentada se esbateu após a diminuição do surto e a investigação e a indústria farmacêutica não encontraram incentivos para desenvolver, quer um medicamento específico quer uma vacina.

Neste âmbito, oportunamente, a Revista Militar republicará um conjunto de artigos, de autores militares e civis, publicados ao longo de vários anos, que alertavam para a necessidade do planeamento estratégico nacional no combate a ameaças desta tipologia (tal como a ameaças nucleares, químicas, radiológicas ou cibernéticas).

Embora a Comunidade Internacional disponha de capacidade de investigação sobre estas questões, não pode ser descurada a preocupação de vigilância epidemiológica, quer em condições de segurança sanitária quer em profissionais de saúde habilitados e em quantidade adequada, quer relativamente aos cidadãos, mas também a situações concretas com que fomos confrontados, como as condições de funcionamento dos lares, de instalações fabris, industriais, comerciais, sem esquecer, por exemplo, os locais de instalação de imigrantes em processo de legalização e, ainda, as condições de acolhimento de imigrantes sazonais, para trabalho em explorações agrícolas.

Durante todo o período que tem decorrido desde a declaração do aparecimento do coronavírus SARS-CoV-2, em Portugal, assistiu-se a uma melhoria progressiva da capacidade de atendimento por parte do SNS-Saúde 24, diminuindo significativamente o tempo de espera verificado na concretização das chamadas telefónicas. Face às novas tecnologias disponíveis, deve ser considerada a possibilidade da sua utilização de forma mais avançada, para um atendimento em teleconsulta, que permita fazer um acompanhamento mais personalizado do potencial doente, da evolução do seu estado de saúde, permanecendo este na sua residência e, em caso de agravamento, fazer deslocar uma ambulância, para execução de testes ou o seu encaminhamento para o hospital vocacionado para o efeito. Este procedimento afastava as pessoas das urgências e locais de triagem e diminuiria os riscos de contágio, quer aos profissionais de saúde quer nas zonas de atendimento das estruturas hospitalares.

A deteção do foco, a perceção da evolução do contágio e a progressão da sua disseminação constituem fatores primordiais para a sua contenção, controlo e recuperação da pandemia, fornecendo as novas tecnologias de comunicação e a Inteligência Artificial (IA) ferramentas especiais para esse efeito. Neste processo há que gerir a garantia dos direitos de privacidade dos cidadãos e a utilização anónima de dados biométricos (health metrics), que possibilitem aquele controlo. Entre o individual tracking e a análise anónima de dados biométricos de forma generalizada, designadamente, das alterações dos níveis normais, existe um largo conjunto de possibilidades, desde a aceitação voluntária, de uma verificação personalizada, ao armazenamento massificado de dados anónimos, como acontece, por exemplo, com as câmaras térmicas nos aeroportos, que detetam aumentos da temperatura corporal.

Existem hoje aplicações de telemóveis e dispositivos específicos, orientados para a leitura e registo de dados biométricos como a temperatura, pressão arterial, níveis de açúcar e outros, que poderão ser detetados por sensores regionais e transmitidos, anonimamente, para uma cloud, tratados pela IA, alertando para um aumento anormal destes dados, em termos regionais e para a sua disseminação territorial – informações fundamentais para o planeamento dos SNS, para a tomada de medidas preventivas e para a adaptação, quer dos profissionais de saúde quer das infraestruturas.

Por último, sendo claro que, no seguimento desta pandemia, estamos confrontados com a necessidade da resposta à crise económica e às consequências sociais da mesma, é imperioso que as medidas que o Governo preconiza para apoio à economia e aos cidadãos se processem com eficácia e oportunidade e que não sejam mais um motivo de tensão social e demonstração de uma burocracia que não se agiliza em momentos de urgência e que, pelo contrário, demonstre competência, solidariedade, confiança e apoio aos cidadãos e empresas em dificuldades.

A preparação nacional para o combate a uma segunda vaga ou a uma pandemia futura, passa certamente por aprendermos com a vivência dos acontecimentos com que temos estado confrontados, com a correção daquilo que não esteve bem, com a garantia de reservas estratégicas necessárias para acorrer à pressão que os portugueses podem vir a estar sujeitos, utilizando a globalidade dos recursos nacionais, incluindo as Forças Armadas com as especificidades de que dispõem, designadamente, no domínio da defesa biológica e química, em termos laboratoriais, operacionais e hospitalares, sem preconceitos e, também, ter voz na União Europeia para, perante situações como a atual, que atingem todos os Estados-membros, poder contribuir para a concretização de uma resposta global e solidária, contrariando a retórica nacionalista que põe decisivamente em causa o projeto europeu.

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* Presidente da Direção da Revista Militar.

 

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2020-05-30
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José Luiz Pinto Ramalho

Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964. 

Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.

Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.

Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.

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by COM Armando Dias Correia