“Noutras épocas históricas, muitas instituições foram forçadas, por imperativo de sobrevivência, a adaptar-se a contextos sociais em que não se reviam por inteiro. Mas provavelmente nunca, como hoje, as Forças Armadas das democracias estiveram sujeitas a um processo de mudança que, de tão radical, põe em risco a própria natureza da sua função militar”.
Mira Vaz[1]
A Guarda do séc. XXI, como não podia deixar de ser, é substancialmente diferente da que conheci em meados dos anos oitenta do século passado quando nela ingressei. À data, este Corpo Especial de Tropas era assim definido:
“A Guarda Nacional Republicana é um corpo especial de tropas que faz parte das forças militares, votado à causa da segurança e manutenção da ordem pública, bem como à protecção e defesa das populações e da propriedade pública, privada e cooperativa”[2].
Hoje em dia e principalmente em consequência da revisão constitucional de 1982 e da aprovação da Lei da Segurança Interna[3], a Guarda é definida da seguinte forma:
“A Guarda Nacional Republicana, adiante designada por Guarda, é uma força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas e dotada de autonomia administrativa”[4].
O mundo, durante estes quase quarenta anos, conheceu profundas e rápidas alterações que deixam quase irreconhecíveis hábitos, crenças, valores e o modo de vida de finais do séc. XX.
A estas modificações não podia ficar alheia a maior instituição de segurança e defesa do País – a Guarda Nacional Republicana que, ao longo da sua bicentenária história, se tem sabido adaptar e actualizar aos ventos da mudança, mantendo, contudo, a sua matriz alicerçada nalgumas características que lhe dão uma identidade singular como bem refere o Acórdão n.º 54/2012 do Tribunal Constitucional:
“(…) Com efeito, a GNR, além das atribuições policiais que de ordinário lhe competem, pode ser chamada a desempenhar tarefas que consistem na aplicação extrema da força do Estado e no controlo da violência, o que justifica a sua organização militarizada e o estatuto militar dos seus agentes. Desde sempre legalmente definida como tendo natureza militar, cabia e cabe na sua missão geral colaborar na execução da política de defesa nacional nos termos da Constituição e da lei, podendo em caso de guerra ou em situação de crise as forças da Guarda ser chamadas a cumprir, em colaboração com as Forças Armadas, as missões militares que lhe forem cometidas (cf. artigos 2.º, alínea i) e 9.º, n.º 2, da LOGNR aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93 e artigo 1.º, n.º 2 e 3.º, n.º 2, alínea i) da atual LOGNR). Acresce que, embora dependentes do membro do Governo responsável pela área da administração interna, as forças da Guarda podem ser colocadas na dependência operacional do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, através do seu comandante-geral, nos casos e termos previstos nas Leis de Defesa Nacional e das Forças Armadas e do regime do estado de sítio e do estado de emergência, dependendo, nesta medida, do membro do Governo responsável pela área da defesa nacional no que respeita à uniformização, normalização da doutrina militar, do armamento e do equipamento. E é para assegurar a disponibilidade e prontidão nesses domínios que se adequa a organização militarizada desta força de segurança interna como “corpo de tropas” e a condição militar dos seus agentes e se pode, à face da Constituição, exigir deles a sujeição a um mais rígido estatuto disciplinar do que o aplicável à generalidade das forças de segurança, considerando-os incluídos no conceito constitucional de “militar” para efeitos da excepção prevista na alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição (…)”
Em síntese, podemos afirmar que o ADN da GNR se pode resumir no seguinte:
– A polivalência de missões (policiais e militares);
– A dupla dependência da administração interna e da defesa nacional[5] e operacional do CEMGFA;
– A natureza militar[6] (organização e cultura institucional);
– A condição militar daqueles que a integram[7].
Destas, decorrem necessariamente um conjunto de condições e regras que, simultaneamente, justificam e dão corpo àquelas particularidades e as tornam efectivas ou deviam tornar, o que nem sempre vem sucedendo.
É que a perenidade daquelas características, como diria o Professor Adriano Moreira, constitui para a GNR o eixo da roda.
A justificação para a existência de uma força com as particularidades antes enunciadas e que de uma forma simples podemos encontrá-las em razões históricas que remontam a inícios do séc. XIX, quando em toda a Europa continental criaram as “gendarmeries”[8], e em razões de natureza prática, de eficiência e eficácia que exponenciam a sua capacidade de resposta, tornando-a numa mais-valia que fundamentam a sua longevidade.
Mas relembre-se que a justificação para a sua existência só se manterá enquanto se conservarem a polivalência de atribuições e a prontidão e imedeatividade das respostas e que estas não acontecem por geração espontânea, mas antes obedecem a um conjunto alargado de pressupostos e requisitos que estão na base da sua cultura organizacional e no respeito pela condição militar dos membros que a constituem.
Daí que as mudanças necessárias e naturais que, ao longo dos tempos, vão ocorrendo não devam beliscar os pressupostos e os princípios enformadores que consubstanciam e justificam a razão de ser da GNR.
Para um mais fácil entendimento da questão, recorro ao Acórdão n.º 103/87 do Tribunal Constitucional que veio explicitar as características que enformam as instituições militares:
“(…) como notas características da instituição militar avultam, decerto, as seguintes: o estrito enquadramento hierárquico dos seus membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos; correspondentemente, a subordinação da actividade da instituição (e, portanto, da actuação individualizada de cada um dos seus membros), não ao princípio geral de direcção e chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obediência; o uso de armamento (e armamento com características próprias, de utilização vedada aos cidadãos e aos agentes públicos em geral) no exercício da função e como modo próprio desse exercício; o princípio do aquartelamento dos seus agentes em unidades de intervenção ou operacionais dotadas de sede física própria e de um particular esquema de vida interna, unidade a que os respectivos membros ficam em permanência adstritos, com prejuízo para a generalidade deles, da possibilidade (direito) de utilização da residência própria; a obrigatoriedade para os seus membros, do uso de farda ou de uniforme; a sujeição dos mesmos a particulares regras disciplinares e eventualmente, jurídico-penais (…)”
Aos aspectos caracterizadores da organização e vivência militar acima mencionados, acrescento, seguidamente, algumas considerações relativas ao estatuto dos membros que a constituem, os militares:
A condição militar que impende sobre todo e qualquer militar tem uma natureza própria que, de modo claro e indiscutível, se distingue do estatuto funcional dos demais servidores do Estado. Desde logo, pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida; pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz quer em tempo de guerra; pela permanente disponibilidade para o serviço, seja em termos temporais seja em termos de mobilidade territorial, ainda que com o sacrifício dos interesses pessoais do militar e da sua família e, pela restrição, constitucionalmente prevista, de alguns direitos e liberdades.
Com este enquadramento afigura-se-me que estaremos em melhores condições para analisar até que ponto as alterações e modificações ocorridas na GNR, nos últimos cerca de quarenta anos, constituem ou não riscos para a sua continuação e sobrevivência ou se, pelo contrário, são demonstrativas da sua capacidade de adaptação às contingências e conjunturas, reflexo de grande vitalidade.
Do “decalitro” e da polaina, do cinzento das fardas e das viaturas passando pelo barrete “kosovar”, da velha espingarda Mauser e da pistola Walter P 38 chegámos à boina, ao aligeiramento dos uniformes, à modernização do armamento, ao recurso às novas tecnologias, ao emprego de “drones” e, mais recentemente, a adesão às redes sociais.
De uma Guarda generalista muito alicerçada na componente territorial e nas unidades de guarnição e quase exclusivamente de âmbito interno, passou-se para uma Guarda mais apostada na especialização, na abertura a novas valências e na projecção internacional.
– Neste período, os oficiais passaram a ser formados na Academia Militar[9];
– A Guarda Fiscal foi extinta e o seu pessoal integrado na GNR[10], o mesmo sucedendo com o Corpo da Guarda Florestal[11];
– Ingressaram as primeiras mulheres[12];
– Surgiram as associações socioprofissionais de militares[13];
– O Regulamento de Disciplina Militar deixou de se aplicar em tempo de paz e foi substituído por um regulamento de disciplina próprio[14];
– Iniciou-se a internacionalização, através do envio de observadores e da projecção de forças constituídas para o exterior[15]; da nomeação de oficiais de ligação junto de diversas embaixadas no estrangeiro; da cooperação técnica com os PALOP[16] e da integração na FIEP[17] e na Eurogendefor[18];
– Deixou de ser condição necessária para o ingresso de praças na GNR a prévia passagem pelas fileiras das Forças Armadas[19];
– A categoria de praças passou a designar-se de guardas[20];
– Criaram-se os serviços de protecção da natureza e do ambiente (SEPNA)[21], e da investigação criminal[22] e a unidade de emergência, protecção e socorro (UEPS)[23];
– Ocorreram duas revisões da lei orgânica[24];
– O estatuto dos militares foi alterado por três ocasiões[25];
– O Presidente da República usou por duas vezes o veto em relação a leis da GNR[26].
A polivalência de missões da GNR, uma das suas principais características, tem sido uma constante que se tem mantido e, até certo ponto, incrementado, mesmo que contraditória com certo tipo discursivo, devido, fundamentalmente, a dois factos.
À retracção ocorrida nos últimos anos do dispositivo territorial do Exército que acabou por deixar à Guarda, quase em exclusivo, a cobertura de quadrícula do Território Nacional (TN) e a vigilância dos pontos sensíveis e, como consequência da significativa redução de efectivos das Forças Armadas, um maior empenhamento da Guarda na prestação de honras militares.
À tradicional polivalência (militar/policial) há que acrescentar as missões de protecção e socorro atribuídas à Guarda, em 2006, que, de acordo com o diploma da sua atribuição, se ficaram a dever, entre outros factores “(…) a capacidade organizativa e a natureza militar da Guarda Nacional Republicana (…)” [27], onde mais uma vez foi posta em evidência a polivalência deste corpo especial de tropas.
Exemplificativo ainda desta polivalência foi a projecção de uma força da Guarda para o Iraque[28] como alternativa a uma força do Exército que, como é sabido, não foi autorizada pelo Presidente da República.
Também as alterações ao ambiente internacional com um crescente alargamento de situações, ditas híbridas, que não são de guerra nem de paz têm aconselhado a intervenção de forças com a robustez e o sentido de missão que só a natureza militar garante, mas que simultaneamente possuam o conhecimento da lei e que habitualmente façam o uso proporcional da força como sucede com os corpos com funções policiais, o que tem sido favorável ao aumento de solicitações de organizações internacionais para a intervenção externa da GNR, revelando, desta forma, também, a sua polivalência.
Já no que se refere à dupla dependência (Ministério da Defesa Nacional/Ministério da Administração Interna – MDN/MAI), embora a mesma se mantenha na substância idêntica ao longo deste período, a formulação que lhe é dada na actual lei orgânica parece indiciar querer escondê-la, o que não deixa de ser coerente com a prática vivida nos últimos anos, onde tem sido manifesto o progressivo distanciamento que os MDN têm demonstrado relativamente à GNR, só quebrado quando algum benefício ou vantagem é atribuído aos militares da Guarda.
Não obstante o antes referido sobre a polivalência e ao contrário do que seria expectável, quando quer o MDN, quer o MAI tutelam forças às quais se aplica o mesmo estatuto (o da condição militar) que se complementam e, nalguns casos, desempenham o mesmo tipo de missões (militares) que deveriam, no mínimo, coordenar-se e entender-se, amiudadas vezes, o que tem sucedido é um alheamento mútuo, quando não mesmo uma disputa entre ambos, cujos resultados prejudicam o tratamento equitativo para os militares (todos), tendo mesmo, em diversas ocasiões, a situação acabado por ser corrigida a posteriori ou em última instância, após intervenção do Primeiro-Ministro ou até do Presidente da República.
Resultado em parte desta descoordenação foram os dois vetos presidenciais a leis da GNR.
Decorrente, em grande medida, da importância que a opinião pública tem vindo a atribuir às questões da segurança, muito devido ao mediatismo dispensado pelos Órgãos de Comunicação Social e ao contrário do que vem sucedendo com as questões da Defesa Nacional e com as Forças Armadas, a intervenção da tutela política foi-se intensificando, nomeadamente, através de uma presença mais constante em cerimónias e actividades militares da Guarda por todo o país e no que pode ser interpretado como um aproveitamento para fins de propaganda política, na criação de eventos montados com grande aparato e elevada cobertura mediática para a entrega do mais diverso material (viaturas, pistolas ou coletes), por mais diminuto ou irrelevante que aquele seja.
A nível do pessoal, de uma folga semanal ao sexto dia e dos serviços de 24 horas, passou-se a períodos de descanso maiores e a um horário de referência semanal de 40 horas[29].
De um vencimento base fixo em linha com o posto e o tempo de serviço, passou-se a uma miríade de suplementos e subsídios[30] que aumentam o rendimento mensal dos militares.
Estas alterações no âmbito do pessoal são o reflexo do esbatimento das diferenças entre militares e civis que se vão sentindo na sociedade actual, foram, por regra, vantajosas e benéficas para os militares, sobretudo, para os de baixas patentes, dado que, para além de tornaram o serviço menos penoso, permitiram uma melhor conciliação entre o serviço e a vida pessoal, com mais tempo livre para os próprios e respectivas famílias, e valorizaram os vencimentos.
Contudo, a questão da multiplicidade de suplementos e subsídios acarretou inversões hierárquicas, veio retirar flexibilidade na gestão do pessoal, criar desigualdades e injustiças e prejudicar a coesão e o espírito de corpo.
Mas, mais, se estas alterações representaram melhorias de vida para o pessoal, não significa que as mesmas não se tenham repercutido negativamente na operacionalidade da força, designadamente, em termos de disponibilidade e prontidão das respostas.
Senão, vejamos: se os militares executavam serviços de 24 horas (serviço interno e de guarnição); patrulhas de 8 horas; e tinham direito a uma folga por semana ao sexto dia, com as alterações introduzidas, o número de horas semanais de serviço passou por regra a ter como limite as 40, isto significa que, não havendo aumento de efectivos, o produto operacional, necessariamente, diminuiu.
Recorde-se que a recente alteração do horário de trabalho da função pública das 40 para as 35 horas, como tem sido amplamente noticiado, se tem traduzido numa redução da capacidade de muitos serviços públicos, não deixa de ser um fiel indicador para o que terá ocorrido com as reduções dos tempos de serviço dos militares da Guarda que, ao contrário da generalidade dos serviços públicos, têm que assegurar um serviço de 24 sobre 24 horas.
Ainda no que respeita à diminuição do efectivo pronto e disponível, consequência da redução horária de serviço, que como vimos reduz a capacidade operacional da força, acabará por afectar também a própria segurança dos militares e das instalações quando, por exemplo, em muitos Postos, durante o período nocturno, apenas presta serviço um militar, contrariando, aliás, um despacho do MAI, datado de 30 de Abril de 2008, que determina que não haja Postos/Esquadras apenas com um militar/agente de serviço, consequência de um conjunto de situações de insegurança vividas na altura, mas que continuam a ser descuradas.
A acrescer a esta redução do efectivo disponível para o serviço, há que relevar a progressiva diminuição bruta do pessoal, verificada a partir do ano 2000.
Assim e com recurso aos dados da “Pordata”, cujo primeiro ano referido é o de 1993, a GNR possuía, naquele ano, um efectivo de 24.102 militares para, em 2000, atingir o maior número de militares com 25.904; em 2007, baixou para 24.324, passados mais sete anos, em 2014, o número diminuiu para os 22.266 e em 2017 situava-se nos 22.365, quando os quadros aprovados por lei (QAL), em 2009, previam os 28.004, nunca respeitados.
Para além dos recursos humanos, também o efectivo animal constituído por canídeos e solípedes foi diminuindo neste período. Com recurso ao Plano de Actividades da GNR de 2018, podemos constatar que, em 2009, aquele efectivo era de 833 animais e em 2018 se viu reduzido para 614.
Reflexo da sua capacidade de adaptação foram as novas missões atribuídas – protecção e socorro, investigação criminal e natureza e ambiente. Só que, contrariamente ao que seria expectável, aquele alargamento de missões não foi acompanhado por qualquer reforço de efectivos, o que teve como consequência uma quebra de capacidades, sobretudo, ao nível do dispositivo territorial[31].
Aquele dispositivo, que se constitui num elemento estruturante para o desempenho da missão de cobertura de quadrícula de todo o TN (continental), através do conjunto de Destacamentos e Postos disseminados pelos locais mais recônditos e pelo lançamento de patrulhas, em ordem a assegurar a vigilância, nomeadamente, dos pontos sensíveis e a segurança das populações, é precisamente de onde têm sistematicamente sido retirados efectivos para os afectar às novas valências e missões.
É doutrinário que à atribuição de novas missões se devam alocar os correspondentes recursos humanos e materiais para a sua cabal execução, sob pena do cumprimento da missão se tornar uma impossibilidade. A verdade é que na GNR isso não tem acontecido e nem o recurso a novas tecnologias, usualmente consideradas multiplicadores de força, foram suficientes para colmatar o grande défice de recursos humanos.
Ainda e no que concerne ao pessoal, não se pode considerar como uma medida positiva para o seu moral e bem-estar a decisão (política)[32] que veio impedir a manutenção das messes na generalidade das unidades, passando os militares a ter que recorrer a restaurantes e afins, e a outros meios expeditos para tomar as refeições, o que contraria toda a lógica do princípio do aquartelamento característico de qualquer corpo militar.
Para além dos momentos de camaradagem e de salutar convivência que as refeições em conjunto no seio das unidades proporcionam, não foram certamente tidos em consideração factores como o estado sanitário dos militares, os muitos deslocados das respectivas residências, nem o tempo que terão que despender com as saídas do quartel para tomar as refeições ou, pior ainda, como se resolverá a questão da alimentação em períodos de prevenção ou sempre que necessária a presença alargada no aquartelamento.
Por paradoxo que pareça, quem desconsidera esta característica dos militares, costuma ser defensor de modelos empresariais e economicistas, mas esquece que as grandes empresas estão dotadas de refeitórios e salas de convívio para os seus colaboradores[33].
Estas medidas dirigidas ao pessoal, mas como vimos com reflexos na organização e prontidão da força, têm ainda subliminarmente um outro efeito que é o de ir descaracterizando a condição militar e transformando os militares em funcionários.
Este âmbito é, sem dúvida, o mais grave e preocupante, porque ao descaracterizar-se a condição militar e os seus valores, obteremos, mais cedo ou mais tarde, resultados negativos no espírito de corpo, na disponibilidade, no espírito de sacrifício, na motivação e na eficiência da força para o cumprimento da Missão.
Os militares passarão a comportar-se como trabalhadores civis, a reivindicar mais direitos e menos deveres, melhores condições de trabalho e maiores vencimentos e a considerar a Missão como um serviço ou tarefa que se executará ou não dependendo do momento, da vontade e da disposição de cada um.
Donde, também o comando (não direcção) com as suas competências próprias de atribuição da missão e do exercício da disciplina (através de sanções e recompensas) tem vindo a ser fragilizado, quer através da tendencial interferência (mesmo que aparente) do poder político em domínios próprios da hierarquia e da cadeia de comando quer pela acção do associativismo, o que acaba por desresponsabilizar os comandantes do dever de tutela dos seus subordinados, deixando-os, muitas vezes, por sua conta e risco, descredibilizando o comando e a hierarquia.
É todo este caldo de cultura que vai minando a natureza militar da força, cujas consequências reais e palpáveis só se sentirão fora da rotina do quotidiano, quando houver necessidade do seu empenhamento pronto e imediato em situações difíceis, arriscadas e complexas em que a intensidade da ameaça seja grande, mas que, mercê da descaracterização de que vem sendo objecto, pode não ser capaz de responder como todos desejariam e seria o expectável de uma força de natureza militar.
Mesmo que naquelas situações se atribuam meios e recursos modernos e em quantidade, a disponibilidade, a disciplina, a coesão e o espírito de missão, em suma, a eficácia e a motivação das forças não se readquirem de um dia para o outro.
Também ao nível da organização[34] que, como se sabe, é um dos elementos estruturantes da Instituição Militar, houve significativas mudanças alinhadas numa lógica tendencialmente empresarial e de aproximação a forças e organizações civis, que levou a alteração do sistema de forças alicerçado em 8 unidades operacionais de escalão brigada e regimento que respondiam perante o comando-geral, para um sistema constituído por 24 unidades, umas de comando de oficial general e outras de coronel, sem qualquer coerência nesta distinção e em que entre o comando de algumas e as subunidades subordinadas não existe o escalão batalhão ou equivalente.
A eliminação do escalão brigada, para além do manifesto desrespeito pela organização militar, veio dificultar a acção de comando, o controlo e a supervisão dos escalões superiores sobre as unidades subordinadas, a que a existência de um escalão intermédio ao nível regional entre o Comandante-geral e o dispositivo territorial, como era o das brigadas territoriais (Norte, Centro, Lisboa e Alentejo e Algarve) respondia cabalmente.
De uma organização tipicamente militar constituída por brigadas, regimentos e grupos, fortemente hierarquizada em que os diversos escalões de comando eram facilmente perceptíveis, passou-se para uma estrutura com denominações de unidades cuja designação se prende com a missão atribuída sem qualquer referência ao respectivo escalão ou efectivo, tendo sido mesmo impedida qualquer nomenclatura militar.
A intenção de afastar a GNR da sua natureza militar e de a aproximar a organismos civis, conjugada com a aplicação de políticas liberais da economia de mercado onde o outsorsing se apresenta como a panaceia para tudo, vieram comprometer a componente de apoio de serviços, nela se incluindo todas as suas funções logísticas (reabastecimento, transporte, manutenção, evacuação e hospitalização e serviços) área que, nos anos mais recentes, tem sofrido uma progressiva redução, tanto a nível de pessoal como em termos de unidades e órgãos, o que também implica uma diminuição da capacidade operacional por via da menor flexibilidade e de auto-sustentação das forças, ficando estas dependentes de terceiros, sujeitas a vicissitudes várias como o da morosidade dos concursos públicos e contratos para prestação de serviços, nem sempre respondidos pelas empresas por falta de rentabilidade económica e cujos formalismos e demoras não se compadecem com a prontidão necessária ao cumprimento da missão de um corpo de natureza militar, pondo inclusivamente em causa qualquer projecção de forças, mesmo a nível interno.
Não obstante algumas vulnerabilidades apontadas, a verdade é que num mundo em que o imediato se sobrepõe ao longo prazo e em que a imagem conta mais do que a substância, a GNR de hoje é uma força prestigiada tanto a nível interno como internacional.
As profundas mudanças e alterações verificadas ao longo destes quase quarenta anos são fruto de diversos factores e circunstâncias, umas gerais e próprias do avançar dos tempos, outras conjunturais e específicas.
As primeiras, consequência natural das marcas da modernidade, a que alguns já denominam de pós-modernidade, são comuns a toda a sociedade e ao mundo em geral, já as outras se podem considerar específicas e visando apenas a Instituição Militar que, na Europa, com algumas excepções, se vai aproximando do mundo civil, da lógica empresarial, do mercado e das práticas que se afastam dos valores militares.
A estas há que acrescer ainda, no caso específico da GNR, algum preconceito político-ideológico quanto à sua natureza militar e às persistentes tentativas para o seu afastamento das Forças Armadas e aproximação às polícias civis.
Segundo Charles Moskos[35], estamos perante uma mudança, progressiva e imparável nas orientações dos militares, no sentido de adoptarem valores idênticos aos da sociedade civil a que pertencem.
E, se assim for, teremos que nos adaptar a um novo paradigma e ver se ele é ou não compatível com a sobrevivência da Instituição Militar em geral, no respeito pela sua especificidade e natureza e, em particular, com a sobrevivência de forças militares de segurança como é o caso da Guarda Nacional Republicana.
Este será o desafio das novas gerações.
Acórdão nº 103/87 do Tribunal Constitucional.
Acórdão nº 54/2012, Processo n.º 793/11 do Tribunal Constitucional, Diário da República, 2.ª série — N.º 53 — 14 de Março de 2012.
Branco, Carlos (2000), Desafios à Segurança e à Defesa e os Corpos Militares de Polícia, Ed Sílabo.
Branco, Carlos (2010), Guarda Nacional Republicana, Contradições e Ambiguidades, Ed Sílabo.
Mira Vaz, Nuno (2002), Civilinização das Forças Armadas nas Sociedades Demoliberais, Ed Cosmos/Instituto da Defesa Nacional.
Revista Militar (vários números).
Revista Pela Lei e Pela Grei (vários números).
Semanário Expresso de 20 de Julho de 2019.
www.gnr.pt (acedido em 27 de Agosto de 2019).
www.pordata.pt (acedido em 29 de Agosto de 2019) .
www.eurogendenfor.org (acedido em 29 de Agosto de 2019).
[1] In “A Civilinização das Forças Armadas nas Sociedades Demoliberais”, Ed. Cosmos e IDN.
[2] N.º 1 do artigo 1.º do DL n.º 333/83, de 14 Julho.
[3] Lei n.º 20/87, de 2 de Junho.
[4] Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro.
[5] Vide “Dupla Dependência da GNR”, in publicação on-line “O Operacional”, de 2 de Fevereiro de 2011.
[6] Vide “A Natureza Militar da GNR”, in publicação on-line “O Operacional”, de 20 de Março de 2012.
[7] Art.º 16.º da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho (Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar).
[8] Vide “As Gendarmeries”, Revista Pela Lei e Pela Grei, n.º 107, Jul/Set 2015.
[9] DL n.º 173/91, de 11 de Maio.
[10] DL n.º 230/93, de 26 de Junho.
[11] DL n.º 22/2006, de 2 de Fevereiro.
[12] 1994.
[13] Lei orgânica n.º 3/2001, de 29 de Agosto e Lei n.º 39/2004, de 18 de Agosto.
[14] Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro.
[15] Vide “Presença da Guarda em missões de manutenção e apoio à Paz”, Revista Pela Lei e Pela Grei, Mar/Mai 2005.
[16] Vide “Cooperação com os PALOP”, Revista Pela Lei e Pela Grei, n.º 3 Jul/Set 1995.
[17] FIEP – Iniciais dos 4 países (França, Itália, Espanha e Portugal) fundadores, em 1994, da Associação de Forças de Polícia Europeias e Mediterrânicas com estatuto militar.
[18] Eurogendefor – Força de Gendarmerie europeia, criada em 2007. Actualmente, constituída por forças de “gendarmerie” de Portugal, Espanha, França, Itália, Holanda, Roménia, Polónia, Lituânia e Turquia.
[19] DL n.º 297/98, de 28 de Setembro.
[20] Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro.
[21] Vide “ A GNR e a Protecção da Natureza e do Meio Ambiente”, n.º 2 Abr/Jun 1996 e “Lançamento do SEPNA da GNR”, n.º 2 Abr/Jun 2001, ambos na Revista Pela Lei e Pela Grei.
[22] Vide “Serviço de Investigação Criminal”, Revista Pela Lei e Pela Grei, n.º 1 Jan/Mar 2002.
[23] DL n.º 113/2018, de 18 de Dezembro.
[24] DL n.º 231/93, de 26 de Junho e Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro.
[25] DL n.º 265/93, de 31 de Julho; DL n.º 297/2009, de 14 de Outubro e DL n.º 30/2017, de 22 de Março.
[26] Lei orgânica da GNR, em 2007, e Estatuto dos Militares da GNR, em 2017.
[27] DL n.º 22/2006, de 2 de Fevereiro.
[28] Portaria n.º 1164/2003, de 3 de Setembro.
[29] Portaria n.º 222/2016, de 8 de Julho. Vide “Horário de Referência”, in publicação on-line “O Operacional”, de 9 de Outubro de 2016.
[30] DL n.º 298/2009, de 14 de Outubro (suplementos de comando; ronda e patrulha; escala e prevenção; forças de segurança; especial de serviço e de residência).
[31] Vide “Missões e efectivos”, in publicação on-line “O Operacional”, em 17 de Julho de 2017.
[32] Despachos da Ministro da Administração Interna de 12 de Outubro e 29 de Novembro de 2016.
[33] Vide “Trabalhar, comer e viver no escritório – Os escritórios do futuro vão recriar o ambiente doméstico para potenciar a produtividade. Em linha com a prática da casa-mãe, a tecnológica Microsoft inaugurou, em Portugal, um novo escritório, configurado para simular o conforto doméstico. Não é caso único no país. Nos grandes grupos empresariais, que se inspiram nas melhores práticas internacionais, são comuns as grandes áreas de lazer para os trabalhadores, com sofás confortáveis, espaços exteriores com esplanadas que convidam ao descanso, áreas lúdicas (como salas de jogos ou mesas de ténis de mesa), zonas de refeição pensadas para quem quer comer como em casa, casas de banho equipadas com duche e, em alguns casos, ginásios ou até salas de sesta”. Semanário Expresso, Caderno Economia de 20 de Julho de 2019.
[34] Vide “A nova orgânica da Guarda Nacional Republicana”, Revista Pela Lei e Pela Grei, n.º 82 Abr/Jun 2009.
[35] Apud Mira Vaz, Nuno, “A Civilinização das Forças Armadas nas Sociedades Demoliberais”, Lisboa 2002, pág. 114.
Possui a Licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa e Pós-Graduação em Estudos da Paz e da Guerra pela Universidade Autónoma de Lisboa.