Nº 2621/2622 - Junho/Julho de 2020
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Editorial
General
José Luiz Pinto Ramalho

Embora a comunicação social tenha vindo a centrar a sua atenção nos desenvolvimentos da Pandemia Covid-19 que nos assola, quer em termos nacionais quer internacionais, e as questões que se prendem com a segurança internacional sejam objecto de uma análise discreta, importa dedicar alguma atenção ao diferendo atual que se tem vindo a acentuar entre a França e a Turquia. O interesse decorre de ambos os países serem membros da OTAN e esse diferendo provocar afirmações dos dois lados, relativamente ao que consideram dever ser a reação da Aliança.

O incidente, que materializa as posições de cada uma das partes, resultou da tentativa de abordagem de um navio sob bandeira da Tanzânia, escoltado por navios de guerra turcos, suspeito de violar o embargo de armas à Líbia decretado pela ONU, ação que foi impedida por aqueles navios que “iluminaram ofensivamente por radar” a fragata francesa Corbert, que participava na operação de embargo da OTAN, “Sea Guardian”.

No seguimento, a França informou a OTAN de que suspendia temporariamente a sua participação naquela operação da Aliança até que esta se pronunciasse sobre o incidente e garantisse a efetiva adesão dos países-membros à decisão da ONU de estabelecer o embargo e, acrescentou, que não o fazer, seria a prova de que a organização está “em morte cerebral”, afirmação já anteriormente proferida por Macron. Acusou a Turquia de não respeitar o embargo e de ter “responsabilidade histórica e criminal” na atual situação vivida na Líbia. A Turquia negou, naturalmente, as acusações e acusou a França de ter uma atitude “destrutiva” relativamente ao processo de estabilização da Líbia e exigiu, na Aliança, um pedido de desculpas formais.

Na Líbia confrontam-se o GNA (Governo de Acordo Nacional), o Governo de Fayez al-Sarraj, sedeado em Tripoli, controlando a Tripolitânia, apoiado pela ONU, por vários países da OTAN, designadamente a Itália – antiga potência colonial – e pela Turquia, esta com uma atuação explícita na ajuda militar e apontada  como responsável pela transferência de 800 a 1000 mercenários da Síria para este país. Em oposição, está o Marechal Kalifa Haftar, em Benghazi, na região Cirenaica, que controla o leste da Líbia com o NLA (Exército Nacional Líbio), apoiado pelo Egipto, pela Arábia Saudita, pelos Emiratos Árabes Unidos, pelo Qatar e, de forma discreta, pela Rússia e pela França; no caso da Rússia, são referidas acusações de ligação ao grupo de mercenários Wagner, responsável por uma presença de cerca de mil elementos e pelo posicionamento e operação de 14 caças russos na base aérea de Al-Jufra, incluindo um sistema de defesa aérea. O NLA é ainda apoiado pelo Parlamento Líbio liderado por Aguila Saleh e sedeado em Tobruk. A Rússia tem negado o seu envolvimento militar, declarando que a eventual presença de russos no território não representa o país.

Nesta fase, a cidade de Sirte, segunda maior cidade da Líbia, a meio caminho entre Tripoli e Benghazi, e que constitui uma posição chave no contexto petrolífero do país, está sob ameaça por parte do GNA, o que poderá levar ao incremento do conflito e à entrada no teatro de operações de tropas do Egipto, que considera a alteração da atual situação como uma ação ofensiva apoiada pela Turquia e um risco para as suas fronteiras nacionais.

Depois de seis anos de guerra civil na Líbia, estão caracterizadas duas áreas de influência bem definidas, a turca, a oeste, e a russa, a leste, a realidade de uma quase partilha do território e de um impasse político e militar interno, dependente da interferência militar externa, para evitar que o atual conflito se tenda a eternizar.

Como se torna evidente na Líbia, à semelhança de outras partes do mundo, jogam-se ali interesses de várias potências, em que a legitimidade das partes é duvidosa, muitas vezes, a sua permanência no tempo e no terreno resulta de choques de interesses anteriores mal resolvidos mas, no caso presente, interessa avaliar o que se está a passar ao nível da Aliança, por força do diferendo que se instalou entre dois países-membros – a França e a Turquia – e eventuais implicações para a coesão política e militar da OTAN.

A Turquia começa a tomar consciência de que, para além da histórica má relação com a Grécia, no seio da Aliança cresce o mal-estar para com o mal disfarçado “imperialismo turco”, relembrando práticas do antigo império otomano, traduzido na afirmação política de criar uma zona tampão no norte da Síria, por razões de segurança, que se traduz numa anexação de território sírio; no acordo não reconhecido pela Comunidade Internacional, de redefinição de fronteiras marítimas com o governo da Líbia, dando-lhe acesso a importantes jazidas de gás natural no Mediterrâneo, em troca de apoio militar ao GNA; e, na exploração considerada ilegal pela UE, de gás natural nas águas territoriais de Chipre.

Também as relações da Turquia com a Rússia têm provocado irritações por parte de países-membros da Aliança, não só a Grécia e a França, mas particularmente nos países bálticos e nos antigos participantes do extinto Pacto de Varsóvia. Esse desagrado começou com o abate de um bombardeiro russo, em 2015, incidente ligado a uma situação nunca totalmente explicada de comércio ilegal de petróleo conduzido pelo DAESH, com a consequente aproximação turca à Rússia para evitar retaliações e com a aquisição posterior de material anti-aéreo russo, os mísseis S-400; o incremento dessas relações levaram à realização no interior da Aliança de um colóquio/reflexão relativamente a eventuais medidas a tomar, o que terá evitado declarações políticas turcas, dissonantes da política acordada na OTAN, quer relativamente às sanções económicas implementadas quer relativamente à presença russa na Crimeia e na Ucrânia.

Igualmente, a atitude turca relativamente ao fluxo de migrantes, para além da pressão que mantém sobre a fronteira da Grécia, tem utilizado o Acordo de 2016 com a UE, de impedir a passagem de migrantes para solo europeu, através de uma ajuda monetária da ordem dos seis mil milhões de euros, produzindo declarações periódicas, relativas ao controlo ou liberalização dos movimentos de migrantes, que não difere muito de um processo de chantagem para com a UE, com a desculpa de que esta confunde questões políticas com aspetos técnicos do acordo.

Por último, salientar mais um sinal de Erdogan, no seu afastamento dos valores identitários europeus, com a decisão do monumento Santa Sofia (Aya Sophie, para os turcos, e Hagia Sophie, para os ortodoxos), considerado património mundial pela UNESCO, deixar de ter a qualificação de museu e de local de cruzamento de culturas e de religiões, para ser novamente apenas mesquita; de facto, com Erdogan, o legado de Ataturk de uma Turquia laica, corre o risco de não ser mais do que uma memória histórica.

O facto da diplomacia turca perceber que a presença da Turquia na Aliança está sob forte escrutínio e contestação política, levou a que o Embaixador turco em França, Ismail Hakki Musa, declarasse que “a NATO sem a Turquia, não seria mais NATO, seria o fim da Aliança e não saberiam lidar com países e regiões como o Irão, o Iraque, a Síria, o Mediterrâneo do Sul, a Líbia, o Egipto e o Cáucaso”. Da parte da França, é pedido à Aliança uma declaração dos países-membros, relativamente ao seu compromisso para com a operação de embargo, estabelecida pela ONU, incluindo para com a missão europeia “Irini”, vocacionada para o mesmo efeito.

A posição dos EUA não tem sido clara sobre esta matéria. Tem repetido que se opõe à escalada da presença militar estrangeira na Líbia, tem manifestado o seu apoio ao GNA, mas já havia declarado, também em 2017, que “não via um papel para os EUA na Líbia” e Trump, em 2019, reconheceu junto do Marechal Haftar, que parece ter passaporte americano e ter feito a sua principal formação militar no Egipto, a importância “do seu combate ao terrorismo no país”.

Estamos assim perante uma situação no interior da Aliança que, para além daquelas que têm sido latentes e a exigir respostas políticas, incluindo lidar com a imprevisibilidade da liderança americana, configura um novo desafio que decorre de ter de encontrar uma resposta que satisfaça franceses e turcos e os restantes países-membros de uma forma consensual, para a investigação que aceitou conduzir, relativamente ao incidente entre os navios de guerra daqueles dois países.

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* Presidente da Direção da Revista Militar.

 

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2020-07-23
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General

José Luiz Pinto Ramalho

Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964. 

Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.

Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.

Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.

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by COM Armando Dias Correia