Confesso que gastei algum tempo a pensar se deveria ou não escrever este artigo, mas encontrei três argumentos que me levaram a fazê-lo. O primeiro, é o de que havendo quem utilize a História para fazer considerações sobre os militares e a guerra, áreas a que não somos estranhos, acho que tenho o dever de dar a minha opinião. Segundo, sendo a liberdade de expressão um bem precioso e desejadamente universal, que não é monopólio de alguns, considero importante referir aquilo que se escreve e é desajustado, menos rigoroso ou mesmo deturpado. Em terceiro lugar, lembrei-me daquela boutade anti-militar primária, do agrado daqueles que não entendem a Instituição Militar e a atacam, de que “pensar é a primeira forma de manifestação de indisciplina”.
Não desejando ser alheio ou disciplinado face a gente inteligente mas “detentora da verdade”, acho que não devo ficar calado quanto ao tema das manifestações de violência, porque são um assunto actual que merece uma análise aprofundada. Por vezes, o tema é misturado com a necropolítica, como “vertigem do ódio” e “formas contemporâneas de subjugar a vida ao poder da morte”, e o necropoder que o exerce, deambulando por diversas áreas e assuntos e desiludindo por falta de uma análise fria. Muita da argumentação utilizada consiste, normalmente, em conglomerados de citações, ideias e narrativas de marcado cunho ideológico, um autêntico melting pot onde cabem, por exemplo, a morte, a violência, a guerra, a escravidão, o imperialismo, o colonialismo, a tortura, o racismo, o capitalismo ou as crises financeiras. Não há, porém, um linear fio condutor de tudo isto, ainda que estes assuntos possam, com maior ou menor expressão, ter a ver com o “choque e pavor” em políticas actuais e futuras.
Sobre a política de “morte” ou mesmo a “banalização da violência”, utilizou-se a frase que Millán-Astray parece ter proferido em Salamanca, na presença de Unamuno, em 1936: Abajo l’inteligencia, viva la muerte. Se a frase foi uma resposta à posição de Unamuno não o sabemos, mas, em caso afirmativo, com elevada probabilidade, ela pretenderia exprimir que bastava de palavras da elite intelectual, porque o que era necessário era agir. De qualquer modo, o lema dos legionários espanhóis “Viva la muerte” não é a apologia da morte. É comum encontrar em lemas de unidades militares e em outras situações que envolvam elevados riscos, referências à morte, sem que isso signifique a apologia da mesma: há uma unidade militar inglesa cujo lema é “Morte ou Glória”, que um regimento português também adoptou; D. Pedro também a utilizou no Grito de Ipiranga – “Independência ou Morte”; os legionários espanhóis bradam “Viva la Muerte”. Em nenhum destes casos a palavra morte é utilizada para suscitar ou pretender uma “política de morte”. No caso de D. Pedro, que aqui lembro, ele quis dizer que o caminho para a independência poderia trazer sacrifícios ou mesmo a morte. Acerca disto, numa aula ao curso para oficiais generais em que havia um coronel brasileiro, eu disse, ironizando, que os brasileiros mostraram grande sabedoria porque, sugerindo-lhes D. Pedro dois caminhos na expressão “Independência ou Morte”, eles rejeitaram a morte e escolheram a independência. Quanto ao lema dos legionários espanhóis “Viva la muerte”, além de ser, sob o ponto de vista semântico, um verdadeiro nonsense, com ele não pretendiam cultivar a morte mas dizer que combateriam sem temer a morte.
Concordando que se estão a manifestar culturas de ódio no nosso século, as quais não temos mostrado “capacidade de domesticar”, recordou-se a Primeira Guerra Mundial, esse trágico conflito cujo centenário temos lembrado nos últimos anos, que elevou o número de mortes e feridos para níveis nunca antes atingidos e que não é um exemplo de “guerra como política” mas de “guerra sem política”. Se na fase inicial do conflito a política utilizou os elevados contingentes demográficos, as novas aquisições tecnológicas e as pulsões belicosas, para procurar alcançar em curto prazo certos objectivos, a partir do momento em que se verificou um impasse estratégico-militar o panorama modificou-se. A política, que é quem dirige a guerra, ausentou-se ou, como disse Raymond Aron, “a política entrou em greve”. Aliás, foi esta a razão que levou Clémenceau a dizer que “a guerra é um assunto demasiadamente sério para ser deixada aos generais”. Aquilo que sucedeu foi que a guerra sem a política a dirigi-la, sem objectivos para ultrapassar o impasse, transformou-se numa inútil e trágica carnificina.
Para além deste terrível conflito, julgo também desajustado ir buscar à guerra a razão para o uso vulgarizado da violência extremista. Com efeito, na guerra, ofensiva ou defensiva, o objectivo é neutralizar o inimigo utilizando a violência que a direcção política julgue possível e necessária para obter a vitória. De tal modo é assim que a maior vitória estratégica consegue-se quando se utilizam outros vectores que não o militar, ou a dissuasão, não havendo, portanto, necessidade de recorrer à violência armada. Além disso, continuando nós infelizmente a assistir a guerras, elas não são acontecimentos permanentes no fluir das relações internacionais. Aquilo que estamos a ver é o aumento da violência em situações de “não guerra”. A razão da existência da violência extremista não decorre de os “Estados modernos soltarem as pulsões destrutivas para conseguirem a extinção do inimigo”, porque nem nos mais trágicos conflitos, como na Segunda Guerra Mundial, em que a violência sobre cidades alemãs no final da guerra e contra o Japão atingiu o paroxismo, a ideia não foi a extinção dos povos alemão e japonês, mas obrigá-los a aceitar a paz. Depois da guerra, os Estados Unidos foram importantes na reconstrução desses dois países e no apoio às suas populações. Dito isto, deve também notar-se que pelo uso da violência armada, que está presente na guerra, este ambiente facilita que por vezes sucedam massacres e genocídios, até à margem dos próprios conflitos. Tal sucede porque a política se ausentou, como já se referiu; porque a direcção política perdeu o controlo sobre os instrumentos de coacção; ou mesmo porque a direcção política consentiu ou promoveu o massacre ou o genocídio. Destes casos lembramos o massacre na noite de S. Bartolomeu, em 1572, em França; o genocídio arménio feito pelo Império Otomano; o genocídio de judeus e outros grupos étnicos e religiosos praticados pela Alemanha nazi; os genocídios feitos pela direcção comunista da União Soviética; o genocídio dos tútzis no Ruanda; o massacre dos bósnios feito pelos sérvios em Srebrenica.
Apesar disto, na guerra, como nos disse Clausewitz na definição trinitária, domina a racionalidade “da sua natureza subordinada de instrumento da política”, e mesmo a “violência original do seu elemento, o ódio e a animosidade” nem sempre são evidentes. Lembramos a confraternização natalícia entre ingleses e alemães na Primeira Guerra Mundial e os versos de Yeats sobre o aviador irlandês lutando pela Grã-Bretanha, também nesse conflito: “those that I fight I do not hate / those that I guard I do not love”. Fora da guerra, o ódio e a violência extremista são alimentados e utilizados por indivíduos, grupos de indivíduos e organizações à margem da política e sem que esta os consiga domesticar.
Muitos dos argumentos também aduzidos em comentários, quase sempre sem rigor histórico e utilizados com demagogia, referem os “descobrimentos”, a escravatura, o colonialismo e o racismo. Acerca das descobertas, importa citar Paul Valéry, quando ele diz que com os descobrimentos dos portugueses “começou o tempo do mundo finito”. É óbvio que a aventura marítima não nos levou a terras não existentes, como a ilha Utopia de Thomas Morus, mas a um mundo que era desconhecido da Europa. Pessoa diz-nos isso, também, quando refere que os portugueses foram ver “o que é que os taipais do mundo escondem das montras de Deus”. Isto é, essas terras, essas gentes, essas novidades estavam encobertas, escondidas, sem que as conhecêssemos. Conhecê-las foi descobri-las, aumentar o conhecimento do mundo, ver novos horizontes e dar início à globalização.
Em relação ao racismo, procura-se respaldo na prática da escravatura, que aos olhos de hoje se apresenta como algo abominável. No entanto, períodos houve em que as sociedades conviveram com a existência de escravos: em tempos idos, os prisioneiros de guerra ficavam sujeitos à escravidão; na democracia ateniense havia escravos; comerciantes árabes e chefes tribais africanos, durante centenas de anos, venderam gente que aprisionavam para serem escravos, ainda que hoje se culpe, unicamente os europeus e não os que depois os traficaram, como árabes, egípcios e o império otomano; a democracia americana, apesar das boas intenções da sua Constituição, demorou muitos anos até acabar com a escravatura, o que obviamente deixou sequelas; e ainda hoje, com formas mais sofisticadas, uma quase-escravatura permanece na exploração de gente pobre e ignorante e, no campo ideológico, quando a rigidez da doutrina e o dogma anulam a liberdade de pensamento e escravizam o indivíduo.
Note-se que o poder de vida e de morte sobre o escravo, sendo algo de terrível, se praticado, era uma acção anti-económica, pois significava acabar com essa fonte de energia muscular. Pondo de parte o ponto de vista moral, que é bem diferente, porque uma pessoa não é comparável a uma coisa, isso era tão absurdo como hoje um proprietário de um parque de energia destruir painéis solares. Mais importante, nos nossos dias, são o racismo e a xenofobia que decorrem de fundamentos étnicos ou religiosos. Eles são resultado de diferenças de raça, religião, cultura e nacionalidade, por se ver no outro um ente diferente no aspecto, na cultura, nos princípios, na maneira de viver. Este “racismo” é gerador de violência a nível individual, em grupos de indivíduos e, por vezes, até origina conflitos dentro de uma nação, como são os do extremismo islâmico em países europeus, e mesmo entre países e religiões, como sucede entre a Índia e o Paquistão e entre sunitas e xiitas.
Quanto ao colonialismo, numa senda de auto-flagelação, sublinha-se os defeitos e contraria-se a visão “soft” da colonização portuguesa. Assim, não se faz notar que a colonização portuguesa inicialmente foi mais comércio do que domínio; que passou a ser mais domínio quando outros colonizadores contestaram a presença portuguesa; que as campanhas de pacificação foram como uma continuação das lutas tribais; e que, quando Portugal em África, além do comércio, pretendeu o domínio, como era a intenção do mapa cor-de-rosa, chocámos com as pretensões de outras potências, como ficou demonstrado pelo ultimato inglês de 1890.
Quando, sobre a guerra de 1961 a 1974, se lembra Wiriamu, esta referência merece algumas considerações: a primeira, é a de que se tratou de uma acção terrível e lamentável praticada por uma pequena unidade do exército português; a segunda, é a de que é evidente o contraste entre a descrição feita e a total omissão do massacre de brancos e pretos feito pelos independentistas angolanos apoiados pelo comunismo internacional, em 1961, no Norte de Angola; a terceira, é a de que numa extensa guerra de catorze anos, em que houve certamente excessos de violência de parte a parte, não se conhece outro caso como o do horror ali verificado. Além disso, tendo havido casos tão ou mais graves praticados por outros exércitos, de países ditos civilizados, isto mostra que não somos nem os únicos nem os piores do mundo.
Há algum tempo, comentou-se o facto de o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas ter citado a frase de Mouzinho de Albuquerque, escrita na carta ao Príncipe Real – “Este reino é obra de soldados”. Entre essas críticas foi referido que Mouzinho “era um bandeirante protagonista de algumas das epopeias mais cruéis em África” e que ele “se sentiu aliás tão mal que sete anos depois suicidou-se.” É estranho que não se saiba o que foram os bandeirantes, a ponto de o designar como tal, e que, numa atitude iconoclasta, se pretenda destruir a memória de um português que protagonizou actos de heroísmo, em que o seu mais conhecido inimigo não foi morto mas simplesmente feito prisioneiro. Além disso, com essa acção militar Mouzinho travou a intenção inglesa de se apoderar da região a sul do Save, que por isso pertence hoje a Moçambique. Mas dizer-se que Mouzinho se suicidou por se sentir mal com a acção militar que empreendeu é verdadeiramente original por sugerir-se que ele teria morrido, quiçá, por stress pós-traumático! Enfim, Portugal não é unicamente obra de soldados, mas temos que nos regozijar de não ser apenas obra de alguns não-soldados que emitem certas opiniões…
No entanto, não deixamos de acompanhar todos os que se preocupam com o aumento do ódio e da violência, sem que o poder político tenha capacidade de os “domesticar” ou, ainda mais grave, quando o próprio poder os promove. Já não os acompanhamos na preocupação em ancorar completamente o ódio, a violência e a morte, na escravatura, no racismo, no colonialismo, no imperialismo e na guerra. A guerra é, sem dúvida, uma manifestação de grande violência, mas o poder político que a dirige superiormente e que com ela pretende a paz deve conduzir o fenómeno com racionalidade. Sobre a “ascensão aos extremos de violência”, expressa na análise teórica que Clausewitz fez da guerra, deve notar-se que, na prática, há limitações devido à “máxima” (como a designou Aron) de que “a guerra é uma simples continuação da política por outros meios.”
A identidade é muitas vezes fundada na etnia, na raça, na língua, na religião, no sexo, na nacionalidade, no nível de riqueza, na ideologia e nos costumes, mas essa identidade pode ser aberta à diferença ou rejeitá-la. A abertura à diferença foi uma conquista civilizacional, mas por vezes sofre limitações ou até interrupções. A aceitação da diferença e a tolerância são caminhos para a ordem e paz social. O sublinhar da diferença pode conduzir ao ódio e à violência, com um sentido ascendente, do indivíduo ou do grupo para o poder, classe dirigente, establishment, religião, ideologia; mas pode ter um sentido descendente, do poder, da religião, da ideologia para os portadores da diferença. Existem entidades religiosas extremistas que têm conduzido acções de violência e morte, como são os ataques terroristas.
Em relação ao aparecimento do ódio e da violência, o poder político pode usá-los em seu proveito, consenti-los, apoiá-los, ignorá-los ou combatê-los. O poder político personalizado pode ser agente de paz ou de ódio e vio-
lência; De paz, lembramos Gandhi, o Papa Francisco, Nélson Mandela; de ódio e violência, estão, entre outros, Hitler, Estaline, Mao, Pol Pot, Trump, Netanyahu, Erdoğan.
Enfim, o ódio, a violência e a morte na sociedade actual, a sua ligação ao poder político ou a dificuldade em domesticá-los deve merecer um estudo aprofundado. Mas cuidado com a inteligência, Viva la Vida!
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.