Nº 2628 - Janeiro de 2021
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Manoel Godinho de Erédia Grande Cartógrafo e Cosmógrafo da India Portuguesa, nos séc. XVI e XVII
Tenente-coronel
João José de Sousa Cruz

1. Apresentação. A sua imagem

Por altura do fim do séc. XVI e começo do século seguinte, há imensas referências a um engenheiro militar e cartógrafo, luso-macassar de nome Manuel Godinho de Erédia (1563-1623). Licenciado pela Ordem dos Jesuítas, matemático e estudioso fantasista da história da terra Malaia, actual Insulíndia.

No entanto, a imagem que Erédia pretendia ser passada para a posteridade era a da figura 2.

Figura 1 – Manuel Godinho de Erédia, numa imagem do século XIX.

Figura 2 – Erédia, com o uniforme da Ordem de Cristo, o seu Brazão de família, dos Erédia, e um globo apresentando a “Índia Meridional” que pretendia juntar ao Império Ibérico. Obcecado pela descoberta das ilhas do ouro, luta toda a sua vida por fazer reconhecer os seus méritos de cosmógrafo e de descobrir as regiões ao sul da Insulíndia que ele denomina de “India meridional”.

 

Em 1955, o Estado Português deu a Manuel Godinho de Herédia as honras de herói nacional; não só o tornou figura de colecção filatélica nacional no Estado da Índia, então, ainda portuguesa, como também atribuiu o seu nome a uma simples artéria, até então, a Rua 14 do Bairro de casas económicas da Encosta do Restelo, desde 1960. É pena que só 332 anos depois de ter falecido lhe tenha sido atribuído o valor a que tinha todo o direito como homem, e como cientista.

Figura 3 – Selo.

 

2. A sua vida:

Da sua “Nota de Assentos”, consta: nasce em 16 de Julho de 1563, em Malacca e é o quarto filho de João de Erédia Aquaviva e de Helena Vessiva, filha do rei João de Supa, de Macassar. O seu pai fez parte de uma expedição missionária portuguesa ao Sulawesi quando conheceu Helena, então de 15 anos, que se apaixonou pelo capitão português e casaram em 1545. Em 1576, conclui os primeiros estudos no colégio dos Jesuítas de Malacca, e foi transferido para o estabelecimento homólogo de Goa. Teria, então, cerca de treze anos de idade. Recolhido pelo Padre Gonçalo Álvares, que fora o primeiro visitador da Província jesuíta da Índia, em 1567, Erédia vai receber aí a corrente instrução secundária em humanidades, após o que ingressa no noviciado da mesma Companhia (cerca de 1574). Chega a pronunciar os votos menores e talvez a dar aulas como “mestre de matemáticas”, mas é forçado a abandonar o Seminário, no final de 1584, por alegada “falta de vocação”. Alessandro Valignano classifica-o de “estudiante sobremaneira distraído y sin tener nenguna parte buena” quando tem de justificar este afastamento. Contudo , ainda que um carácter demasiado aéreo possa ter contribuído de forma definitiva para tal juízo, talvez não ande muito longe da verdade quem percebe, através da correspondência da época, que o seu sangue mestiço constituiu um embaraço complementar ante os pareceres que iam sendo repetidos, por essa altura, em Roma e em Goa, no sentido de se condicionar a entrada de indígenas na Companhia de Jesus. No seu retrato autobiográfico, Erédia explica este abandono da vida monástica pelo seu desejo de reformar “as antigas descrições do Mapa Mundi e com novas descrições do Catai e da India Meridional”, para ele, a Austrália. Em 1580, sai do seminário e ingressa na oficina de arquitectura e cartografia de João Baptista Cairati, na altura, cosmógrafo-mor da Índia. Em 1586, casa-se com Violante Sampaio, em Cochim, de quem teve uma filha, em 1587, e um filho, em 1588. Em Fevereiro de 1594, é incumbido de promover o descobrimento da Ilha do Ouro (provável Austrália). Em 1606, por ordem do general André Furtado de Mendonça, Erédia regressa a Goa para tratar da sua saúde, pois desenvolveu uma doença chamada “beribéri” e por causa desta não pode voltar a Malacca com o Vice-Rei Martin Afonso de Castro. Este, tinha-lhe entregue uma ordem endereçada ao Arcebispo, governador do estado de Malacca, autorizando o portador a fazer aprovisionamento para a Fortaleza de Malacca. Esta ordem ficou sem efeito por morte do Vice-Rei, em 1607.

Uma observação pontual, porque ajuda a perceber as demoras nas deslocações entre pontos fortes portugueses, na Insulíndia. As deslocações entre Goa, Malacca, Amboíne e regresso a Goa podiam demorar cerca de 23 meses. Mas, se passassem por Banda, demoravam dois anos e meio.

Em 1623, morreu em Goa, sem nunca realizar o seu sonho de inscrever Luca Antara no património da Ibéria.

 

3. O que produziu em literatura

Chegaram ao conhecimento público os seguintes trabalhos de sua autoria:

Em 1597, publica o seu primeiro livro, de nome “Informação da Áurea Chersoneso ou Península e Ilhas Auríferas Carbúnculas e Aromáticas”. Em 1597, Ortélius desenhava assim Samatra e Java como Áurea Chersonesus (figura 4). Trata-se de uma apresentação razoavelmente nivelada da península malaia, Samatra, Java, Bornéu, Macassar e do Arquipélago Maluko, utilizando os nomes clássicos.

Figura 4 – Áurea Chersonesus, por Ortélius.

Figura 5 – Áurea Chersonesus, por Ptolemeu.

 

A representação da Malaysia, por Ptolemeu, reduzida a Aurea Chersoneus, a sul da India Extra Gangem (figura 5). Era o campo principal de estudos de Erédia.

Em 1600, publica um segundo livro chamado “Lyvro das Plantaformas das Fortalezas da Índia”. A palavra plantaforma usada por Manoel Godinho de Erédia (séc. XVI), deve querer dizer planta topográfica de cada fortaleza que desenhou1. Na falta de imagens deste livro apresento o Livro das cidades e fortalezas da India, que foi escrito em 1582 e se encontra na Biblioteca Nacional de Madrid, com o nome de o Livro das cidades e fortalezas, que a coroa de Portugal tem nas partes da Índia e das capitanias e mais cargos que nelas há e da importância deles (figura 6).

 

Figura 6 – Livro das cidades e fortalezas (1).

 

Esta obra não tem planta de fortalezas, mas somente do que se pode encontrar em cada cidade não constando o nome do autor, nem se foi incluído algum trabalho de Erédia. Como abertura pode ler-se:

Exemplo como abertura da cidade de Malacca:

Figura 7 – Livro das cidades e fortalezas (2).

Figura 8 – Livro das cidades e fortalezas (3).

 

Ainda em 1610, publica terceiro livro: Informação sobre a Índia meridional. Aqui, Erédia juntou todo o seu conhecimento geográfico sobre a sua região “a India Meridional, o Japão e as Felipinas”. Falta nesta carta a verdadeira India Meridional de Erédia e que ele tentava unir ao Império Português, o referente ao próprio continente australiano (figura 9).

Figura 9 – A Índia Meridional de Erédia.

 

E ainda um quarto livro: Atlas das Fortalezas do Oriente, executado por ordem do Vice-rei Rui L. Távora.

Os livros descritivos e informativos sobre o que havia no Estado da Índia são muitos e um pouco difíceis de encontrar. Já se me depararam alguns que passo a descrever:

Livro das Plantas de Bocarro (1635);

Lyvro de Plataforma das Fortalezas da Índia (1620), de Erédia;

Livro da plataforma das fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental (1640);

Livro das cidades e Fortalezas, que a Coroa de Portugal tem nas partes da Índia (1582);

Relação das plantas de descripsões de todas as Fortalezas, Cidades e Povoações que os portugueses teem no Estado da Índia Oriental (1622-1633);

– “Carta de Macau”, de Erédia, do Atlas Miscelênia (1615, 1622).

A obra Plantas de Praças das Conquistas de Portugal feytas por ordem de Ruy Lourenço de Távora Vizo rei da Índia existe no Brasil, na Biblioteca Nacional Digital2.

Outros trabalhos cartográficos ou projectos de Erédia:

Figura 10 – Defesas.

 

Em 1611, publica um quinto livro: Discurso sobre a província do Indostão: chamada Mogul, e corruptamente Mogor, com a declaração do Reino de Guzarate e mais reinos de seu distrito.

Publicou o seu sexto livro: Declaração de Malacca e Índia Meridional e Catay, no ano de 1613, e divide-o em três partes:

a) A península Malaia;

b) A área Sul da Indonésia;

c) A Índia Meridional e o Catay (Japão).

A Declaração de Malacca foi traduzida para inglês, por J. V. Mills, em 1929, e é, até hoje, a sua obra mais estudada internacionalmente. Na “Descrição de Malacca”, Erédia descreveu, em 1613, importantes informações sobre a região circundante e sobre a genealogia dos reis de Malacca, até 1511, altura da conquista da cidade pelos portugueses. Também indica o local onde se encontra sepultado o fundador Parameswara e sobre as trilhas terrestres tradicionais “Malaio panarikan”, uma rota curta que separa o rio Muar e o tributável navegável mais próximo do rio Pahang, usado pela população local ao atravessar partes da Península.

Em 1620, Erédia escreveu o seu sétimo livr:, o Tratado Ofírico. Este livro é sobre uma hipotética ilha da Indonésia, de onde Phelipe III, como o rei Salomão, tinha poder sobre a bíblica Ophir, onde iria obter fontes de riqueza para “reconstruir o templo e reocupar Jerusalém”.

Do seu oitavo livro: Suma de árvores e plantas da Índia intra Ganges, podemos ficar sabendo que:

Figura 11 – Primeira capa da “Declaração de Malacca”, manuscrita.

 

Nome do producto

Origem

Uso terapêutico

Ambareyra

Ásia

Curar chagas da boca

Ananás

América do Sul

Bom para o estômago

Ariqueira

Sueste asiático

Conservação do estômago

Brindeyra

Ásia e Índia

Purgativo, desfaz cólera, tira dores de cadeiras

Caju

América do Sul

Deitar ventosidades, cortar fleimas; fazer boa digestão

Caramboleyra

Ásia tropical

Uso para conservas

Coco/lanha

Américas e Índias orientais

A água tomada por doentes de frialdades serva para fazer purgar; limpar o corpo; o miolo serve contra veneno de solymam

Combalenga/
abóbora de água

Ásia e África tropical

 

Figos

Ásia e Índia

 

Goyava

América Central e Sul

Para estômagos fortes

Jacas

Ásia e Índia

Contra febres, gretas na língua de calor.

Jambo

Ásia. Arquipélago Malaio

Aguada e muito fria. Ruim para a digestão

Mata a sede

Jambolão

Idem

Quente, tira doença do baço

Jangomeira

Ásia, Índia

Fria. Estancar câmaras

Mangueira

Ásia

Contra mordexim e desinterias

Papaya

América do Sul (Andes)

 

Romeyra

Europa

 

Tamarinheyra

África Tropical

Fazer Trycias

 

Em 1615, publica o nono livro História dos Serviços e Martírio de Luis Monteiro Coutinho (figura 13), que é profusamente ilustrado com desenho a aguarelas de Erédia.

A obra, dedicada ao “ilustríssimo D. Aleixo de Menezes, Arcebispo de Braga”, cuja dedicatória foi feita em Goa, em 11 de Novembro de 1615, contendo várias estampas que são apresentadas seguidamente.

A primeira página, manuscrita, trata da apresentação do martirizado ao leitor. Entre diversas páginas manuscritas encontram-se várias imagens coloridas por Erédia. A história, resumidamente, é uma batalha mal conduzida que termina com uma derrota dos tropas portuguesas e o desbarato de todos os intervenientes, incluindo o comandante D. Luis Monteiro Coutinho.

 

Figura 12 – O Cajueiro, desenhado por Erédia, no Suma de árvores e plantas…

 

Figura 13 – História dos Serviços e Martírio de Luis Monteiro Coutinho.

 

   

Figura 14 – Combate Naval entre a frota de Matias de Albuquerque perto do rio Johor.

 

Figura 15 – Combate naval entre Monteiro Coutinho nas suas galeras e a armada de Ache.

 

Monteiro Coutinho (1527-1588) embarcou para a Índia, para prestar serviços em diversas campanhas militares e expedições, visitou a côrte de Akbar e, em 1576, viajou para Malacca, tendo sido nomeado Capitão-Mor do Mar de Malacca. Depois de ter participado em vários combates com achéns (naturais de Achém, um reino situado na extremidade noroeste de Samatra), foi assassinado com um tiro de canhão ao recusar renegar a fé cristã. Os seus companheiros foram todos martirizados, em 24 de Março de 1588.

Figura 16 – A cena sangrenta dos mártires portugueses em Ache.

Figura 17 – O Martírio de Luis Monteiro Coutinho, mostrando este ajoelhado perante o canhão que o desfez.

 

Ainda hoje, na região de Ache, existem os descendentes de portugueses que aí se estabeleceram; eram conhecidos pelos seus olhos azuis, e foram destruídos principalmente pelo macaréu (tsunami) de 2004.

Após apresentada a obra Tratado Ophírico, Erédia projectou construir uma Geografia Universal da Ásia Extrema. Julga-se que ficou só no projecto.

Figura 18 – Ideia de Ásia Extrema, segundo Erédia.

 

Entre 1616 e 1622, Erédia publicou também o Atlas Miscelênea que, pensamos, substituiu o referido anteriormente como Geografia Universal da Ásia Extrema. Este Atlas está actualmente desaparecido.

 

4. O que pretendia da sua vida profissional

Considerava-se um português mestiço, mas, devido à sua mestiçagem, nunca lhe foi prestada homenagem ao seu real valor, pelo menos em sua vida.

Na obra Declaração de Malacca, dedicada ao Rei de Espanha e de Portugal, D. Phelipe II, na página 71 pode ler-se:

Ordem do Rei D. Phelipe para Erédia descobrir a India do Sul (meridional) em 1594.

Comissão do Vice-Rei Aires de Saldanha para Godinho de Erédia como “Adelantado da India do Sul”, (que não pôde executar).

A comissão foi confirmada pelo sucedendo Vice-Rei Ayres de Saldanha e com o título de “Adelantado da Índia Meridional” sendo prometido a vigésima parte dos proventos do novo estado”.

Segue assim da corte de Goa para Malacca onde completou as suas preparações para prosseguir para o sul, de modo a cumprir a viagem para a Índia Meridional, a Terra do Ouro.

Em 1604, dirige a construção da Fortaleza de Muar, para a defesa de Malacca.

Erédia, na mesma era, deu ordens para a fundação de outros fortes. No ano seguinte, é recebida uma carta do Rei a pedir informações sobre a sua pessoa.

Consta de uma carta do Rei ao Vice-rei, em 1609, onde o monarca pretende saber se conviria nomear Erédia cosmógrafo-mor. Em 1610, por informação negativa do Vice-Rei, não é nomeado.

Ainda neste ano, Erédia adopta o título de “Descobridor”.

 

a) Como descobridor

Por instrução datada de Lisboa, de 14 de Fevereiro de 1594, o Rei D. Phelipe III ordena que “os descobrimentos na Índia meridional devem ser feitos por Manuel Godinho de Erédia, matemático”.

No ano de 1601, obtém a confirmação do alvará agora pelo Vice-Rei Aires Saldanha, com o título “Adelantado, Hábito de Cristo e vintena de rendimentos da Feitoria”. Nesta data, vigorava a União Ibérica, pelo que as nomeações são feitas em castelhano.

Ainda neste ano de 1601, parte para Malacca, provavelmente mobilizado para a campanha de André F. Mendonça.

Entre 1600 e 1623, a actividade de Erédia canalizou-se para os seus projectos e descobertas. Deslocou-se a Goa, a Malacca e à Insulíndia (1601 a 1605), uma viagem eventual a Ceylão, e nos países vizinhos de Malacca e Guzarate.

Soube do desembarque de pescadores numa terra a sul de Timor. Na imagem de Luca Antara 1 (figura 23), o itinerário dos pescadores de Ende parece estar marcado a linha ponteada.

Face ao seu entusiasmo (de Erédia) e tentando conter o seu ânimo, o futuro Vice-Rei André Furtado de Mendonça atribui-lhe a missão de submeter Muhamad Kunhali Marakkar, o corsário de Malabar.

 

Figura 19 – A Índia Meridional, em 1546.

 

Erédia queria completar as descobertas de Álvaro Mendaña de Naira (espanhol) e de Pedro Fernandes de Queirós (português); o primeiro, descobriu, em 1567, as Ilhas de Wake e Salomão, e o segundo, em 1606, a Austrália do Espírito Santo (Vanuatu).

Seria o cerco por leste e oeste, da influência jesuíta na descoberta do continente australiano.

Mendaña e Queirós ficaram perto.

Torres passou pelo estreito que depois recebeu o seu nome, e regressou às Felipinas.

Erédia quase chegou a Luca Antara.

Figura 20 – Rotas marítimas.

b) Como matemático e engenheiro

Entre 1583 e 1596, Erédia trabalhou com o milanês Giovani Battista Cairati que desempenhava o cargo de Engenheiro-Mor das Índias.

Existem imensos esquissos, esboços e plantas feitas à mão, mesmo de localizações no Livro das cidades e fortalezas na Índia que se supõe serem de Erédia.

Enquanto Erédia esteve na Fortaleza de Malacca, ocupou-se da sua fortificação e defesa, assistindo nos trabalhos necessários em fossas, muralhas e nas paliçadas melhorando o sistema de observação, vigilância e guarda da mesma fortaleza.

O tempo restante destinou-o a fazer descobertas no distrito da cidade, com visitas e explorações como “descobridor” preparando planos e descrições corográficas da zona. Descobriu muitos locais com “depósitos de metais”, como ouro, prata, mercúrio, lata ou “calen”, ferro e outros metais, pedras preciosas e outros minerais, incluindo salitre. Foi em 1613 que o Vice-rei Jerónimo de Azevedo (1612-1617) mandou Erédia desenhar um inventário de recursos mineiros de Goa, onde foram descobertos depósitos de cobre e de ferro, ainda hoje significativos.

 

c) Como cartógrafo e cosmógrafo

Os reais motivos do desgosto de Erédia, embora difíceis de entender por quem nunca esteve em Goa em época colonial, eram fáceis de entender, sabendo que um mestiço, mesmo da sua craveira, dificilmente obteria o que por certo teria direito se fosse português originário.

Figura 21 – Área de acção de Erédia.

 

Desenhou duas cartas da Insulíndia e de Malacca, em 1602, uma das ilhas de Banda, em 1601, uma de Goa, em 1620, e um atlas com 137 cartas, em 1620, e outro atlas, em 1610, com os desenhos de vinte fortalezas construídas pelos portugueses no Estado da Índia.

 

Figura 22 – Cidade de Goa desenhada por Erédia, em 1620.

 

Figura 23 – Luca Antara 1.

 

A carta de Goa foi a primeira a ser executada por Erédia, e é a planta mais antiga que se conhece desta cidade, datada de 1620. Foi feita por ordem do Vice-Rei3.

A figura 23, “Nova Tavoa Geográfica do Mar De Novas Terras do sul Feita polo cosmographo e math. Emanuel Godinho de Erédia Anno de 1602” (Luca Antara 1), é classificada por J. V. Mills, seu inglês tradutor do “Descrição de Malacca…”, como “a cartographical night mare”, ou seja, “um pesadelo cartográfico”. Ainda comparado com a mesma zona geográfica, de autoria de Jacopo Gastaldi, (Luca Antara 2) parece-me esta última muito mais confusa (figura 24).

Em 1871, Ruellens, bibliotecário em Bruxelas, descobriu uma comunicação original de Erédia ao rei Phelipe III sobre os seus feitos nos mares do sul. Ruellens concluiu que seria um trabalho de um “descobridor de papel”. Como teria Erédia incluído a Austrália se nunca tinha lá estado? Erédia agarrou-se aos doze dias de viagem de Balambuana até à costa da Austrália (600 milhas), que considerou um tempo justo de viagem, para classificar possível este sonho de descobrir a Terra do Ouro. No livro de Marco Polo, este diz “(…) deixando Java por 700 milhas por sul, sueste, aparecem duas ilhas, Sondur e Condur, as quais não têm interesse. Mas mais 500 milhas por trás de Sondur encontra-se Lacach onde há pau-brasil, ouro, elefantes e conchas de porcelana”.

                     Insulíndia, na carta de Gastaldi, em 1561.

                                 Zona idêntica, desenhada por Erédia.

Figura 24 – Mapas da Insulíndia.

 

Erédia desenhou a Insulíndia, as Filipinas e a China, o mais simples possível, mas bem definidas (figura 24).

Erédia, com os seus preciosismos, parece melhor cartógrafo do que Gastaldi, basta comparar as duas imagens anteriores.

Outro trabalho cartográfico de Erédia foi o levantamento da área de Malacca e seus arredores (figura 25).

Por volta de 1610, aparece muita cartografia avulsa, depois incluída nos seus livros.

Figura 25 – Malacca e arredores.

 

No referente a Timor que era das últimas pequenas ilhas de Sonda, Erédia desenhou:

Figura 26 – A Ilha de Timor, também de autoria de Erédia.

 

Figura 27 – Timor actual (Google).

 

Figura 28 – Ilhas a norte de Timor Leste, Ende, Solor e outras, desenho de autoria de Erédia.

 

Figura 29 – Sonda Oriental perto de Timor, a mesma zona do desenho acima mostrado (Google).

 

 

Cartografia diversa e outras obras cartográficas

Figura 30 – Atlas Universal, de Erédia.

 

Há poucos Atlas Universais portugueses, e de autoria de Erédia (ou a ele atribuível) somente o Atlas Miscelânea (1615-1622)4.

Erédia também deve ter copiado mapas do Japão aprendendo com Inácio Moreira, com Valignano e outros jesuítas, que acompanhou em Goa. Chamavam-lhe de “o cosmógrafo luso-malaio”, contemporâneo dos dois.

Figura 31 – Ilhas de Banda, por Erédia (1601).

 

Representação da Insulíndia, entre 1587 e 1622, conforme o conhecimento ia aumentando e o segredo ia rareando.

    
 

Figura 32 – Parte da Insulindia, de Gerritsz (1622), cartógrafo mór da Companhia das Indias Holandesas.

Figura 33 – A Insulíndia, de Joan Martinez (1587), cartógrafo de Phelipe I de Portugal (Madrid).

 

 

Figura 34 – A Insulíndia, de Linschoten (1591).

 

Linschoten é um óptimo desenhador e brilhante observador, mas comerciante. Após doze anos de ter sido aceite em Goa como acompanhante do Bispo nomeado, transcreveu todo o seu conhecimento e vendeu-o aos seus amigos comerciantes “provincianos-unidos” que, entretanto, criaram com apoio dos sefarditas (de Portugal e de Espanha) a Verenigde Oost-Indische Compagnie – VOC (Companhia das Índias Holandesas), que tão mal tratou todos os portugueses.

Erédia só teve continuadores dez anos após a sua morte, pois nenhum dos filhos lhes deu continuação.5

Erédia foi um excelente desenhador, ignorando-se quem o formou e onde foi formado. Pensou-se que teria tido ligações com Fernão Vaz Dourado, um outro mestiço luso-indiano, autor de cinco Atlas muito importantes feitos em Goa, mas ele morreu em 1580, quando Erédia ainda estudava na Companhia de Jesus.

Não obstante, o Frade Agostinho de Azevedo informou Phelipe III de Espanha, e II de Portugal, que “as cartas marítimas fabricadas na Índia, eram as melhores do mundo” e todas essa cartas tinham sido feitas pelo “mestiço de Goa”, referindo-se talvez a Erédia, embora houvesse mais mestiços a desenhar cartas, nessa cidade. Este é, no entanto, classificado como um dos mais brilhantes artistas da “época áurea da cartografia portuguesa”6.

Figura 35 – Planta da Fortaleza de Malacca, de Erédia5.

Figura 36 – Cerco da Fortaleza de Cunhale pelo Vice-Rei André Furtado de Mendonça, em 1600. Mais um provável desenho de Erédia.

Figura 37 – Malacca, desenhos de Erédia.

 

Outra planta desenhada por Erédia, é um estudo sobre Macao, onde se presume que não tivesse presença física no enclave, mas que desenhou por informações obtidas por terceiros.

Figura 38 – Planta de Macau desenhada por Erédia, entre 1615 e 1622.

 

Este desenho foi copiado do Atlas Miscelânia (da colecção de Carlos M. Machado Figueira – Lisboa), e está agora desaparecido. Este esboço está incluído no Livro de Plataforma das Fortalezas da Índia. Nem António Bocarro nem Pedro Barreto de Resende dispensaram o recurso a plantas que já se encontravam nos compêndios cartográficos, elaborados anteriormente por Erédia.

 

d) Como jesuíta

Como os seus irmãos, recebeu uma educação jesuíta, e dois deles tornaram-se padres em Malacca.

Em 1575, segue para Goa para continuar os seus estudos no Colégio de São Paulo, tendo estudado gramática, que incluía filosofia, matemática e desenho.

Em seguida, ensina matemática durante uns anos no mesmo colégio de S. Paulo. Em 1579, entra na Companhia de Jesus, mas por pouco tempo, pois após a visita do Superior da Companhia Valignano, foi considerado inapto para a vida eclesiástica, por falta de vocação missionária, e por uma certa inadaptação social.

A noção com que se fica é que de facto Erédia foi afastado da vida religiosa como membro da Companhia de Jesus, mas tal tornou-lhe possível a carreira que seguiu de cartógrafo-cosmógrafo em Goa.

De facto, a Erédia só lhe interessava na vida desenvolver estudos sobre navegação e sobre explorações, sendo “visivelmente” interessado no campo da cartografia.

 

e) Como autor de obras manuscritas

É de notar que, na época de Erédia, tanto os desenhos como todo o texto de qualquer obra para imprimir tinham de ser executados manualmente.

Por exemplo, qualquer livro para ser aceite tinha de ser orientado para padrinhos, neste caso, eclesiásticos que podiam ou não autorizar a sua publicação. Reparar que o “intróito” tem todas as letras bem desenhadas e até a assinatura do autor estava bem desenhada. Era Manoel Godinho de Herédia ou Erédia.

Quem não desenhasse bem não podia ser cartógrafo.

Figura 39 – Manuscrito de Erédia.

 

f) Como militar

Como a Fortaleza de Malacca foi sujeita a sucessivos ataques de malaios, a força sob o seu comando e destinada à conquista da Índia Oriental foi anexada à defesa de Malacca e, em 1601, é investido como capitão de uma flotilha de caleluzes7 para combater os insurrectos malaios e andar no mar.

Erédia, enquanto esteve na Fortaleza, ocupou-se da sua fortificação e defesa, assistindo nos deveres necessários nas fossas, muralhas e nas paliçadas e melhorando o sistema de vigilância. Também porque os holandeses, nessa data, foram ocupando os estreitos de Bale e Solor e dificultariam por certo quaisquer tentativas de forças ibéricas para se dirigirem para sul (Luca Antara).

Face a estes acontecimentos e perante a duvidosa existência da Índia Meridional, Erédia julgou-se perseguido de tal maneira que adiou a sua viagem para o sul, esperando que, quando houvesse paz, o poderia fazer.

Há referência a uma viagem do rei Chiaymasuro, a Luca Antara, com a duração de um mês (ida e volta). Erédia pretende que essa viagem confirme a sua pretensão. Na mesma altura deu ordens para a fundação de outros fortes. No ano seguinte, é recebida uma carta do Rei a pedir informações sobre a sua pessoa.

André Furtado de Mendonça, mais tarde Vice-Rei, regressa a Goa.

Figura 40 – Combate naval entre portugueses e uma armada do Ache, em frente a Malacca.

 

Enquanto demorado na fortaleza de Malacca, dedicou-se ao serviço de marinha. Em particular, fundou a fortaleza de Muar, na foz do rio do mesmo nome, por ordem do Vice-Rei Ayres de Saldanha e do general André Furtado de Mendonça, emitida em 2 de Fevereiro de 1604. Também mandou executar os pontos fortes de Singapura e Sabbás.

Além disso, capturou e impôs as suas regras na cidade de Cottabatu, antigo tribunal de malaios, conquistado pelo capitão Paulo L. Pereira, em 1588.

      

Figura 41 – Lanchara de marinheiros malaios.

Figura 42 – Junco ou Soma da China.

 

Quanto ao serviço de marinha, teve á sua disposição todo o esquadrão sul de barcos de remos armados, consistindo em seis galeotas decoradas e 60 bautis que parecem “bargantis” ou pequenos barcos accionados a remos.

Com esta frota caçaram muitos espólios de guerra, infligiram muitos danos sobre as aldeias, nas terras de cultivo e noutros barcos malaios.

Figura 43 – Combatente típico do Arquipélago de Sunda.

 

5. Resultados obtidos

No livro intitulado Nicolau Clenardo (1494-1452), pedagogo e humanista, obra do Cardeal Dr. Manuel G. Cerejeira, o autor descreveu os mestiços como seres desorganizados, porque a influência das hereditariedades contrárias lhes dissolvia a moralidade e o carácter. “Eram almas prontas, por óbvias razões, para todas as baixezas e elemento nocivo para qualquer sociedade”.

Claro que esta opinião dada no século XX pode não ser correctamente aplicada a Erédia dos sécs. XVI-XVII, pelo menos face à obra deixada, mais de trezentas cartas geográficas legadas ao país.

Desta enormidade de produção pessoal, e “a par de uma cartografia de interesse real, pelos elementos novos que contém e pelos aperfeiçoamentos que revela no traçado de certas regiões, verifica-se a existência de uma outra cartografia eivada de congeminações eruditas, entrando frequentemente no domínio do absurdo. Neste aspecto Erédia sai fora das tradições da cartografia portuguesa e assim não admira que que o Vice-rei Távora, em 1610, informasse mal a sua pretensão de ser provido do cargo de cosmógrafo real do estado da Índia8.

Tal decisão que vai prejudicar grandemente Erédia não obsta a que, no mesmo ano, ele seja nomeado para fazer uma Relação das Fortalezas da Índia, para conhecimento de sua majestade o Rei da Ibéria.

Segundo escritores actuais, como Roderich Ptak e Rui Manuel Loureiro, as informações deixadas por Erédia não são tão importantes como a “Suma Oriental de Tomé Pires”, porque este informava directamente o seu soberano das especialidades desta terra, enquanto Erédia queria que reparassem nele também para ser nomeado como Cosmógrafo-Mor.

Nota-se que sofria muita influência do ensino clássico, mas fascinado com o “não normal”, e com as coisas preciosas (ouro, substâncias raras, etc.) que era um homem muito ambicioso, convencido da superioridade da sua formação escolar, que mostra constantemente aos outros “os seus feitos” como escritor e como cartógrafo, para obter o que ambicionava, ser Cosmógrafo-Mor, como já dissemos…

Perante a negativa do Vice-Rei, Phellipe III insta, quase na volta da correspondência, que “embora o cargo de cosmógrafo real que Godinho Erédia pedira (…) não há que fazer caso (…) mas vos recomendo o trateis conforme a sua habilidade, entretendo-o e experimentando-o no que houver lugar e de modo a que não seja impedido de exercitar o seu talento9. Não obstante o interesse de Sua Majestade, foi negado a Erédia a atribuição de uma pensão para, após a sua morte, para manter a sua família.

Na Torre do Tombo existe (livro 26, folha 137) um documento de Phelipe III para o Vice-Rei de Goa, perguntando sobre o projecto de Erédia e sobre a autenticidade das suas descobertas. Esta pergunta foi feita, em 27 de Março de 162910. No mesmo ano, Phelipe III fala dos escritos de Erédia ao governo de Portugal11.

João Teixeira Albernaz, em 1630, num álbum de 31 cartas, apresenta na folha n.º 9 uma legenda igual à indicada na figura 46, e descrita na página 105.

Além do levantamento de várias regiões asiáticas a que procedeu e das quais nos deixou as mais antigas cartas particulares hoje conhecidas, Erédia copiou cartas do seu tempo de que não encontrámos outros exemplares, ou que aparecem pela primeira vez, em obras suas (…)12”.

Figura 44 – Os três tratados de limites, entre Portugal e Castela.

 

Jaime Cortezão não põe em causa os trabalhos de Erédia e confirma que “era do conhecimento dos portugueses a existência de uma terra que haveria de vir a chamar-se Austrália13. Os dados geográficos conhecidos dos portugueses durante o séc. XVI sobre a Austrália resumiam-se à existência do Golfo de Carpentária e da Península de York, e nas suas relações de proximidade com a Nova Guiné, tinham conhecimento limitado a áreas a leste do meridiano das Malucas e na estreita vizinhança da linha divisória estipulada em Saragoça14. Por esse Tratado de 23 de Abril de 1529, Carlos V abandonava o arquipélago das Malucas, deslocando o limite Portugal/Espanha 297,5 léguas para oriente dessas ilhas. Assim, a Península de York e o Estreito de Torres passaram a ficar na parte correspondente ao direito português, mas, para tal, pagou o rei português 350.000 ducados em ouro. Os capitães das armadas recebiam as seguintes ordens do Rei espanhol: “de ninguna manera se toque ni descubra tierra en los limites assignados al rey de Portugal en la Bula de demaracción de las Indias15.

 

6. Referências póstumas

Nas Ordenações da Índia do Senhor D. Manuel de Eterna Memória, de António Lourenço Caminha, professor régio de Rhetórica e Poética (Lisboa 1807), lê-se:

Vida de Manoel Godinho de Erédia” de Diogo Barbosa Machado, para inteligência de leitor.

Foi Manuel Godinho de Erédia insigne matemático e assistente em Goa, cabeça do império asiático, escreveu a história de Luis Monteiro Coutinho, que foi morto por ordem do rei de Achem no ano de 1588.

Figura 45 – Primeira página das Ordenações da Índia.

 

Estas Ordenações da Índia de 1518/20, seria a lei escrita para ser cumprida e servia para dar maior poder ao Estado (Rei) nomeadamente sobre:

Instituiu a monopólio régio sobre a “pimenta”;

ameaça com escravidão aos mouros que as infringissem as suas regras,

e com retorna compulsiva ao Reino se o infractor fosse português;

aos particulares autorizados a transportar pimenta da Índia para a China, passaram a ter de adquirir a mesma na Feitoria portuguesa.

o monopólio é então estendido ao cravo, à maça, à noz moscada, ao lacre, à seda, ao tincal (borato de sódio hidratado.

também limita a mobilidade de soldados e funcionários do estado no comércio de víveres, ao trafego de escravos da India para a Europa, e de cavalos fora de Goa, e o desembarque de mercadorias nas Ilhas atlânticas onde se fazia escala das Naus entre Lisboa e Goa.

Em 1521:

foi reafirmado o monopólio régio sobre o Trato16 da Guiné, Mina e India.

por causa da viagem de F. Magalhães e por causa da construção da feitoria pelos espanhóis em Tidore, foi iniciado o monopólio do cravo.

Finalmente em 1531:

D. João III determinou a abolição do monopólio das especiarias, depois foi abandonado o Trato das especiarias de Lisboa para a Flandres (1549).

Durante estas épocas foram mantidas anualmente a carreira das Índias, e foi notável o equilíbrio entre despesas e receitas alfandegárias.

Em 1571 espanhóis instalam-se em Manila.

Em 1581 Phelipe I e II é rei de Portugal e de Espanha, presta muita atenção a Goa e ao Índico Oriental, e tais problemas diminuíram a rivalidade existente entre castelhanos e portugueses”.

 

7. A “Guerra” de Luca Antara

Figura 46 – Cartografia linear de Erédia, apresentando agora Samatra, Java Maior e
Luca Antara a sul de Java. Esboço de Erédia relativo ao norte da Austrália.

 

Na figura 46 podem distinguir-se Ceilão, Samatra, Bornéu, Java, Estreito de Sunda, Nova Guiné, Malacca, Macassar, Ende, Malucas, Banda, Timor, e várias ilhas a norte da Nova Guiné.

Mas a informação que considero mais importante é a que se encontra escrita no que se representa como a costa Norte da Austrália, e a que Erédia chamava de Nuca Antara e que informa o seguinte:

Nuca Antara foi descoberta o ano 1601 por “mano el godinho de erédia” por mandado do Nyce Rey (Vice-Rei) Aves de Saldaha (Ayres de Saldanha)”.

A sul de Nuca Antara, diz também Erédia o seguinte:

Terra descoberta pelos holandeses a que chamarão Enduache (efectivamente Eendragt) ou Concórdia”.

Este mapa como a grande maioria dos mapas portugueses e espanhóis relativos aos descobrimentos marítimos dos séculos XV a XVII, encontram-se nos museus britânicos e franceses, obtidos por compra, roubo e outros processos de aquisição de dados, neste caso cartográficos, pois era mais fácil copiar dados do que cartografar de facto as áreas percorridas e navegadas pelos navegadores ibéricos.

Notar que os holandeses só se instalaram em Malaka em 1641 e, desde 1511, esta cidade e as ilhas das especiarias foram dominadas comercialmente pelos ibéricos, que aí se mantiveram por 130 anos.

Foi neste interim que Erédia se expandiu como matemático e cartógrafo, e trabalha como engenheiro de plataformas defensivas (fortalezas, fortes, e até pequenas muralhas de terra) e escreve, escreve, escreve, para convencer as autoridades de Goa do seu valor científico, além de grande habilidade para desenho.17

Segundo Oliveira Martins “(…) não nos parece que português algum a tivesse visitado (a costa da Austrália) porque Erédia nos diz (…) que ninguém ainda tinha ido a Luca Antara. E ainda de uma sua carta (de Erédia) para o conde de Vidigueira, então Vice-Rei da Índia, “E como assim seja sendo provindo nesta monção de Setembro, posso estar em Malacca todo o Novembro e por Dezembro fazer a viagem até chegar a Solor, donde posso partir em Janeiro para Timor ou Ende ou Sabbo e invernar em qualquer destas ilhas e nelas tomar informações da Ilha do ouro (Oro)18. E por Agosto ou Setembro com o nome de Deus todo poderoso cometer o descobrimento da feliz ilha do Ouro (Oro)19.

Pois Erédia não teve mesmo conhecimento directo do actual território australiano, mas tinha boas informações da “antiga navegação de Java Maior para Java Menor”, não se percebendo porquê chamada de “Menor” face ao conhecimento actual das dimensões da Ilha de Java em relação à Ilha Continente australiana. Soube também Erédia que a “llha do ouro” era frequentada por mercadores do Grã Cathay (Japão), da China, do Industão e até do Egipto. Indicou também que “mouros do porto de Ferlech já aí aportavam muito antes da chegada de Marco Polo, em 1295”.

Curioso que Marco Polo a certa altura informava que a estrela polar (etoile tramontana) deixou de poder ser vista. Assim, passou ao hemisfério sul, onde contactou com seis “royaumes”, um deles Ferlech.

Figura 47 – Combate em Solor após encalhe do navio no Pulau Ende. Aguarela de Erédia, em 1615, sobre um episódio de 1581, na fortaleza de Solor17.

Figura 48 – Imagem popular de Marco Polo.

 

O mesmo Marco Polo relata que “a partir de Java e navegando setecentas milhas entre sul e sudoeste, se alcançariam as ilhas ditas de Sondur ou Kondur”, e depois delas rumando cinquenta milhas a sudeste se teria terra que ele nomeia com país de Lochac, ou Boeach.

Mas ele, Erédia, não conseguiu efectuar a sua prometida viagem de 1601, pelas seguintes razões: primeiro, por causa de a Fortaleza de Malacca ter sido sujeita a sucessivos ataques pelos Malaios e a força militar que comandava foi anexada à defesa de Malacca e da sua fortaleza; segundo, porque os holandeses da VOC ocuparam todos os estreitos e canais de Bale e Solor, impedindo qualquer deslocação para sul.

No entanto, Erédia, na presença destes acontecimentos e perante a indiferença dos comandos superiores quanto à existência de uma “Índia Meridional e Lucantara”, “ele tomou a perseguição no pensamento, de tal maneira que quando prevalecer a tranquilidade no sul, ele deve ir mais tarde tomar posse do país, de modo a incorporá-lo na coroa de Portugal e Espanha e organizar ligações e comércio entre Lucantara e Malacca para vantagem das receitas aduaneiras”.

Figura 49 – Localização de Luca Antara, fixada entre os 15º e os 35º Sul.

 

O que, actualmente, pode ser referido como sendo a ilha Melville ou a sua vizinha, a ilha Bathurst.

Um pouco a sudeste de Timor, e que são as ilhas australianas mais perto de Timor e que podem ser a Luca Antara, onde Erédia nunca chegou a ir.

Figura 50 – As duas ilhas, Balthurst e Melville, perto de Darwin actual (Google).

 

Os três desenhos de Erédia que seguem, também se referiam a Luca Antara. Neste primeiro desenho (Luca Antara A), Erédia mostra-nos a ilha de Timor, que efectivamente se encontra a Norte do continente australiano, como se estivesse a sul do mesmo, sendo a Luca Antara uma espécie de península, rodeada de umas ilhas mais pequenas. Está, portanto, esta imagem orientada com o Sul na parte superior do desenho. Luca Antara foi então aceite pelo senhor Major que difundiu na Europa que Erédia tinha descoberto a Austrália, em 1601 (ver figura 46), e não o navio holandês Eendraght, em 1616.

Figura 51 – Luca Antara (A), com o Sul para cima, no desenho.

Figura 52 – Luca Antara (B), com o Norte para cima, no desenho.

Figura 53 – Luca Antara (C), com mais informações.

 

Nesta segunda imagem de Luca Antara (B), já com orientação mais habitual, de o Norte estar para a parte de cima do desenho, permite-nos ver que o alinhamento das ilhas de Sunda até Timor estão proporcionais aos seus tamanhos. Luca Antara pegada a Java Maior e para sul, o que se depreende que seja o continente australiano. Já se encontra o Trópico de Capricórnio, Erédia coloca a Índia Meridional entre o clima 1 e o clima 2, e o continente australiano num clima 3.

Sabendo que Dili está na latitude 8º Sul, parece que as ilhas Java Maior e Menor deste desenho podem efectivamente serem as ilhas Tiwi .

Esta outra carta de Luca Antara C, embora bem colocada entre 15º de latitude, com o seu ponto mais a norte, e 21º de latitude sul, com o seu ponto mais a sul, parece que Erédia “a desenhou por informações e não por observação directa20.

Em Dezembro de 2003, o estudioso Dr. Noel H. Peters publicou um método seu para verificar que as ilhas “Ouro” e “Luca Antara”, mostradas no mapa de Erédia (pág. 37) são efectivamente as ilhas Melville e Bathurst da Ilhas Tiwi da Austrália, com são conhecidas hoje.

O Dr. Peters afirma, com a minha concordância, que o documento de Erédia fornece evidências corroborativas da existência de pesquisa e mapeamento português de secções da Austrália antes dos holandeses.

Efectivamente, em 1602, quando estes holandeses, com o seu navio Duyfken, em 1606, terão pesquisado a Península do Cabo York.

O mapa de Erédia (então cartógrafo principal em Malacca), com data de 1602, foi descoberto no Rio de Janeiro (Brasil), pelo Dr. Mota Alves, prova que os portugueses fizeram pesquisas costeiras nas Ilhas Tiwi (Melville e Bethurst) a que chamaram Ouro e Luca Antara.

O Dr. Noel H. Peters considera Erédia como o principal Cartógrafo, Cosmógrafo, Geógrafo e Matemático do Leste asiático, de Goa até às “Ilhas das especiarias”, e para Norte até à China e Japão.

Diz Peters:

O “descobridor Erédia”, título que Phelipe I de Portugal lhe concedeu em 1594, em matéria de pesquiza e cartografia era de considerável respeito”.

O “descobridor” era o oficial encarregado de organizar o trabalho de exploração e descoberta.

É lógico que com as leis portuguesas fazendo prevalecer o segredo das descobertas, sobre a sua abertura aos assaltantes europeus, ingleses, franceses e holandeses, quando, entre 1595 e 1601, cerca de 14 frotas holandesas, constituídas cada frota entre três a cinco navios, se deslocaram quase livremente no Mar Indico e que a Ibéria já existia desde 1580, pouco ou nada se pôde fazer para sua salvaguarda.

As Províncias Unidas, constituídas por holandeses e sefarditas, estes expulsos de Portugal e Espanha, com o seu potencial económico criaram, em 1602, a Verenigde Oost-Indische Compagnie – VOC – (Companhia das Indias Holandesa), assim ultrapassando Portugal (neste caso a Ibéria) como principal nação comercial no Oriente.

De 1595 a 1602, os portugueses perderam predominância administrativa em Ternate, Amboíne, Banda, Tidore, Solor, Sunda, Macassar e toda a exploração e transporte das especiarias.

Além do provincianos-unidos (holandeses) que atacavam constantemente Malacca, os ingleses despacharam cinco navios para Java, pagos por mais uma Companhia das Índias, neste caso inglesa.

O Dr. Peters continua, “no meio de tudo isto, claramente os portugueses levantaram as ilhas Tiwi, talvez como base alternativa ao descalabro que se aproximava «provincianos unidos + sefarditas + ingleses + franceses»”.

 

8. Outras actividades de Erédia

– Etnógrafo;

– Cronista;

– Botânico;

– Mineralogista;

– Pintor e desenhador;

– Genealogista;

– Técnico hidrográfico;

– Agrimensor;

– Urbanista (discípulo de Cairati);

– Conhecedor de línguas mortas e faladas, como português, francês, inglês, latim, grego, malaio e outras.

 

9. Conclusões

Erédia esteve sujeito a muitas pressões contra a sua idiossincrasia, lutou e não conseguiu vencer e completar o seu sonho de “descobrir a ilha de ouro”.

Foi modelo de alguém que conseguiu viver entre mundos (geográficos, culturais e sociais) dominando as culturas europeias e as convenções sociais e políticas locais, por estar familiarizado com a elite cultural e política de Goa, bem como com a elite malaia, não obstante nunca se ter deslocado à Europa.

Não obstante a profusão de tentativas de contactos, ao mais alto nível (Rei de Espanha e de Portugal, Papa, Superior Jesuíta, etc.), feitas por Erédia, no seu tempo útil, nenhum arquivo histórico nega a sua existência, mas, por outro lado, nenhum tem arquivado qualquer documento que garanta a veracidade do que Erédia afirmou, nomeadamente em:

– alvarás reais;

– alvarás de vice-reis;

– mesmo de “adelantados”, honra que nunca foi implementada em Portugal;

– o título de Grande Cosmógrafo ou Cosmógrafo-Mor, foi criado em Portugal, mas não extensivo ao ultramar;

– nos arquivo das Companhia de Jesus não registam resposta alguma a Erédia, por parte do superior da Companhia.

No entanto, em 1673, o Vice-Rei Francisco Gama, terá dito de Erédia:

Os seus projectos de descobertas não foram julgados consistentes para que a coroa investisse neles”.

Qualquer que seja o juízo que se formula sobre Erédia, é indubitável que o seu nome não é um insignificante nem um impostor.

Diz Mcintyre, no seu livro The Secret Discovery of Austrália:

Erédia, que era meio português, encheu a cabeça com sonhos de descoberta da Austrália. De forma confusa, conhecia as lendas de Marco Polo, as visitas de portugueses à Índia Meridional, as lendas malaias sobre viagens naquela direcção e talvez algumas fantasias da sua própria imaginação. A partir daqui construiu um projecto que tinha alguma relação com a costa de Kimberley”. (1989)

Diz Jorge Flores:

Erédia nunca foi tão longe como proclamar-se Rei de Malacca. Pode ser comparado a outro português, Fernão Mendes Pinto, autor de Peregrinação (1614), como viajante e trapaceiro, mas como Erédia bom conhecedor do Arquipélago Malaio, e que era no mínimo criativo. Além disso ambos eram perspicazes a escrever de si próprios, e com um senso claro sobre a sua auto-importância”21.

Digo eu:

É difícil estabelecer algo e analisar alguém que, há cerca de 150 anos, excita atacantes e apoiantes incondicionais sobre as suas actividades, mormente, sobre a sua tendência para se sobreelevar face aos seus contemporâneos. Sabemos que a vida é uma luta permanente para quem quer demonstrar as suas possibilidades e valores humanos, mas penso que, solicitar em permanência louvores e proeminências, talvez seja um “modus vivendi”, mas não nos parece o melhor modus, para cada um. No entanto, Erédia é o cartógrafo português que mais produziu em cartografia, de que há conhecimento.

Observação: Os conhecidos “Mapas de Dieppe de Jean Rotz de 1542 e outros”, foram decalcados de cartografia anónima ou portuguesa desde 1533, estando alguns exemplares situados em Wollfenbutell, onde foram pessoalmente verificados pelo autor, em 1990, e encontram-se assim distribuídos:

Data

Desenhador (autor)

Documento

Onde está guardado

1536

Delfin

 

Londres

1541

Nicholas Desliens

 

Paris

1541-1561

Nicholas Desliens

Mapa Mundo

Dresden (destruído)

1542

Johne Rotz

Livro de Hidrografia

British Library, Londres

1542

Johne Rotz

Planisfério

Londres

1542

Rotz Circular

 

Londres

1543

Guillaume Brouscon

Carta do Mundo

Huntington Library, Los Angeles, Califórnia

1546

Pierre Desceliers

Royal Word Chart

John Rylands Library, University of Manchester

1547

Vallard

California

 

1550

Pierre Desceliers

Mapa Mundo

British Library, Londres

1553

Pierre Desceliers

Mapa Mundo

Viena (destruído)

1555

Guillaume Le Testu

Cosmografia Universal

Biblioteca do Serviço Histórico do Exército de Terra, Paris

1556

Guil. Le Testu

 

Paris

1563

Nicholas Desliens

 

Nova York

1566

Guillaume Le Testu

Mapa do Mundo

Biblioteca Nacional de França, Paris

1566

Nicholas Desliens

Mapa Mundo

Biblioteca Nacional de França, Paris

1567

Nicholas Desliens

Mapa Mundo

National Maritime Museum, Greenwich

c.1568

Atribuído a Nicholas Desliens

Mapa mundo

National Maritíme Museum, Greenwich

c. 1547

Anónimo

“Harleian” ou “Daauphin”

Mapa do Mundo

British Library, Londres

c. 1547

Anónimo ou feito por Nicholas Vallard

Atlas portulano

Biblioteca Huntington, Los Angeles, California.

c.1555

Anónimo/Atribuído a Pierre Desceliers

Mapa Mundo

Morgan Library, Nova York


 

É um facto que nenhuma destas cartas é de autoria de Erédia, mas trataram muita informação do espaço territorial estudado pelo mesmo, talvez em anos posteriores, pois a sua actividade, como já se referiu anteriormente, apenas teve lugar entre 1563 e 1623.

 

______________________________________________________

1 Mário Jorge Barroca-Livro de Fortalezas de Duarte de Armas.

2 http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/car990145/cart990145.htm.

3Tesouros da Cartografia Portuguesa, pág. 113.

4Tesouros da Cartografia Portuguesa, pág. 92.

5Tesouros da Cartografia Portuguesa, pág. 111.

6 Professor Doutor João Carlos Garcia. Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

7 Navios de vela e remos de pequeno calado.

8 Informação de João C. Reis, Erédia, um português de Malacca.

9 Informação de João C. Reis, Erédia, um português de Malacca.

10Dejanirah Couto, Au-delà des fronteires – M. G. Erédia (1563-1623) et la cartographie luso-asiática.

11Idem, Idem.

12Informação de João C. Reis, Erédia, um português de Malacca.

13Idem, Idem.

14Informação de João C. Reis, Erédia, um português de Malacca.

15José António Crespo Francés, Definicion Cartográfica de los Tratados.

16Comércio, incluindo compra e venda de escravos.

17José Pinto Casquilho, Signos portugueses de Solor. 2016.

18José Pinto Casquilho, Idem, Idem.

19José Pinto Casquilho, Idem, Idem.

20João C. Reis, Erédia, um português de Malacca.

21Entre Madrid e Ofir – Jorge Flores.

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Tenente-coronel

João José de Sousa Cruz

Tenente-coronel de Artilharia. Professor Efectivo de Topografia e Geodesia da Academia Militar, Lisboa; Professor e Criador do Curso de Engenharia Topográfica no Instituto Politécnico de Beja, Professor de Topografia e Desenho Topográfico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento do Instituto Geográfico e Cadastral em Lisboa, Professor Convidado da Universidade dos Açores para as cadeiras de Topografia e Desenho Topográfico, em Ponta Delgada, e Professor de Topografia da Universidade Lusófona em Lisboa.

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by CMG Armando Dias Correia