Os dirigentes políticos e os chefes militares reagem, frequentemente, de forma diferente em relação às prioridades e às alterações que devem ser feitas na estrutura e funcionamento das forças armadas, por forma a que elas se tornem mais aptas para cumprir as suas missões. Estas divergências resultam, por um lado, da formação que têm as elites políticas, dos riscos que a direcção política não considera ou aceita correr, da atenção que dão à economia, da baixa prioridade que atribuem aos assuntos de segurança e defesa, e do desconhecimento dos aspectos singulares que caracterizam a Instituição Militar. Por outro lado, os militares sublinham a importância dos meios humanos e materiais de que dispõem para cumprir as missões que lhes estão confiadas, a importância das estruturas, da preservação dos valores, do espírito de corpo e do moral e a consideração que a Instituição Militar e aqueles que nela servem devem merecer.
Os dirigentes políticos, na sua quase totalidade, não têm uma formação nos problemas de segurança e defesa, não conhecem suficientemente as forças armadas, nem o “sentir” do pessoal que serve nas fileiras. Além disso, em Portugal não existe uma escola (como a École Nationale d'Administration, em França) que ministra e obriga a pensar a situação estratégica do país no âmbito das estratégias gerais, nomeadamente da estratégia militar. No nosso país existe apenas o Instituto da Defesa Nacional, que dá alguma formação nesse sentido, mas que não é normalmente frequentado por aqueles que vão desempenhar funções de conselho ou de direcção no Ministério da Defesa Nacional. Deve ainda notar-se que, em Portugal, o Ministro da Defesa Nacional pouco mais é do que um ministro das forças armadas, não tendo uma efectiva capacidade de interferir nos assuntos das estratégias gerais (de política externa, de política interna, de economia, de educação), com excepção da militar. Assim sendo, os dirigentes políticos que normalmente tutelam as forças armadas, por impreparação, por preconceitos e por ideias desajustadas, por pensarem que as forças armadas não são mais do que uma empresa, por não ouvirem quem sabe e por desejarem que a sua acção política seja notada, não se inibem de tratar e decidir sobre assuntos não prioritários e que não contribuem para a melhoria das forças armadas. Penso também que temem que os seus pares e opositores políticos julguem que nada fazem, por os média não escreverem ou falarem no seu nome…
Diferentemente, os militares profissionais têm uma formação contínua sobre os assuntos técnicos e tácticos do Ramo a que pertencem e sobre assuntos de segurança e defesa, praticam em permanência a disciplina e têm elevados espíritos do dever e de missão. Além disso, os seus conhecimentos vão-se alargando, função das posições hierárquicas que desempenham e através dos cursos que têm que frequentar para ascender na carreira. Deve também referir-se que os oficiais generais e, nomeadamente, os Chefes de Estado-Maior dos Ramos, tendo ascendido ao topo da carreira, não têm a pretensão de vir a desempenhar cargos superiores.
Função das diferenças apontadas podemos concluir que, se houver uma franca cooperação entre a direcção política da tutela das forças armadas e os Chefes de Estado-Maior, eliminar-se-ão eventuais pontos de discórdia ou de conflicto, o que concorrerá para uma melhoria significativa do funcionamento e eficácia das forças armadas. Contrariamente, se o Ministro da Defesa Nacional usa a sua autoridade sem ter em conta a especificidade da função militar e o conselho dos Chefes de Estado-Maior, impondo legislação que não concorra para a melhoria das forças armadas, a sua acção é desnecessária, podendo até ser perigosa. De facto, vemos por vezes ignorarem-se as verdadeiras necessidades das forças armadas e a prioridade que os assuntos devem merecer, como, por exemplo, a incrível e escandalosa falta de praças no Exército. Assim sendo, dirigem a sua acção para assuntos marginais que possam obter algum apoio dentro do seu partido político ou aumentem o número dos seus eleitores. Foi isto que se passou com a adopção do serviço militar obrigatório de quatro meses que, como referiu um general da Força Aérea, pouco mais servia do que para aprender a fazer a continência, que é uma saudação de respeito e de afirmação da disciplina.
Não vou tratar do caso recente da alteração desnecessária e desajustada da estrutura superior das forças armadas, mas lembrar um caso passado há duas décadas, que felizmente teve um desfecho positivo, por ter prevalecido o bom senso. Neste caso recente há um capricho sem sustentação lógica. Naquele outro tratava-se da “paixão” que o Ministro da Defesa Nacional tinha pelo ensino e pela investigação, áreas em que conseguiu que em Portugal se registassem importantes progressos.
Passando aquele Professor a tutelar as forças armadas, pretendeu alterar as escolas de formação dos oficiais dos três Ramos, criando uma nova universidade. Não se pode dizer que juntar os Ramos no mesmo estabelecimento de ensino fosse uma novidade, pois já no século XIX fora assim e na década de 50 do século XX havia anos comuns para os candidatos a oficial dos três Ramos, prosseguindo depois a formação em escolas especializadas de cada um deles.
Pelas vantagens que adviriam de uma formação comum em áreas em que tal era possível e pela importância que resultaria de os futuros oficiais se conhecerem, os Chefes de Estado-Maior dos Ramos acolheram com interesse esta iniciativa. Aliás, tal ficara provado na guerra de África, onde o apoio aéreo táctico e as evacuações muito beneficiaram do conhecimento que existia entre os pilotos e os oficiais do Exército. Deve também notar-se que, para além do tratamento idêntico de certas matérias comuns, este era um argumento para que aceitassem possíveis alterações, já que, quanto à actualização dos conhecimentos, as escolas ou academias dos Ramos mantinham a ideia do Poeta de que “não houve forte capitão que não fosse também douto e ciente”. Por esta razão, tanto no comando de forças como na participação em estados-maiores aliados, era reconhecida internacionalmente a competência dos oficiais portugueses no exercício dessas funções.
Devido às possíveis vantagens que adviriam de uma formação comum e o desejo do Ministro da Defesa Nacional em reformular o ensino militar, foi constituído um grupo de trabalho com académicos e representantes dos Ramos para estudar o assunto e apresentar propostas. Ao longo do tempo foi-se porém notando, por influência do Ministro sobre o grupo de trabalho, que a ideia era criar uma universidade apenas diferente das outras, por ministrar também algumas cadeiras relacionadas com o exercício das funções militares. Isto é, os candidatos a servirem como oficiais nas forças armadas, depois de formados na universidade, “vestiam a farda”. Houve então Chefes de Estado-Maior que mostraram claramente a sua discordância. Com efeito, não era tida em conta a formação militar de base, o desenvolvimento da disciplina, o espírito de corpo e até o ritual militar tão necessário à Instituição Militar e ao culto de valores que são essenciais para a defesa da pátria. A universidade, instituto ou escola não podia prescindir do internato e tinha que ser dirigida por um comandante militar e não por um reitor, por muito merecimento que este pudesse ter como académico. Mais uma vez surgia a imagem do Poeta, agora a dizer que “a disciplina militar prestante, não se aprende, Senhor, na fantasia…”.
Apesar do respeito que merecia a paixão do Ministro, houve que explicar que tal não era o caminho a seguir na formação inicial dos oficiais das forças armadas. O projecto, devido a esta posição dos Chefes de Estado-Maior e ao bom senso que prevaleceu, ficou sem efeito.
Julgo poder concluir deste exemplo, que as alterações a serem feitas nas forças armadas têm que ser necessárias e concorrer de forma evidente para a melhoria do seu funcionamento, sendo muito importante ter em consideração as opiniões dos chefes militares.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.