Dedico este artigo a todos os militares portugueses que serviram na Missão das Forças Armadas Portuguesas na IFOR / Bósnia 1996.
Presto homenagem aos que neste país europeu morreram ao serviço de Portugal:
– Primeiro-Cabo Paraquedista Alcino José Lázaro Mouta, DAS/24Jan1996
– Primeiro-Cabo Paraquedista Rui Manuel Reis Tavares, DAS/24Jan1996
– Primeiro-Cabo Paraquedista Francisco José da Ressurreição Barradas, 3BIAT/06Out1996
– Soldado Paraquedista Ricardo Manuel Borges Souto, 3BIAT/06Out1996
– Soldado Paraquedista Ricardo Manuel Pombo Valério, 3BIPara/16Jul2004
E aos que gravemente feridos, ficaram com marcas para sempre:
– Primeiro-Cabo Paraquedista Aquilino Rodrigues Oliveira, DAS/24Jan96
– Capitão Infantaria Francisco Gustavo Ribeiro P. Leite Basto, 2BIAT/17Mar96
– Tenente Engenharia Augusto José Pinto da Rocha Pinheiro, DL/02Jun96
Assinala-se este ano o 25.º aniversário do início da primeira missão expedicionária das Forças Armadas Portuguesas na Bósnia e Herzegovina, aquela que em boa verdade mudou o Exército de então, a operação “Joint Endeavour” da NATO. Se para a maioria dos nossos aliados as missões com unidades de combate fora do território nacional tinham começado anos antes, em Portugal, só em finais de 1995 a decisão política assim o determinou.
O Exército e os seus militares entraram depois no século XXI bem integrados neste paradigma das “novas campanhas”, sobretudo, do ponto de vista psicológico, mas também em termos doutrinários, técnicos e em alguma medida dos materiais, mesmo que parte destes demorassem anos a ser adquiridos ou nunca o tenham sido.
Porquê voltar agora a esta missão, aos anos e meses que a ela conduziram e ao que se seguiu?
O tempo costuma fazer esquecer erros e omissões, mas também sucessos e lições aprendidas. Muitos militares que partem para as missões de paz da actualidade, nasceram depois de 1996. Talvez seja útil ou pelo menos interessante, voltar a esses tempos dos “pioneiros” das Missões de Paz e Humanitárias em que tudo era novidade… para o bem e para o mal.
A participação portuguesa na primeira operação terrestre que a Aliança Atlântica lançou na sua história foi também a primeira participação nacional com uma unidade de combate numa operação expedicionária, após a Guerra do Ultramar1. Em 1996, partiu para os Balcãs um contingente com efectivo quase três vezes superior à totalidade que o Exército mantém hoje fora do território nacional2, ao mesmo tempo que mantinha cerca de 300 militares em Angola3. Sendo certo que o efectivo do Ramo terrestre era muito superior ao de hoje, sensivelmente o dobro, também é verdade, como veremos, que o número de RV/RC disponíveis para integrar esta missão na Bósnia condicionou as opções no Ramo.
Este texto foi escrito com base na experiência pessoal do autor – integrante da missão entre 5 de Janeiro e 12 de Agosto de 1996 – dos apontamentos recolhidos na altura por ele e por um par de camaradas, de documentos oficiais das unidades envolvidas e bibliografia entretanto publicada. Tem assim alguma dose de opinião, mas muitos factos, números e datas de fontes oficiais.
Partilhamos a opinião que houve no Exército Português, claramente, um antes e um depois da Bósnia em 1996. Não se julgue que esta situação foi um “exclusivo” português. O teatro de operações (TO) da ex-Jugoslávia, quer com as operações da ONU quer da NATO, assim o determinou para vários países. O Exército Espanhol, por exemplo (que já havia cumprido a “Provide Comfort” no Curdistão iraquiano e enviado observadores militares para vários países), classifica a sua missão na Bósnia com a Força de Protecção das Nações Unidas (UNPROFOR), como “…una misión que cambiaría para siempre al Ejército Español…”4 e num livro alusivo a esse mesmo aniversário assim exemplarmente a caracterizava em subtítulo: Misión à lo Desconocido.
Também para a NATO, a Bósnia foi um autêntico “laboratório” para desenvolvimento futuro de doutrina e serviria de modelo sempre aperfeiçoado nas operações que se seguiram. O mesmo aconteceu na generalidade dos países e Portugal não foi excepção. Quer ao nível do EMGFA quer dos Ramos e muito em especial no Exército, pelo volume de tarefas cumpridas e de efectivos empenhados, a evolução foi e é contínua. Pode mesmo afirmar-se que a cada nova missão há quase e sempre evolução.
É assim justo assinalar, de igual modo, a missão no Afeganistão, e mais recentemente a República Centro Africana (RCA), mesmo que nestas missões o ponto de partida tenha sido muito diferente. Na Ásia, a partir de 2005, e em África, a partir de 2017, houve sem dúvida necessidade de aperfeiçoamento operacional em todos os escalões, e sendo certo que os riscos aumentaram muito em relação à Bósnia (e ao Kosovo e a Timor, entre outros), também é certo que as baixas foram felizmente bem menores. Não será só por isso, mas também é reflexo da constante aprendizagem e aperfeiçoamento em vários domínios.
Muito do que foi feito para empenhar forças nas missões posteriores a 1996 nasceu nos meses que antecederam esta missão, depois no seu desenrolar e, sobretudo, no seu rescaldo. Do conselho militar e decisão política aos procedimentos administrativos e logísticos, da preparação da força às orientações para lidar com os órgãos de comunicação social, tudo temperado pelas experiências no terreno, quer dos êxitos quer dos falhanços, daqui nasceu um Exército diferente que nas missões seguintes foi evoluindo, quase e sempre melhorando.
A Bósnia, em 1996, foi o “ponto de viragem”. Por ser a primeira missão no pós-Guerra do Ultramar com uma unidade de combate, e pelas características que teve, muitas das quais iremos abordar neste texto. A ruptura com o passado foi evidente.
O Exército Português foi empenhado numa região do globo com características que lhe eram estranhas em termos operacionais há mais de 70 anos, logo na pior época do ano – o inverno – para nós habitantes de um país com clima temperado e, ainda, com uma geração de decisores militares veteranos de uma guerra em clima tropical.
É verdade que, há alguns anos, empenhávamos um «punhado» de militares dos três Ramos na ex-Jugoslávia como observadores militares ou equipas médicas, e até é verdade que muitos deles se tinham esforçado em “transmitir para a retaguarda” alguns elementos que poderiam ter ajudado no planeamento. Mas… somos portugueses, de pouco isso valeu, raros os aspectos relatados que foram seriamente levados em consideração na preparação dos militares. Pouco mais do que uma ou outra questão prática relativa a “check-points” e ao ambiente que no terreno se vivia. Acresce que as futuras regras de empenhamento da força acabariam por ser bem diferentes das experiências dos tempos da UE e ONU. Aos tempos “da negociação” iriam suceder-se os tempos da “implementação” – pela força se necessário – e isso faria muita diferença. Em vários aspectos até foi bom que a força portuguesa não tivesse os “pruridos” típicos dos capacetes azuis de então, agora tratava-se de uma postura diferente.
Se os aspectos materiais são relativamente fáceis de recordar, já os imateriais, direi mesmo “psicológicos”, talvez sejam de mais difícil percepção hoje ou criem mesmo alguma incredibilidade e polémica!
Aquilo que há anos e anos é absolutamente normal para um soldado de um qualquer Regimento do Exército, oferecer-se para uma missão exterior, foi em 1995 uma decisão bem arrojada. Explicar o ambiente de então não será fácil. Tentarei.
Hoje, um governo português, quando tem que decidir sobre o empenhamento militar no estrangeiro, pode ter dúvidas em face do custo financeiro e preocupa-se naturalmente com os riscos e potenciais baixas, mas não duvida das capacidades que os chefes militares lhes apresentam. Há um caminho percorrido que fala por eles.
Portugal tinha sempre recusado participar nas operações de paz na ex-Jugoslávia com unidades de combate no terreno. Entre 1991 e 1995, o XII Governo Constitucional (31 de Outubro de 1991 até 25 de Outubro de 1995), do Primeiro-Ministro Cavaco Silva (Partido Social Democrata), apenas tinha acedido a enviar observadores militares para as missões da CEE/UE (1991) ou da ONU (a partir de 1992), e pontualmente pequenas células de apoio médico e um ou outro avião ou navio para missões no Adriático. O XIII Governo Constitucional, com António Guterres (Partido Socialista), tomou posse a 28 de Outubro de 1995 e iria alterar esta situação, sendo certo que havia um compromisso assumido pelo anterior governo social-democrata de empenhar uma força de combate na ex-Jugoslávia, mas por tempo limitado e com uma função específica5.
Este assunto do envolvimento militar português na Bósnia foi muito discutido no espaço público, as opiniões “pró” e “contra” chegaram aos meios de comunicação social. Simplificando, podemos dizer que à direita se defendia que a prioridade do esforço militar português no estrangeiro – a haver necessidade – deveria ser feito na África Lusófona; à esquerda, olhava-se como uma possibilidade real a intervenção militar na Europa/Balcãs, excluindo os comunistas que sempre foram contra a NATO e a UE e, naturalmente, estavam – como estão hoje6 – contra todas as missões militares neste âmbito7. Mesmo que, em abono da verdade, os comunistas depois intervieram a nível parlamentar para que as questões relativas a pensões de sangue e seguros dos militares fossem resolvidas8.
Dois anos antes do processo de decisão que conduziria à intervenção portuguesa, a guerra civil na ex-Jugoslávia não era assunto prioritário, mas, ainda assim, Fernando Nogueira, Ministro da Defesa Nacional, em entrevista ao “Diário de Noticias”, de 4 de Junho de 1993, não se mostra disposto a aumentar a participação nacional na ex-Jugoslávia, relembrando a presença de observadores, navios e aeronaves, além de equipas médicas e da Guarda Fiscal, afirmando “…Portugal está disponível para estudar um reforço do seu contributo. Contudo, não pensamos no envio de unidades militares completas, até porque sabemos que temos outras solicitações à vista, como já tivemos, nomeadamente na África de expressão portuguesa… entre mandar um batalhão de transmissões para a Jugoslávia ou para Moçambique, optamos por Moçambique…”.
O Exército treinava na Área Militar de São Jacinto (AMSJ) do Comando das Tropas Aerotransportadas (CTAT), uma força expedicionária, composta no essencial pelo 2.º Batalhão de Infantaria Aerotransportado (2BIAT) da Brigada Aerotransportada Independente (BAI) e os necessários apoios de serviços, estes em estado muito embrionário, e em Tancos no CTAT.
Em 1995, o que estava a ser planeado era a integração do 2BIAT numa brigada do Exército Belga (a 7.ª Brigada Mecanizada, de origem francófona), e a missão seria a retracção da UNPROFOR em sérias dificuldades na Bósnia e Herzegovina. O planeamento desta missão esteve muito adiantado e oficiais da BAI, incluindo do 2BIAT e do Batalhão de Apoio e Serviços (BAS/BAI), chegaram a deslocar-se à Bélgica para reuniões com a unidade onde seriam inseridos.
Por estes dias, para quem estava no 2BIAT, não havia, contudo, tantas alterações como seria de esperar. Sendo certo que os exercícios sucediam-se e as inspecções operacionais também, havia várias lacunas identificadas, sobretudo em materiais, e os efectivos, embora elevados – a rondar os 500 militares –, estavam abaixo dos 100% do quadro orgânico.
Em boa verdade, muitos duvidavam da missão. Na realidade, já por várias vezes os “Páras” tinham estado em vias de ser empenhados, em África, companhias inteiras de prevenção, e nada ou muito pouco tinha acontecido9.
Será mesmo agora? Os chefes militares que se sucediam em visitas a S. Jacinto nada de concreto sabiam e percebia-se que alguns também não acreditavam; o Governo Português, em ocasiões anteriores, tinha sempre optado por empenhamentos minimalistas em operações que não envolvessem grande possibilidade de conflito10; as lacunas em equipamentos e material de campanha, quer individual quer colectivos, viaturas e armamento e engenharia não se resolviam. Aguardavam-se ansiosamente sinais de que alguma coisa poderia mudar.
Pelo menos os paraquedistas – outros, sinceramente, desconheço – na altura designados no Exército por aerotransportados, olhavam com alguma inveja e mesmo tristeza para os seus congéneres espanhóis, belgas e franceses (entre outros), com os quais tinham há anos cooperações frequentes. Estes países empenhavam os seus militares em repetidas operações exteriores e nós… nada: exercícios atrás de exercícios!
E notava-se bem nesses exércitos a evolução. Em 1993, por exemplo, a companhia de paraquedistas portuguesa que participou em Espanha no exercício anual “Lusitânia”, com a Brigada Paraquedista do Exército Espanhol – num tema táctico que se passava exactamente nos Balcãs, onde Espanha já actuava desde o ano anterior – notou não só uma grande evolução em termos de doutrina de emprego e procedimentos tácticos como até em alguns materiais que por cá ainda não existiam, só para dar dois exemplos, os coletes anti-fragmentos em todo o efectivo e o Estado-Maior da Brigada Paracaidista em contentores e não tendas.
O ambiente nas tropas aerotransportadas era assim de grande expectativa, mas, também, de alguma preocupação, sobretudo, nos postos mais elevados, pois havia a noção – oficiais paraquedistas que tinham servido como observadores militares na ex-Jugoslávia não se cansavam de o dizer – que havia muito a fazer, sobretudo, em termos de equipamentos, individuais e colectivos e viaturas, nomeadamente as blindadas, mas também no treino operacional. Nem tudo estava pronto como se afirmava “para fora” em termos de comunicação e quer o Exército quer os paraquedistas sabiam bem disso.
De assinalar que a opção do Exército pelo 2BIAT foi por um batalhão que já existia constituído com a maioria dos quadros e praças11 a trabalhar em conjunto há bastante tempo, do comandante do batalhão, o Tenente-Coronel Moço Ferreira, aos sargentos comandantes de secção e dos oficiais e sargentos do estado-maior aos comandantes de companhia e pelotões. Foram recebidos contudo alguns reforços (já depois do Verão de 1995), uma vez que o quadro orgânico não estava totalmente preenchido.
O DAS iria ser formado com base nos efectivos do BAS/BAI que estava sob o comando do Major José Barbosa e iniciou a preparação da força. Só no último trimestre de 1995 se começariam a apresentar quadros e praças técnicos especialistas de várias unidades do Exército, alguns literalmente nas vésperas do embarque. A preparação deste Destacamento foi accionada pelo comando do CTAT/BAI que tomou a seu cargo o planeamento da preparação, nunca houve uma directiva específica do EMGFA ou do Exército para esta componente da força, embora fosse referido nas directivas operacionais do EMGFA e vários memorandos do CEME o também designado National Support Element – NSE. O próprio comandante do DAS que haveria de rumar à Bósnia, Tenente-Coronel Luís Krug, só assumiu o comando em 6 de Dezembro de 1995! Ficou a convicção de que o Exército considerava o DAS importante, mas uma componente técnica que ficaria “na retaguarda” e que não necessitava de preparação específica para a missão. Na realidade, muito pessoal do DAS teria que se deslocar com muita frequência às várias e dispersas sub-unidades do 2BIAT para os apoiar, estando sujeito aos perigos e riscos da área de operações.
Quando a missão na ex-Jugoslávia mudou e passou a falar-se numa operação da NATO para ocupar a Bósnia e Herzegovina e não apenas retirar as forças internacionais, o Partido Social Democrata (na oposição, desde Outubro de 1995), manifestava pela voz de Fernando Nogueira, antigo ministro da Defesa, agora líder do PSD, muitas dúvidas e não parecia apoiar a decisão do novo governo. No Partido Popular, Paulo Portas dizia-se contra, a não ser que lhe apresentassem provas do interesse vital de Portugal na região que justificasse uma intervenção. O PCP era frontalmente contra, porque nada de português estava ali em causa, dizia. Ao contrário, o Partido Socialista parecia coeso no sim à intervenção portuguesa e em força.
Em 1995, na imprensa portuguesa, estas opiniões políticas eram naturalmente lidas pelos militares, incluindo os que podiam ter que avançar, e a verdade é que não havia no espaço público muito quem defendesse uma intervenção militar portuguesa. A maioria dos “comentadores de defesa”, jornalistas e militares fora do activo que de alguma maneira influenciavam a opinião púbica, diziam que o nosso “espaço natural” era África e que aí sim, a nossa intervenção tinha real valor. É, aliás, muito curioso notar depois, que à excepção dos comunistas que sempre foram e continuam contra estas operações expedicionárias, praticamente todos os outros ligados à política ou à comunicação social, passaram durante esta primeira missão a aprovar e mesmo louvar estas operações expedicionárias. Ainda bem!
Dos muitos comentadores militares e civis que se pronunciaram sobre o tema, escolho as opiniões de dois ilustres sócios da Revista Militar, infelizmente já falecidos, para ilustrar o ambiente político e mediático em relação ao tema.
A 15 de Dezembro de 1995, o General Loureiro dos Santos defende, numa extensa entrevista ao “Independente”, que “…Portugal não devia ter enviado tropas para a Bósnia… interesses vitais (de Portugal) não estão ali em causa… eu ficar-me-ia por uma pequena força de apoio de serviços o que faria com que Portugal ficasse representado neste esforço que a NATO vai realizar…”. O Brigadeiro Lemos Pires, no “Jornal de Noticias” de 18 de Dezembro de 1995, publica um artigo de opinião, “Avançar para a Bósnia”, no qual defende a tese contrária com várias razões das quais “…se situam no âmbito dos interesses da defesa e da política externa e que, por isso, podem ser encarados, quer no campo das obrigações, quer no campo da exploração das oportunidades… um batalhão de tropas aerotransportadas e respectivos meios de apoio e transporte constituem, em termos relativos, uma comparticipação portuguesa significativa...”.
Em 1996, um inquérito à opinião pública12 mostrava que apenas 44,7% da população apoiava a participação portuguesa na “Pacificação da Ex-Jugoslávia/Bósnia”; a percentagem subia para 60,5% no caso de um envolvimento em Angola ou Moçambique; e mais ainda, 64,7% para o caso de Timor-Leste13.
Por esses anos – e aqui abordamos um dos aspectos imateriais que hoje talvez seja difícil perceber, tal é a rotina de empenhamentos militares portugueses em todo o mundo – não faltava quem lembrasse que desde 1918 não combatíamos na Europa e desde 1975 que não participávamos em guerras! As sombras da Guerra do Ultramar, terminada há 20 anos com os seus mortos e feridos, estavam vivas em largos sectores da população e logo no panorama político-partidário14 e mesmo em meios militares.
A inércia própria de um Exército, há 20 anos acomodado a rotinas de exercícios e planeamentos sem execução real, ia mesmo ser alterada.
A decisão política já se antecipava antes, mas foi definitiva depois da tomada de posse, em 28 de Outubro de 1995, do XIII Governo Constitucional, com o Primeiro-Ministro António Guterres e Ministro da Defesa Nacional António Vitorino, sendo sufragada pelo Presidente da República, Mário Soares, que, aliás, fez questão de ser ele a proceder à entrega do Estandarte Nacional ao 2BIAT, em 15 de Janeiro de 1996.
Dada a percepção que havia na opinião pública de então e em particular nos agentes partidários, não há dúvida que foi uma decisão política corajosa e que comportava vários riscos para o recém-eleito governo. Alguns, aliás, muito cedo se vieram a tornar uma realidade e, justiça seja feita, exigiram nervos de aço ao governo de então e confiança nos militares.
Tomada a decisão pela “comunidade internacional” de lançar a operação na Bósnia e Herzegovina depois dos Acordos de Dayton (nos EUA), em 1 de Novembro de 1995, inicia-se uma corrida contra o tempo em Portugal. Para muitos, só agora era evidente que desta vez íamos mesmo “para a guerra”!
Estes acordos políticos entre as partes do conflito e a comunidade internacional foram ratificados em Paris, a 14 de Dezembro de 1995, mas claro que os exércitos da NATO já estavam prontos à espera da ordem de avançar. Nós, nem por isso.
Só para dar uma noção da força multinacional em que Portugal participou, a Implementation Force (IFOR) da NATO, era composta por cerca de 60.000 militares de países da NATO e de outros países amigos, sob o comando de um Almirante da US Navy. Além da componente naval e aérea, esta muito poderosa e com plataformas permanentemente disponíveis para apoio das forças terrestres ou para actuar contra alguma ameaça aérea, o território da Bósnia e Herzegovina foi ocupado por três divisões multinacionais. Norte, de comando norte-americano, Sudoeste, de comando britânico, e Sudeste, de comando francês. Esta última divisão tinha inicialmente o comando em Sarajevo (depois passou para Mostar) e nela estavam integradas 4 brigadas, duas de comando francês, uma de comando espanhol15 e uma de comando italiano (Brigada Multinacional Sarajevo-Norte), com o comando em Sarajevo e na qual estava integrado o contingente português.
Figura 1 – O conjunto de países NATO e não-NATO que participaram na IFOR
(13 de Fevereiro de 1996).
Nesta altura, raramente se usava a designação hoje normalizada de Força Nacional Destacada (FND), mas sim “Missão das Forças Armadas Portuguesas – IFOR/BÓSNIA” (MFAP-IFOR/BÓSNIA). Portugal participou nesta missão a partir de Janeiro de 1996 com uma força, assim constituída:
– Destacamento de Ligação16 (DL) às estruturas multinacionais nas quais nos iríamos integrar, a Brigada Multinacional Sarajevo-Norte, a Divisão Multinacional Sudeste e o Comando da IFOR, com 14 oficiais e 1 sargento. Este destacamento foi comandando pelo Coronel Tirocinado Cristóvão Avelar de Sousa, acumulando com as funções de Senior National Representative, de Janeiro a Abril de 1996, altura em que tendo sido reduzido o seu efectivo, o DL passou a depender directamente do comandante do batalhão. Este DL incluía ainda 2 oficiais no Estado-Maior do Exército italiano, para coordenação e execução de “memorandos de entendimento”, mais ligados a Lisboa do que à Bósnia; mais 2 oficiais em estruturas de comando do Allied Rapid Reaction Corps (ARRC) que poucos contactos tiveram directamente com a missão e o DL;
– Destacamento de Apoio de Serviços (DAS), que apoiaria logisticamente todo o contingente, com um efectivo de 225 militares, organizado em Comando, Destacamento de Pessoal, Destacamento de Logística, Destacamento de Comunicações, Destacamento de Reabastecimento e Transporte, Destacamento Sanitário e Destacamento de Manutenção. Este Destacamento foi inicialmente comandado pelo Tenente-Coronel Luís Augusto de Noronha Krug e, depois, de Abril até Dezembro, pelo Major José da Fonseca Barbosa. O DAS foi sendo reduzido mas manteve-se na Bósnia até Dezembro 1996, final da missão IFOR;
– 2BIAT, com 678 militares, organizado em comando e estado-maior, 3 companhias de atiradores, 1 companhia de apoio de combate e 1 companhia de comando e serviços. O batalhão foi comandando pelo Tenente-Coronel Pedro Manuel Moço Ferreira. Passados 4 meses, parte do efectivo, grosso modo uma companhia, foi substituída por efectivo semelhante17 do 3BIAT que assumiu a missão em Agosto e se manteve até ao final da missão IFOR, e ainda iniciou a SFOR, já em 1997. Foi comandado pelo Tenente-Coronel Fernando Pires Saraiva, de Agosto de 1996 a Fevereiro de 1997, quando foi rendido, já na missão SFOR e com os efectivos reduzidos a 320 militares e o dispositivo localizado apenas em Rogatica e Vitkovici, pelo 1.º Batalhão de Infantaria Motorizado da Brigada Mecanizada Independente;
– Destacamento C-212 AVIOCAR da Esquadra 502/Base Aérea n.º 1 da Força Aérea, operando a partir de Itália, entre Janeiro e Abril, foi sucessivamente comandado pelos: Major José Carlos Faria Antunes; Capitão Albano José Maia Gomes Ribeiro; e Capitão Rui Mendes Maria.
– Destacamento de Controlo Aéreo-Táctico, mobilizado pelo Comando Operacional da Força Aérea, composto por oito militares, incluído dois controladores aéreos tácticos e pessoal de comunicações, manteve-se de Março a Dezembro 1996. Inicialmente sob o comando do Capitão Fernando Costa e depois do Capitão Dias da Silva.
Figura 2 – A cadeia de comando da IFOR até ao nível das Divisões estacionadas na Bósnia.
Em finais de Janeiro de 1996, no início da missão, a força portuguesa era composta por 924 militares do Exército, a maioria constituída por paraquedistas vindos da Força Aérea, dois anos antes, umas dezenas de comandos que se tinham juntado à BAI, depois da extinção do Regimento de Comandos, em 1993, e haviam feito o curso de paraquedismo militar, e especialistas de outras armas e serviços do Exército, a esmagadora maioria no DAS, cobrindo áreas para as quais a BAI não tinha pessoal habilitado. Duzentas viaturas, 26 das quais blindadas (as vetustas V-200 Chaimite), equipavam esta força. Durante a missão, várias equipas de contacto do Exército estiveram por períodos limitados na Bósnia para apoiar a missão, sendo as mais frequentes as do Serviço de Administração Militar, Direcção dos Serviços Material e menos da Arma de Transmissões. Estas equipas desempenharam um papel extraordinário no terreno, quer na observação e levantamento das dificuldades, insuficiências e inconformidades, quer na execução de tarefas de reparação.
A Força Aérea apoiou a força portuguesa na IFOR com aviões Hércules C-130 da Esquadra 501/Base Aérea n.º 6, quer na projecção do escalão avançado da força para Split (16 de Janeiro de 1996), quer depois em voos regulares de sustentação Lisboa/Sarajevo/Lisboa, durante meses. Os Falcon 50 da Esquadra 504/Base Aérea n.º 6 foram empenhados quer para transporte de Altas Entidades em visita à missão quer para evacuação de feridos, desde Sarajevo.
Figura 3 – A inserção do batalhão português na BMN-SN, designada “Garibaldi”, o seu patrono, ou “italiana”, por ser o Exército Italiano que dava o comando e a maioria dos efectivos, e na DMN-SE, também designada por “Salamandre”, animal que usava como símbolo, ou “francesa”, por ser de comando e maioria dos efectivos franceses.
A Marinha apoiou a missão com uma viagem, em Maio, do NRP “Bérrio” para o porto de Ploče no transporte de viaturas e cargas que se vieram a revelar necessárias.
No total, participaram na missão IFOR, de Janeiro a Dezembro de 1996, quando esta força foi substituída pela SFOR – Stabilization Force, 1.695 militares do Exército e 45 da Força Aérea.
Se atendermos às datas marcantes de preparação da força verificamos que, na realidade, durante parte do ano de 1995, a possibilidade de participação portuguesa na missão não foi levada a sério em Portugal.
Com o quadro político nacional já referido, partidos políticos da oposição contra ou, pelo menos, a levantar muitas dúvidas sobre a missão, imprensa dividida mas com muita gente a escrever claramente contra a missão ou também a levantar interrogações e a defender outras opções de empenhamento internacional, não é de estranhar que também houvesse reflexos nas fileiras.
A relevância de se ter conseguido garantir o “factor humano”, olhando hoje à distância de um quarto de século e com partidas e regressos de contingentes militares portugueses a cada 6 meses, para lugares como o Afeganistão ou a RCA, pode parecer algo despropositado. Mas não foi.
A grande massa do Exército era então gente do Serviço Efectivo Normal (SEN), o antigo SMO, já moribundo, sem qualquer motivação ou treino para integrar uma operação que se pressupunha com riscos elevados e de grande exigência derivada das condições de vida que um militar podia esperar em pleno inverno nos Balcãs, num país devastado pela guerra. A imprensa deu grande destaque à preparação para a missão, sucediam-se as reportagens em São Jacinto e os textos de opinião, o que acabava por ter reflexos positivos na força, mas, ao contrário, ajudou a criar um ambiente negativo na opinião pública, com a publicação de “estimativas de baixas” no mínimo aterradoras18 e muitas dúvidas sobre os equipamentos, além de descrições da situação no terreno que não eram de molde a criar confiança! Na época, a ex-Jugoslávia, com toda a sua destruição e morte, era o “prato forte” das reportagens de guerra que a comunicação social na Europa difundia.
O Exército estava com uma grande reestruturação em curso, a mais profunda desde 1975 e, há menos de dois anos, em 1 de Janeiro de 1994, tinha recebido mais de 2.000 paraquedistas da Força Aérea, só com soldados e cabos voluntários e contratados, muitos com vários anos de serviço, motivados.
A escolha do Ramo terrestre para a missão – mesmo que na generalidade dos países a opção tivesse sido por forças mecanizadas, e as unidades de elite tenham sido empenhadas em sub-unidades especializadas – teve que recair nos “aerotransportados”19. Na realidade, internamente não havia alternativa, nenhuma das outras duas brigadas do Exército estava, nessa altura, em condições de fornecer, em tempo oportuno, tal volume de voluntários e contratados. Nessas unidades, a maioria dos militares ainda era do SEN20 e os RC/RV estavam espalhados pelo dispositivo. Por outro lado, na “sociedade civil” levantaram-se vozes, sobretudo à esquerda do espectro político, mas também à direita, contra o envio de militares para a missão da NATO. Encontrou-se uma solução para contornar as críticas e dúvidas. Os militares empenhados foram convidados a assinar uma declaração em que confirmavam ser voluntários para a missão – além de já terem sido voluntários para “a tropa” – aquilo que na altura se chamou o “duplo voluntariado” e que, na realidade, para os paraquedistas, era triplo, uma vez que também tinham sido todos voluntários para os paraquedistas! Sendo um documento naturalmente desnecessário e de valor legal muito duvidoso, chegou para acalmar os críticos externos, entre eles as juventudes partidárias e, diga-se em abono da verdade, foi aproveitado por um pequeníssimo número de militares nomeados para a missão… para desistirem, não o assinando. Mesmo assim, o número de voluntários deu para formar esta primeira força, os seguintes que partiriam, passados 4 e 6 meses, e ainda ficaram alguns de reserva com pena de não poderem partir.
A força iria naturalmente a 100% do seu quadro orgânico, coisa que há muitos anos não se via nos batalhões de paraquedistas, depois aerotransportados, sempre muito desfalcados, sobretudo em oficiais do Quadro Permanente (QP) oriundos da Academia Militar.
Em final de Outubro de 1995, quando o governo muda, acabam todas as dúvidas e começa uma incrível corrida contra o tempo. Agora sim, dotar a força de tudo o que ela necessitava para cumprir a missão. Atente-se que os acordos de Dayton datam de 1 de Novembro, e o governo português tomou posse 4 dias antes! Ou seja, foi um mês de Novembro, mas sobretudo Dezembro e Janeiro, verdadeiramente alucinantes.
Claro que agora era tarde para muita coisa e o “factor humano”, aquele que se tinha voluntariado para a missão, ia entrar neste “sprint” com um misto de entusiasmo e raiva! Afinal de contas, porque não se começou com isto há mais tempo?
Perante a urgência, o espírito de corpo dos paraquedistas funcionou e o que para muitos parecia impossível, aconteceu. A força foi toda projectada e entrou no seu sector na Bósnia nas datas previstas. Mas em que condições e com que repercussões no desenrolar da operação? Se o entusiasmo era muito, na realidade, a preparação feita sem antecedentes viria a mostrar no terreno algumas lacunas. O “aprender fazendo” teve aqui o seu lugar, o sacrifício dos primeiros foi inevitável, mas viria a facilitar o caminho aos seguintes.
Atente-se nas datas desta “fita de tempo” com alguns exemplos do que foi este tremendo período, para perceber melhor ao que me refiro no parágrafo anterior.
Ponto de honra para os paraquedistas, agora como sempre, a missão era o farol, tudo o resto passou a secundário:
– O oficial de operações do batalhão que tinha acompanhado toda a preparação da força em São Jacinto não quis integrar a missão e foi substituído, no dia 4 de Dezembro, por um oficial paraquedista vindo de Tancos;
– A 6 de Dezembro, o 2BIAT foi sujeito a uma inspecção extraordinária pela Inspecção-Geral do Exército (IGE), que “(…) encontrou lacunas de todas as ordens nas seguintes áreas: Transmissões; Instrução; Tiro; Equipamento Individual e Colectivo; Viaturas (…)”21;
– Em 10 de Dezembro, apresenta-se na AMSJ e no 2BIAT a 12.ª Companhia de Atiradores (vinda de Tancos/CTAT) que estava em falta no Quadro Orgânico do batalhão para a missão. O 2BIAT fica assim, finalmente, com comando e estado-maior, companhia de comando e serviços, companhia de apoio de combate e 3 companhias de atiradores;
– No dia seguinte, 11 de Dezembro, todo o batalhão parte para a Serra da Padrela onde realiza o exercício final de preparação para a missão, até 18 de Dezembro. Bastou o frio e a falta de anticongelante para provocar imobilização de várias viaturas, muitas Chaimite. Seguiam-se, no Campo de Tiro de Alcochete, exercícios de fogo real com morteiros 60mm e 81mm, disparos de míssil Milan e de canhão sem recuo Carl Gustav, mas que não se realizam… por dificuldade em obter munições;
– Em 13 de Dezembro, durante este exercício na Serra da Padrela, a IGE faz nova inspecção ao batalhão e “(…) constata a inoperância de todo o sistema de comunicações do batalhão, incluindo os sistemas que estavam implantados nas Chaimite (…) das 21 viaturas blindadas que participaram no exercício, 16 avariaram (…)”22. Neste exercício foi feito fogo real de morteiro 81mm e 60mm, e apresentadas em exposição estática as novas tendas insufláveis e latrinas de campanha e cozinhas, que ainda não estavam distribuídas ao batalhão, só ali as viram pela primeira vez. As viaturas Chaimite foram entregues em S. Jacinto com várias anomalias, quer nas viaturas propriamente ditas com problemas mecânicos (e pneus gastos!) quer nos rádios, capacetes condutores, etc. Um exercício de condução na neve previsto para a Serra da Estrela, em Janeiro, nunca foi possível realizar; os óculos para os condutores – quase e sempre expostos ao clima – não foram fornecidos e a unidade teve que os adquirir no mercado civil, óculos para operadores de equipamentos industriais, outros foram os próprios condutores a adquirir;
– A 17 de Dezembro, o comandante de batalhão – só houve lugar para uma pessoa – foi fazer um reconhecimento à Bósnia e Herzegovina, mas não foi possível deslocar-se à futura Área de Responsabilidade do batalhão;
– Em 21 de Dezembro, chegou ao batalhão a informação que um primeiro escalão devia estar pronto em 29 de Dezembro e que todo o material deveria estar colocado em “paletes” em 5 de Janeiro;
– Em 30 de Dezembro de 1995, o batalhão fica a saber as datas de projecção para a Bósnia e Herzegovina: 16 de Janeiro para o escalão avançado;
– Em 4 de Janeiro, o 2BIAT fica a saber as restantes datas de partida para o TO: 22, 25 e 29 de Janeiro. Todo o trabalho de contentorização e milhares de artigos, muitos ainda a serem recepcionados – em 128 contentores marítimos –, ia ser feito a contra-relógio. Muitos dos equipamentos, materiais e abastecimentos, só viriam a ser contabilizados e conferidos já no TO e durante semanas, até meses! Razões: várias, mas a mais relevante ficou a dever-se ao facto de terem sido as Direcções e Serviços a contentorizar, sem que o Batalhão e o DAS tivessem conhecimento das listagens e inventários. Só passados meses se teve conhecimento da existência de alguns artigos, que entretanto tinham sido requisitados como não existindo no TO. A pressão do tempo e da chegada e imediata contentorização – por várias entidades – não permitiu elaborar previamente as competentes listagens de material, trabalho elaborado depois na Bósnia e que serviria de base para as seguintes unidades expedicionárias;
– Em 5 de Janeiro de 1996, parte para a Bósnia e Herzegovina o Destacamento de Ligação, o qual não tinha integrado a preparação do batalhão, parte destes oficiais e o sargento conheceram-se no aeroporto, na altura da partida;
– Em 11 de Janeiro, entrega no terminal ferroviário de Estarreja dos últimos contentores a serem enviados para Setúbal, onde seriam carregados no navio mercante fretado “Mercantia Senator”, juntamente com 208 viaturas e 83 atrelados que os transportaria para Ploče, na Croácia;
– A 12 de Janeiro, chegou ao 2BIAT a Directiva Operacional n.º 11/95 do CEMGFA para a missão, datada de 22 de Dezembro de 1995. Para se perceber bem o que isto quer dizer, este é o documento que deveria dar início a toda a actividade do Exército, da Brigada e do Batalhão em relação à missão e que hoje em dia, por regra, chega às unidades expedicionárias vários meses antes de uma missão começar;
– Em 15 de Janeiro, realizou-se em S. Jacinto a cerimónia de entrega do Estandarte Nacional ao 2BIAT pelo Presidente da República; ultimam-se preparativos no porto de Setúbal para o carregamento de viaturas no navio que iria transportar a carga; o 1.º escalão do batalhão a seguir para a Bósnia parte neste mesmo dia de São Jacinto para Lisboa, onde embarcará na madrugada seguinte;
– Em 16 de Janeiro, pelas 04h00, partem de Lisboa as chamadas “Ennabling Forces” do 2BIAT (2 viaturas e 41 militares do 2BIAT e 19 do DAS), o escalão avançado, em dois C-130 da Força Aérea com destino a Split. Este destacamento avançado recebeu, na altura, um “draft” das Regras de Empenhamento da IFOR as quais ainda não tinham chegado ao batalhão. O memorando de entendimento entre o Exército Português e o Exército Italiano para o apoio administrativo-logístico ainda estava em preparação e só seria assinado meses depois; larga de Setúbal o “Mercantina Senator” com carga recebida de S. Jacinto, transportada desde o terminal ferroviário de Estarreja, e de Tancos, desde o terminal ferroviário de Santa Margarida. Seguiram a bordo 1 sargento e três praças do DAS;
– Seguiram-se, a 22, 25 e 29 de Janeiro, os voos em avião TAP fretado, desde Lisboa para Split na Croácia de, respectivamente, 250 + 250 + 300 militares. No dia 23, chegou a Ploče o “Mercantia Senator” e todo o pessoal e material português estava na Croácia ou já na Bósnia, no último dia do mês de Janeiro de 1996. Chegados a Split e a Ploče, os nossos militares passavam em trânsito, pernoitando ou não, pelo Ploče French Command, uma base logística francesa que dava algum apoio e onde mantivemos um pequeno Destacamento Logístico do DL. Dali, partiam as colunas de viaturas portuguesas para a Bósnia, rumo a Sarajevo e depois para a área de operações do batalhão, Rogatica, Kukavici, Ustipraca e Goražde/Vitkovići.
Figura 4 – O pessoal chegava a Split via área, seguia pela estrada junto à costa em colunas auto até Ploče (mais de 100Km), e dali, depois de pernoitar, “subia” para Sarajevo (mais 200km) vários pontões improvisados e pontes militares, e daqui, uns iam para Vogošća, nos arredores, outros continuavam para Rogatica (70km) numa péssima estrada e daí para as várias posições iniciais. Nesta altura do ano, pelas 16h00 era noite.
Não se julgue que colocar 900 militares e 128 contentores marítimos na Bósnia foi tarefa fácil, foi, aliás, um dos primeiros obstáculos intransponíveis que a força teve que… transpor. Dou alguns exemplos que, julgo, ilustram bem a situação vivida.
A primeira dificuldade deveu-se ao facto de cada país ter que negociar com as autoridades locais para instalar as suas tropas. Para os países que já lá tinham tropas (na UNPROFOR) e contactos, ou que dispunham de grande capacidade económica23 foi mais fácil, para os outros, como nós, exactamente o contrário.
O DL chegou no dia 6 de Janeiro a Sarajevo e, no dia 10, consegue, juntamente com os italianos (que também estavam a chegar) e apoio dos franceses que já tinham anos de Bósnia e estavam bem instalados, realizar uma reunião em Pale, sede do governo da República Srpska, entidade sérvia da Bósnia, para se obterem os locais onde aquartelar o batalhão. Tudo tinha que ser muito discutido, negociado (e pago!) com as autoridades políticas locais. Em Portugal, foi difícil a muita gente com experiência na guerra em África – era essa a geração que, nesta altura (1996), ocupava vários patamares de decisão militar – perceber que não podíamos escolher um local e… montar quartel. Imagina-se, hoje, uma força sair de Portugal, com mais de 900 militares e uma semana antes não se saber onde a instalar? A escassos dias dos aviões começarem a chegar, não é difícil calcular a pressão sentida em toda a estrutura de comando, a todos níveis, por quem tinha responsabilidade de os instalar nas melhores condições possíveis… que seriam naturalmente muito deficientes.
Aliás, na altura, desta primeira reunião em Pale não havia decisão superior sobre a área de responsabilidade do batalhão português. Ainda assim, localidades como Rogatica, Kukavice e Ustipraca foram atribuídas aos portugueses. Por definir estava a ocupação da “bolsa” de Goražde, a qual, passados dias, afinal, também nos caberia. Os locais escolhidos estavam na sua generalidade semidestruídos. Impossíveis de habitar sem obras, e muito menos naquela altura do ano, com a neve a começar a cair. Não tinham abastecimento de água nem electricidade a funcionar. Em Vogošća, por exemplo, a água era captada nos serviços camarários de Sarajevo, com dois autotanques/dia. Para quem nunca viveu num país ou local onde neva frequentemente não será fácil imaginar o que seja, chegar a um espaço em ruínas, e dizerem-lhe: “é aqui que vais ficar, instala-te!” Em África ou em Timor, isso é possível, ali, sem alguns materiais básicos, nesta altura do ano, morria-se.
Figura 5 – Localidades onde se instalaram os portugueses, inicialmente. A dispersão era enorme como era a área de responsabilidade do batalhão. O 2BIAT devia manter – e manteve – aberta a Interim Route 1 (IR1), a única via razoável para Goražde. Em caso de necessidade, só nos poderia valer a aviação na NATO, a artilharia da BMN-SN estava em Sarajevo. Aquela lógica convencional do batalhão, com “duas unidades em primeiro escalão e a terceira em reserva”, aqui não existia.
O DL “partiu-se” em vários núcleos: uns, foram para Rogatica tratar de conseguir a reparação do “Hotel Park”, local que seria durante os anos seguintes o posto de comando dos batalhões portugueses na Bósnia24. Dois ou três militares portugueses, sozinhos, em Rogatica, um dos bastiões dos sérvios da Bósnia, a dormir na cadeia da cidade. Sendo um engenheiro, outro antigo observador militar com conhecimentos de servo-croata, conseguiram avaliar as necessidades e negociar parte da recuperação do edifício. Foram os próprios militares do 2BIAT, após a sua chegada, que suportaram o grosso do trabalho, e os materiais (excepto a madeira) tiveram que vir de Portugal. Anos de guerra e de boicotes internacionais haviam deixado a região numa miséria absoluta.
Em Sarajevo, o DL, depois de graves dissabores com a indisponibilidade francesa em incorporar no seu Quartel-General, os oficiais portugueses que de Portugal para isso vinham nomeados25, alegando que sendo a nossa força um batalhão só tínhamos lugar na brigada, isto ao arrepio do acordado previamente e agora com a anuência de Portugal. O DL começou a funcionar como um mini estado-maior (informações, operações, logística, assuntos civis, informação pública) instalado de facto na Brigada de comando italiano. Ou seja, as missões destinadas à saída de Portugal para o pessoal do DL, foram localmente adaptadas às necessidades por um comando esclarecido e pragmático que deu resultados.
O DAS “inventava” espaços em Vogošća para dali poder prestar o apoio necessário ao batalhão. Negociou-se com a Companhia de Manutenção e a Companhia Sanitária italianas, a partilha e responsabilidades mútuas. A título de exemplo, os toldos e panos de tenda que constituíram as cozinhas e o refeitório eram portugueses e davam guarida a portugueses e italianos, e estes, em contrapartida, apoiavam com alguns meios de engenharia de construção e, sobretudo, com as instalações da Companhia Sanitária. As dificuldades e as impossibilidades vencidas nesta fase inicial não paravam e, a 12 de Fevereiro, BIAT e DAS, ainda muito empenhados na instalação, já garantiam a execução da primeira coluna humanitária Sarajevo-Goražde-Sarajevo protegida pela NATO – o batalhão português – que levou ao “enclave” abastecimentos e pessoas que há anos não viam os seus familiares ali encurralados. Retenho também o transporte dos 128 contentores de Ploče para o sector do 2BIAT e a entrega nas suas várias posições. Na “zona de comunicações avançada” na Croácia, oficiais do DL prepararam a chegada dos aviões fretados que trariam o grosso da força portuguesa e chegariam até ao final de Janeiro. Um oficial, em Spalato, junto ao aeroporto de Split, e dois outros em Ploče (porto Croata), no Destacamento Logístico Italiano que estava inserido numa base logística francesa. Coordenados a partir de Sarajevo pelo comandante do DL e seu “estado-maior” para assegurar a entrada das tropas portuguesas a tempo e horas na missão da Bósnia.
A força portuguesa transportou para o TO mais de 900 militares chegados a Split, via área, em vagas sucessivas; e 208 viaturas, 83 atrelados e 128 contentores de grandes dimensões, na sua quase totalidade no navio mercante fretado, que atracou em Ploče, a 140 km de distância, no dia 23 de Janeiro. Algum material menos volumoso foi projectado posteriormente via terreste em camiões TIR fretados26. Tudo tinha que ser directamente negociado com os aliados, também eles a braços com os seus contingentes e muitas vezes sem disponibilidade de meios e pessoal, antes da chegada das nossas viaturas. Foi necessário coordenar com italianos e franceses para solicitar viaturas de transporte do nosso pessoal naquele trajecto, Ploče-Split- Ploče, e respectivo alojamento e alimentação. Agora, em relação aos contentores que era necessário transportar para Sarajevo e Rogatica? Cada contentor exigia uma viatura porta-contentores, a brigada italiana que nos deveria apoiar tinha apenas umas 5, algumas das quais estavam imobilizadas por avaria e mais de 400 contentores próprios em espera para igual transporte! Dentro dos contentores estava todo o equipamento necessário à missão (excepto o equipamento individual). Parecia uma equação impossível de resolver e, em Lisboa, já se pensava em adiar o envio do grosso do contingente (que deveria sair de Portugal, a 25 e a 29 de Janeiro), mas as garantias dadas pelo Senior National Representative (SNR) convenceram o CEME a manter o calendário. Era necessário quem transportasse 128 contentores a uma distância de 200 quilómetros, em estradas miseráveis, pontes improvisadas e um sem número de dificuldades. Valeu, na altura, a “negociação directa” do oficial de logística do DL com a Divisão para que uma unidade de transportes da Legião Estrangeira Francesa (alguns conhecimentos pessoais fizeram toda a diferença!) assegurasse o transporte dos contentores e os depositasse onde necessário. Não sem peripécias várias, como aquela que à chegada a Sarajevo, o comandante da coluna porta-contentores, um oficial francês, informou que recebera ordem para não ir a Rogatica e ficaria ali. Mais uma vez, o capitão da logística do DL teve que mover os seus bons ofícios para que a missão fosse integralmente cumprida. E foi. Acresce que era necessário um empilhador para retirar os contentores e colocá-los em ponto que deveria ser o definitivo para a missão. Empilhador emprestado nos vários sítios, e na maioria, contentores descarregados e deixados onde calhava, porque os franceses tinham ordens de movimento e horários a cumprir. Só assim foi possível cumprir o calendário assumido por Portugal com a NATO.
Com o transporte de mais material pesado e viaturas assegurado pelo NRP “Bérrio” para Ploče, em Maio, voltou o problema da colocação do material em tempo, no sector do batalhão. Desta vez, além dos italianos até os espanhóis (que nada tinham a ver com a nossa brigada) vieram em nosso apoio, mais uma vez “empurrados” pelo DL. É que a disponibilidade dos franceses, na data, era nula, tinham outros empenhamentos, e a dos italianos, insuficiente. Neste caso, mais uma série de peripécias, nomeadamente, com várias viaturas enviadas de Portugal para reforçar a missão, que depois de começarem a andar na Bósnia avariaram e chegaram rebocadas ao destino ou voltaram para trás para a base logística francesa para serem reparadas. O M816 “reboque”, logo ao sair do navio, avariou e teve que ficar em Ploče com problemas no sistema de travagem.
Note-se, não havia ali telemóveis nem internet! Muitas destas deslocações de coordenação eram feitas por um oficial e um condutor, por montes e vales gelados completamente à mercê de qualquer imponderável. Mas se não fosse assim, se não se arriscasse?
Este primeiro pessoal que partiu foi duramente posto à prova, bem mais cedo do que imaginava. Desde logo, pelas condições de vida no terreno, muito difíceis, dada a dureza do inverno balcânico e pelo grau de destruição encontrado, pondo em evidência da pior maneira algumas lacunas de equipamentos. Estava tudo por fazer. Havia que limpar e reconstruir, em tempo recorde, debaixo de um clima impiedoso, com meios muito limitados e com missões operacionais para cumprir, logo nos primeiros dias de Fevereiro. Além das incertezas com a segurança das várias e dispersas instalações que ocupávamos. Em muitos destes locais, ouvir tiros, sabia-se lá para onde e porquê, fosse noite ou dia, não era invulgar.
Sendo certo que apoios deveriam ser fornecidos pelo escalão brigada, a verdade no terreno é que a própria brigada também estava a instalar-se e com limitações, logo, não nos podia mesmo apoiar. Há boa maneira portuguesa, com espírito de sacrifício, “desenrascanço” e boas relações humanas com outros contingentes, a situação só podia melhorar.
Também deve ser dito que, ainda em Portugal, sabendo-se que iriamos ser integrados numa brigada italiana e divisão francesa (países bem mais poderosos do que nós), de algum modo se instalou a convicção que não estávamos sozinhos e que estes contingentes, muito mais experientes, poderiam apoiar-nos sem grandes problemas. Em várias ocasiões, ficou bem provado que isso não era assim. Isto não era um exercício multinacional com tudo bem planeado e previsto, cada um tratava prioritariamente de si e depois, caso a caso, decidia-se. Como se viu com a questão da colocação dos oficiais no QG DMN-SE e algumas outras vezes, mesmo sendo excepções, o relacionamento no terreno entre países podia ser bem mais agreste do que se verificava nos corredores de Mons, Bruxelas ou Lisboa.
O pior, no entanto, estava para chegar, e com grande violência. Todos sabiam que podia acontecer, mas ninguém estava verdadeiramente preparado. Com parte do Contingente ainda em Portugal, em 24 de Janeiro de 1996, um brutal acidente em Sarajevo com um engenho explosivo mata dois portugueses e um italiano e fere gravemente um português27 e vários italianos. Uma das vagas de pessoal que ia embarcar estava no Aeroporto Militar de Lisboa, as famílias despediam-se num clima de grande emoção com a comunicação social a cobrir todos os acontecimentos. Mesmo que a velocidade da informação não fosse a de hoje ou, talvez, até por isso, por falta de informação, gerou-se alguma apreensão, os adversários político-partidários da decisão governamental voltaram a pressionar, mas a missão continuou, em Portugal e na Bósnia sem atrasos ou outros contratempos.
No TO, apesar do doloroso impacto dos acontecimentos, tudo continuou em marcha e a fase de instalação do pessoal não foi afectada, ninguém tinha tempo para pensar muito no assunto, tal era o ritmo de trabalho e de preocupações que todos sobrecarregava.
Se os primeiros partiram em clima de grande entusiasmo e ansiedade para participar na missão, notório nas reportagens que os OCS fizeram no aeroporto militar de Lisboa, este acidente e o modo como foi reportado gelou o país e calou a euforia dos paraquedistas. O espírito de corpo dos paraquedistas resistiu, mas os boinas verdes partiram agora em silêncio, focados na missão.
Os que morreram, infelizmente para eles e suas famílias, prestaram involuntariamente esse último grande serviço, um cruel alerta para a realidade daquele país dilacerado pela guerra e com perigos que por muitos anos iriam matar e estropiar.
Algumas notas que não justificam, mas ajudam a explicar este acidente que tão grande impacto teve na comunidade nacional. A área onde a “bomblet” KB-1 foi recolhida, tinha sido desminada pelos especialistas EOD28 da BMN-SN, dada como segura, o que, talvez – nunca o saberemos –, possa ter dado ao militar uma falsa sensação de segurança quanto ao artefacto explosivo, ferrugento e danificado pelo tempo, julgando-o inerte; além de ser uma regra básica em qualquer operação, todo o pessoal empenhado na missão tinha sido mais do que avisado durante a preparação da força para não manusear qualquer “despojo de guerra”; em Portugal, antes da partida foi distribuído em grande quantidade, não sei se à totalidade do efectivo, a brochura “Bósnia-Herzegovina, dados básicos (guia prático)” da Divisão de Informações Militares do EMGFA, datada de Maio de 1995, na qual, além de informações históricas e genéricas sobre o TO e o conflito que então durava, não há qualquer referência a minas e explosivos. Já na Bósnia, embora dada a data do acidente – 24 de Janeiro –, os militares até então ali chegados ainda não o deveriam ter recebido, foi profusamente distribuído o “Bosnia Country
Handbook – Peace Implementation Force (IFOR)”, datado de Dezembro de 1995, uma publicação do Departamento de Defesa dos EUA, publicação bem mais profunda e actualizada, mas que apenas apresentava uma pequena secção sobre as principais minas em uso na Bósnia. Foi também distribuído em quantidade um desdobrável – UNPROFOR Mine Data – elaborado ainda pela UNPROFOR, exclusivamente sobre minas e explosivos, mas no qual não constava a “bomblet” KB-1, o engenho em causa, mesmo que informasse claramente “do not collect souveniers, leave them alone”. Passadas semanas, quando a IFOR publicou um panfleto semelhante, a “bomblet” foi então inserida. Muitos militares portugueses também tiveram mais tarde acesso ao “Manuale del Soldato – Bosnia Erzegovina” do Exército Italiano, datado de Março de 1996, o qual também incluía um completo capítulo sobre minas e explosivos, e incluía as “bomblets” KB-1 e KB 2 e até alguns engenhos artesanais.
Tudo isto não desculpa o militar que recolheu o engenho explosivo e o manuseou depois na camarata, sendo uma das vítimas, mas enquadra o contexto em que o fez e o alerta que este acidente constituiu também para toda a IFOR.
No mês de Janeiro e início de Fevereiro, além das três vítimas mortais de 24 de Janeiro, morreram na IFOR, em acidentes vários, mais 4 militares britânicos, 1 sueco, 1 americano e 1 belga29.
Os portugueses voltariam a ser vítimas desse terrível inimigo silencioso. No primeiro ano de missão, aos 2 mortos iniciais somaram-se mais 2, agora do 3BIAT – 6 de Outubro –, num acidente30 com uma Chaimite que capotou do decurso de uma patrulha. Só nos primeiros 6 meses de missão, estão registados 11 feridos portugueses, 5 dos quais com engenhos explosivos/minas que causaram lesões irreversíveis a 3 militares31 e outros 232, miraculosamente, com muito menor gravidade. Os outros feridos deveram-se a acidentes vários, quer com arma de fogo quer de viação, quer ainda no quartel, este, um queimado (por rebentamento de um esquentador). Os feridos mais graves foram evacuados em aviões militares italianos ou portugueses para fora do TO.
No decurso desta primeira missão, também a nível das relações pessoais no interior da força nem tudo correu bem. É um assunto a que raramente se faz referência, no fundo, é assim a natureza humana, nesta como em muitas outras missões que se seguiram neste e em outros TO – quem anda nas missões sabe bem disto! – nem sempre foi possível manter o desejável entendimento, sobretudo, entre alguns elementos dos quadros permanentes. Diferentes percepções da realidade vivida dentro do batalhão, inexperiência neste tipo de missões prolongadas no tempo, e falta de unidade de comando na FND criaram as condições para muitos problemas.
Recorda-se que, inicialmente, as três componentes dependiam directamente de Lisboa, do Chefe do Estado-Maior do Exército: o SNR – e comandante do DL – não tinha autoridade de comando sobre o 2BIAT e o DAS, pese embora a diferença nos postos, na realidade, estes não eram comandos subordinados, isso só aconteceu a partir de Abril, com a redução do DL e o comandante do 2BIAT a assumir o comando total da FND. Foi, realmente, a partir deste mês, que o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas assumiu de facto a responsabilidade pela força, cabendo, naturalmente, ao Exército as questões logísticas.
Também aqui, para dar apenas um exemplo das tensões criadas internamente, em Abril, o 2.º Comandante do Batalhão, a seu pedido, terminou a missão e foi substituído, um mês depois, pelo 2.º Comandante do 3BIAT que assim antecipou a sua missão que só deveria iniciar-se em Agosto, normalizando-se a situação.
Outro, e que causou instabilidade nos militares que integravam a força, foi a incerteza legal, a ausência de legislação. Este aspecto, que poucos avaliaram bem antes da partida, só não causou danos maiores, porque a acção de comando até aos mais baixos níveis da hierarquia, por um lado, e a contínua e esclarecida intervenção do Major Capelão Paraquedista César Fernandes, na sua actividade bem além da pastoral, mitigaram os seus efeitos. A força partiu sem saber qual a legislação que lhe era aplicada! Esta só viria a ser publicada em Dezembro33 e, mesmo assim, deixou áreas para mais tarde. Na partida, não havia garantia do tempo de serviço que tinha que ser cumprido na Bósnia; havia dúvidas sobre o sistema remuneratório da missão, nomeadamente, se haveria ou não um subsídio específico ou apenas ajudas de custo como num deslocamento normal ao estrangeiro; se havia ou não direito a períodos de licença e, havendo, quem pagava o transporte, se os próprios ou as Forças Armadas; e, mesmo em relação a documentos sobre a missão, e só para dar um exemplo entre vários outros, o Plano Geral de Sustentação Administrativo e Logístico “Arcada”, estava datado de 4 de Janeiro de 1996, mas chegou aos destinatários já a missão tinha começado no terreno.
Um aspecto ainda a realçar, mesmo que fosse uma evidência, por ser a primeira missão deste tipo, por vezes, assume-se que, como já tínhamos enviado observadores militares para a ex-Jugoslávia, haveria alguma experiência por parte dos elementos dos QP. Na realidade, a presença de pessoal com experiência real, no Ultramar ou ex-Jugoslávia, era apenas simbólica. Na totalidade da força, entre os 54 oficiais, apenas 5 tinham experiência como observadores militares; 3 oficiais do DL tinham experiência da Guerra do Ultramar, bem assim como um médico do DAS. Dos 141 sargentos, apenas 6 tinham estado no Ultramar. Julgo que 3 sargentos do DAS tinham também estado em Moçambique, no BTm4.
O batalhão português, integrado na brigada de comando italiano, a Brigada Multinacional Sarajevo-Norte (BMN-SN), a qual dependia da Divisão Multinacional Sudeste (DM-SE) de comando francês, assumiu uma área de responsabilidade que abrangia territórios de ambos os lados da “linha de separação”. Na República Sérvia da Bósnia, instalou o comando em Rogatica e quartéis em Kukavice (transitoriamente), Ustipraca e Prača. Na Federação Croato-Muçulmana, ocupou quartéis em Sarajevo e Vitkovici (Goražde).
A missão genérica da força portuguesa consistiu na criação do ambiente de segurança que permitisse a aplicação dos acordos de paz. Isto traduziu-se, na prática, pela ocupação efectiva da zona de separação estabelecida para as duas entidades presentes na região (sérvios e muçulmanos), na gradual implementação da liberdade de movimentos para pessoas e bens em toda a região, na verificação do cumprimento das regras estabelecidas para o armazenamento de armamentos pesados e ligeiros, e ainda prestando algum apoio de carácter humanitário.
A MFAP-IFOR/BOSNIA ocupou, por períodos mais ou menos longos, vários locais na Bósnia e Herzegovina. Uns, onde estávamos só portugueses, outros em ambiente multinacional, mesmo que nos nossos quartéis também estivessem ocasionalmente pequenos destacamentos de outras nacionalidades, nomeadamente, italianos e franceses, estes, menos.
No aeroporto de Split e no porto de Ploce, na chamada “Zona de Comunicações Avançada” da operação, mantivemos elementos do DL na fase inicial da operação. No primeiro caso, tratava-se de apoiar as aeronaves nacionais que ali aterravam, como destino ou em escala; no segundo, integrados num destacamento italiano que operava na base logística francesa, o mesmo para os meios que chegavam via marítima. Em Split, o nosso pessoal usava instalações do Reino Unido e, em Ploče, as nossas tendas climatizadas. Com a normalização da operação do aeroporto de Sarajevo e os voos de sustentação da Força Aérea Portuguesa (FAP) a dirigirem-se directamente para a capital Bósnia, deixaram de ter razão de ser estes postos e foram desactivados.
Vogošća, nos arredores de Sarajevo, foi a primeira grande base logística portuguesa, o quartel do DAS, e também o local onde inicialmente se instalou o DL e o TACP. O DAS estava, ‘paredes-meias’ com a componente logística e o hospital de campanha italiano, e dali se iniciou o apoio ao sector do 2BIAT, em colunas auto. As instalações eram, à chegada, pouco mais do que um (perigoso) emaranhado de destroços do que haviam sido uma oficinas da Volkswagen em cima da linha de confrontação, e o trabalho do DAS foi verdadeiramente hercúleo para tornar o espaço minimente habitável (com as tendas climatizadas) e poderem instalar as suas secções e oficinas para concretizar o apoio ao batalhão. Ainda nesta localidade, a BMN-SN usou o que restava do “Hotel Biokovo” para sua primeira instalação em Sarajevo e, nesse sentido, o DL também ali esteve, mas pouco tempo.
Os italianos mudaram-se para um esventrado edifício em Zetra/Sarajevo, que havia sido um hospital pediátrico, e o DL também os acompanhou. As condições eram muito deficientes, mas com os meses foram sendo melhoradas. Parte substancial dos militares do DL, nesta altura, foram autorizados a alugar quartos em Sarajevo, e assim, a sua quase totalidade, enquanto lá estiveram – recordo que foram sendo reduzidos logo em Abril –, estavam alojados na cidade a expensas suas.
A logística e o hospital de campanha da Brigada mudaram-se para Sarajevo, Tito Barracks, nome dado “pelos internacionais” à antiga Academia Militar, cujos semidestruídos edifícios agora serviam de quartel para vários países da NATO. Portugal passava a ser um deles, em Abril, com o DAS agora a melhorar as suas instalações, nomeadamente, a ter mais espaço disponível e a dispensar as tendas climatizadas.
Rogatica foi o local inicialmente escolhido para instalar o Comando e Estado-Maior do 2BIAT – que assumiu a designação de “Agrupamento Júpiter”(34) na BMN-SN – e a Companhia de Comando e Serviços. O edifício do “Hotel Park” bem no centro da pequena cidade, em cima da estrada Sarajevo-Goražde (designada pela NATO Interim Route 1), estava “só paredes” e destroços no interior. Foi minimamente recuperado no início da missão e depois sucessivamente beneficiado, ao logo dos meses e anos. Apresentava naturais limitações de segurança e de espaço, mas… teve que servir. Junto à cidade, num ponto alto, foi montado um retransmissor, primeiro, uma coisa muito básica, mas depois foi crescendo e era um destacamento razoável, com tendas climatizadas e outras, e postos de vigilância. Tornou-se indispensável não só como local para permitir as difíceis comunicações na área de operações do batalhão, dada a natureza montanhosa do mesmo, como até por questões de segurança da força. Uma vantagem de Rogatica foi o de permitir uma gradual aproximação dos militares portugueses à população e vice-versa, facto algo difícil no início. As tropas da NATO não eram naturalmente bem-vistas nesta região de maioria sérvia-bósnia, que tinha sido bombardeada pela aviação da NATO. O tempo e a maneira de ser do português foram ajudando a melhorar o ambiente inicial. Em Janeiro de 1996, aqui ficou, assim, o Comando e Estado-Maior do 2BIAT; o Comando da Companhia de Comando e Serviços; o Pelotão Sanitário; o Pelotão de Reabastecimento; 1 Pelotão da 21.ª Companhia de Atiradores (Cat); e o Destacamento de Transmissões (italiano);
Desde Sarajevo, na Interim Route 1, passando por Rogatica, pouco depois virando à direita por uma estrada secundária, ali estava Kukavici, meia dúzia de casas marcadas pela guerra, impossíveis de habitar. Foi, sem dúvida, o pior local que os portugueses tiveram que utilizar nesta fase inicial da operação. Aqui se instalou em tendas climatizadas o subagrupamento “Alfa”, constituído pela 21.ª CAt; 1 Pelotão da 23.ª CAt com VBTP Chaimite; o Pelotão de Morteiros Médios (81mm); o Pelotão de Reconhecimento; a Secção de Vigilância do Campo de Batalha; e o Destacamento de Engenharia. Dadas as precárias condições deste local, em Março, este aquartelamento foi abandonado e parte substancial desta força foi deslocada para Prača;
Continuando na Interim Route 1, em Ustiprača, um importante nó rodoviário para Višegrad e Goražde, junto à confluência do rio Prača com o Drina, mais uma aldeia martirizada pela guerra, os portugueses instalaram-se num antiga escola e a sua zona envolvente. Aqui ficou o Subagrupamento “Charlie” constituído pela 23.ª CAt, a única totalmente dotada de VBTP Chaimite; o Pelotão de Apoio da 22.ª CAt (morteiros 60mm e Carl Gustav 84mm); a Secção de Manutenção; e o Pelotão Anti-Carro com misseis Mílan.
Em Goražde, a cidade muçulmana cercada, os portugueses começaram por substituir um pequeno Destacamento de Forças Especiais francesas que se encontravam alojados no centro da cidade, depois mudaram-se para os arredores, Vitkovići, para um edifício muito razoável – dadas as condições gerais, era mesmo o melhor do batalhão! –, dependência de uma antiga fábrica, onde tinha estado instalada uma força ucraniana da ONU. Aqui ficou o Subagrupamento “Bravo” constituído pela 22.ª CAt; o Pelotão de Apoio da 23.ª CAt com viaturas Chaimite porta-morteiros 81mm; e a Secção Anti-Carro com misseis Mílan.
Foi com este dispositivo que a força portuguesa começou a sua actividade operacional, logo a partir de 3 de Fevereiro de 1996. Não havia tempo a perder, as facções não podiam voltar ao combate.
Iniciaram-se as acções de patrulhamento na “Zona de Separação” estabelecida nos acordos de paz para evitar a sua utilização por qualquer grupo armado ou pelos exércitos de ambos os contendores, o VRS – Vojska Republike Srpske, dos sérvios bósnios, e o Armija Republike Bosne I Hercegovine, dos muçulmanos-bósnios. Esta tarefa incluiu, por vezes, os militares terem que se manter dias no terreno, em condições muito precárias e ocupando as antigas posições sérvias nas montanhas em redor de Goražde, garantindo a sua não ocupação pelos muçulmanos; patrulhas diárias em Prača e Goražde, para tentar criar um clima de segurança que motivasse o cumprimento dos acordos de paz; escoltas a colunas de carácter humanitário ao longo da Interim Route 1, entre Sarajevo, Podromanija, Rogatica, Ustiprača e Goražde; acções de marcação da IEBL – Inter-Entity Boundary Line, que consistia num meticuloso trabalho sempre acompanhado por topógrafos de ambas as entidades e pessoal de sapadores, uma vez que se colocavam marcos em zonas – a “fronteira” entre sérvios e bósnios – que, quase e sempre, tinham sido a frente de combate, logo ainda minadas, e onde por vezes se encontravam macabras recordações da guerra.
Além destas actividades dirigidas pelo escalão superior, outras tinham que ser garantidas, como a liberdade de movimentos em toda a área de operações para quem quer que desejasse usar as vias de comunicação e a segurança das próprias instalações. Garantir as comunicações internas do batalhão era outra dificuldade dadas as características do terreno e a dispersão das nossas posições, obrigando à manutenção de repetidores em locais inóspitos, e naturalmente sempre guarnecidos por pessoal. Assim “nasceu” uma posição que se manteve em toda a missão, “Torre”/Jabuka, uma antiga instalação da televisão Jugoslava, ocupada para fins militares pelo VRS, depois bombardeada pela NATO e agora ocupada pelos portugueses em permanência, e, fruto disto, aproveitada por outras nacionalidades da IFOR, por vezes, com destacamentos no local.
As condições nos primeiros dois ou mesmo três meses de missão foram duríssimas, quer pelo clima quer pelo ritmo a que as operações se sucediam, quer ainda pelas lacunas em instalações e alguns equipamentos. Só o tempo, meses, permitiram melhorar em vários aspectos as condições de vida do pessoal, outros, ligados a alguns materiais como os blindados Chaimite, por exemplo, nunca foram passiveis de substituição.
Já a nível do equipamento individual, houve capacidade para, em pouco tempo, fornecer alguns artigos que se tornaram necessários, nomeadamente para fazer face ao frio. Rapidamente, também, só para dar um exemplo de equipamento colectivo, quando se verificou que a lavandaria de campanha para servir todas as posições do batalhão era pouco funcional e insuficiente e se vieram a adquirir máquinas de lavar e secar roupa para reforçar o DAS e para cada posição.
Foi um teste à rusticidade do pessoal que foi vencido, mas não sem algumas incompreensões, casos até a exigir procedimento disciplinar – e em vários níveis da hierarquia, – prova que os nossos militares tinham mesmo um caminho a percorrer neste tipo de operações.
Quer do ponto de vista dos procedimentos – aqui a exigir-se, agora, grande capacidade dos baixos escalões, muitas missões eram ao nível de secção – quer dos equipamentos, foi um tempo de grande aprendizagem para quem estava no terreno e para quem, na retaguarda, em Portugal, tinha por obrigação apoiar a força, por vezes, com extrema urgência.
A “informação pública” – Public Information –, como então os militares em Portugal e na NATO genericamente designavam o que se enquadra hoje nos “Public Affairs”, foi para nós uma das novidades desta missão. Tive responsabilidades sobre esta matéria no TO e, regressado da missão, escrevi várias vezes sobre o assunto, nomeadamente um artigo na Revista Militar, ainda “a quente”, logo em 199735. Não faz assim grande sentido desenvolver aqui o tema de novo, contando em detalhe episódios passados, mas julgo que será pertinente referir alguns erros e sucessos, lições aprendidas e o que a Bósnia trouxe de novo. E foi muito, também aqui houve um Exército antes e um depois, mesmo que, mais tarde, a estagnação ou mesmo retrocesso se verificasse, não tanto por culpa militar mas pela falta de interesse dos media.
Em Portugal, durante a preparação da força houve grande atenção dos OCS, mas a generalidade dos problemas, polémicas que iam surgindo na imprensa, eram tratados pelos oficiais das relações públicas do Exército e não tinham grande intervenção dos paraquedistas. As visitas de jornalistas às unidades ou exercícios eram muito controladas pela SIPRP/GabCEME36, por períodos de tempo curtos, no essencial umas horas, e assim as mensagens eram fáceis de passar. Mesmo quando a pressão político-mediática apontou baterias à questão do “voluntariado”, a realidade é que eram mesmo voluntários e o problema era não haver lugar para todos que o eram! Neste período, antes da projecção da força, o EMGFA não tinha qualquer intervenção nesta área da comunicação ligada com a força.
Chegados à Bósnia, o oficial de informação pública produziu, logo em 15 de Janeiro, a partir ainda de Vogošća, no dia anterior à chegada das “Ennablig Forces”, um “Memorandum sobre Informação Pública”, baseado em informação recolhida na BMN-SN, onde se davam orientações genéricas, “Cada comandante (Bat, Comp, Pel, Sec), ao seu nível é responsável pela imagem da sua unidade junto dos órgãos de comunicação social… não se podem comentar assuntos político-militares ou estratégicos… cada militar pode apenas falar da sua área de responsabilidade…” e depois referiam-se ainda aspectos sobre os quais não se podia falar, nomeadamente: “…regras de empenhamento; movimentos futuros das unidades; números exactos de pessoal e armamento; informação sobre aviões abatidos; métodos de recolha de informações, etc”. A sensação que tive na altura é que no turbilhão de emoções da chegada à Bósnia e da enormidade das tarefas e problemas, pouco ou nada as unidades ligaram a estes aspectos. As questões da comunicação e da imprensa não constavam das suas preocupações. Acresce que, no período inicial, para o batalhão, não era clara a autoridade do Public Information Office (PIO) sobre as suas actividades com a imprensa, como mais tarde veio a ser definido!
À chegada, desconhecíamos como estava organizada a área da informação pública na força multinacional. Não foi grave, enquanto não houve pressão por parte dos poucos jornalistas que acompanharam no terreno os primeiros dias – TSF, RTP, SIC e A Capital –, os quais tratamos como cá fazíamos. O DL37 tinha muita dificuldade, nesta fase, em saber em cima da hora o que se passava nos diferentes locais onde se movimentavam as forças desembarcadas e em movimento, desde Split e Ploče, para Vogošća e Rogatica. E mesmo nem sempre se sabia o que era publicado em Portugal em oportunidade, por vezes, muitos dias depois, apenas. As comunicações não eram fáceis – tínhamos um telefone satélite INMARSAT, no DL, outro em Ploče e outro no batalhão. As ordens que os militares tinham eram muito genéricas, nada de mensagens em concreto, só mais tarde ouviríamos falar disso e que a NATO as tinha divulgado previamente para os países mas… não chegaram à força. A figura do “porta-voz” da missão não estava claramente assumida e acrescia aqui um problema que, aliás, se verificava em relação a muitos outros aspectos, não havia unidade de comando!
Quando os problemas começaram – o primeiro e logo brutal, o acidente de 24 de Janeiro – tornam-se evidentes as nossas lacunas na informação pública com dificuldades internas e com o contingente italiano, também ele atingido. Estávamos todos há menos de um mês na Bósnia, portugueses e italianos, nem nos conhecíamos bem, e, embora mais tarde, a nossa relação fosse excelente e de mútuo apoio nesta área, neste primeiro teste acabamos com mensagens contraditórias e mesmo acusações de parte a parte, o que naturalmente se reflectiu para o exterior. Também aqui aprendemos à nossa custa, mas depressa.
Com o último voo de projecção da força, a 29 de Janeiro, chega um grupo grande de jornalistas que o Ministério da Defesa Nacional, em Portugal, tinha autorizado a acompanhar a força, ao qual tinha, aliás, prometido apoios vários, sem nós sabermos disso e nem a força multinacional ter também sido contactada. Os problemas a sério com a comunicação social iam mesmo começar!
Por esta altura, estavam na Bósnia jornalistas e técnicos da RTP, SIC, TVI, TSF, RDP, Rádio Renascença, Agência Lusa, A Capital, Diário de Notícias, Público, Correio da Manhã e Jornal de Notícias. Nestes tempos iniciais, chagaram a estar 20 profissionais da comunicação em simultâneo no TO a acompanhar as forças portuguesas. A concorrência entre eles começa a reflectir-se na pressão aos militares. Se juntarmos a isto a dispersão inicial dos nossos “quartéis” por cinco localidades afastadas muitos quilómetros, as fracas comunicações, a ausência de unidade de comando e de directivas internas específicas sobre a matéria, e ainda a tradicional (e ingénua!) boa vontade dos militares em apoiar qualquer português que estivesse na zona de acção, introduzindo-os nas nossas instalações… só podia correr mal. E correu. As dificuldades que a força atravessava e tinham a ver com instalação, falta de alguns equipamentos individuais e colectivos, inadaptação à alimentação, entre outros, saltaram rapidamente para as notícias que chegavam a Portugal, a todas as horas do dia! Mesmo que muitas notícias sobre a missão fossem absolutamente normais e positivas, outras foram de facto negativas para a força, para o Exército e mesmo para a imagem das Forças Armadas Portuguesas. Nesses tempos, com as rádios a terem a capacidade de entrar no ar “quase instantaneamente”, as televisões uma vez por dia, “à hora do jantar”, e os jornais, “no dia seguinte de manhã”, só houve uma solução: limitar fortemente o acesso dos jornalistas à força!
Chegaram ordens imperativas da SIPRP/GabCEME, primeiro, por telefone e, depois, por escrito38, onde se definiram procedimentos comuns na força para o acesso à informação por parte dos jornalistas, restringindo a 4 pessoas – SNR; PIO; Comandante do 2BIAT; e Comandante do DAS – a autorização para falar com a imprensa e depois, mais militares, autorizados, caso a caso, pelo comando, via Oficial de Informação Pública, e com grandes restrições, nomeadamente “…rigorosamente fora das horas de serviço… sobre assuntos e situações de natureza pessoal e de vida diária excluindo-se os relacionados com a missão e situação operacional vigente…”. Havia, depois, restrições várias no acesso dos jornalistas aos quartéis, mas apoio em termos de transportes, alimentação e saúde, se necessários. Era ainda revista a situação do programa “Bom dia Bósnia”, autorizado pelo Estado-Maior do Exército, a ser realizado a partir de quartéis, com os jornalistas e técnicos, inclusive, a dormir nesses locais – o que provocou problemas internos e, além disso, originava críticas severas dos outros jornalistas, porque criava um situação, de facto, de privilégio para os jornalistas da RDP – prevendo-se agora a sua saída da unidade onde estava (Rogatica).
Estas medidas muito contestadas pelos jornalistas presentes foram rigorosamente aplicadas e, na realidade, a situação, em termos de informação pública, estabilizou.
Simplificando, a rotina era a seguinte, o dia começava com os jornalistas portugueses presentes a assistirem, em Sarajevo, no Centro de Imprensa da IFOR – Hotel Holiday Inn –, à conferência de imprensa diária da força multinacional juntamente com toda a imprensa internacional, depois o PIO português, que também lá estava, fazia um pequeno briefing sobre as actividades da força portuguesa, e de seguida, de acordo com um planeamento já acordado com o 2BIAT ou o DAS –, que, entretanto, nomearam oficiais para coordenarem com o PIO da MFAP-IFOR –, os jornalistas, nas suas viaturas ou em viaturas militares, iam “cobrir” uma das actividade do batalhão ou do DAS. Não havia surpresas, pese embora a imprensa ver o que a força estava realmente a fazer, não se tratava ali de um qualquer “teatro”. Por outro lado, o PIO, pelos contactos que ia tendo no seu local de trabalho, na Divisão “francesa”, teve acesso a documentação francesa e canadiana que acabou por ser enviada para a SIPRP/GabCEME e assim nasceram as “Linhas de Orientação nas Relações com os Órgãos de Comunicação Social”, já distribuídas depois ao 3BIAT. O PIO, por seu lado, produziu localmente dois documentos, um de carácter reservado, só para os oficiais que lidavam com a imprensa no Batalhão e DAS, com orientações detalhadas nos procedimentos a ter com os jornalistas, e uma directiva que o comandante do 2BIAT assinou para estabelecer as regras internas do batalhão. O que agora parecia evidente e fácil só foi conseguido em confronto com a realidade.
Mesmo com alguns protestos, os jornalistas acabaram por perceber que, só assim, cumprindo as regras impostas podiam trabalhar. E trabalhavam, todos os dias as três televisões enviavam, pelo menos, uma “peça” para Portugal, os jornais enchiam páginas e as rádios entravam no ar, desde a Bósnia, várias vezes ao dia.
Em Portugal, aqueles dias e semanas iniciais tinham feito deflagrar uma “guerra” pelo controlo da Informação Pública, com o EMGFA a assumir essa função. Em 1 de Março, é assim recebida na Bósnia uma mensagem que anuncia ter «…por despacho 14/MDN/96 de 23FEV, o EMGFA assumiu a responsabilidade nacional de obtenção tratamento e difusão de toda a informação pública relativa à operação “Joint Endeavour”…». Seguiam-se algumas linhas em que se percebia que, quer em Portugal quer na Bósnia, o “comando e controlo” desta área ia mudar e informava a mesma mensagem, que “…contactos com OCS serão regulados por directiva a enviar oportunamente… está em curso a implementação de um centro de informação pública, junto do QGC (Quartel-General Conjunto/EMGFA)…”. Restava-nos aguardar!
Em 25 de Março, chegou à Bósnia o texto completo do referido Despacho 14/MDN/96 e ainda o Despacho 15/MDN/96, da mesma data, que se destinava à organização da difusão da informação internamente no MDN, EMGFA e em Portugal. Chegava ainda a Directiva n.º 1/CEMGFA/96, de 14 de Março, que definia concretamente “quem faz o quê?” e criava, assim, finalmente, o suporte legal para a actuação da estrutura de informação pública. O Anexo A a esta directiva definia instruções sobre “ocorrências e incidentes”, na sequência das quais foi então possível fazer-se no TO um diagrama designado “Acidentes/Incidentes/Baixas”, que definia o que cada entidade, no local e em Portugal, fazia nestes casos, ajudando assim a coordenar a difusão de informação perante um destes factos, sempre muito sensíveis em termos de informação pública.
Sensivelmente dois meses e meio depois de pisarmos o solo da Bósnia, tínhamos finalmente regras definidas39, conhecidas e treinadas na dura realidade daqueles tempos, as quais se iriam manter, anos e anos, missão após missão.
Fruto desta experiência de 1996, o Ministro da Defesa Nacional, por despacho de 3 de Janeiro de 1997, alarga a responsabilidade pela Informação Pública por parte do EMGFA à missão SFOR na Bósnia e às outras FND, em Angola, na UNAVEM III. Ainda hoje se mantém esta responsabilidade do EMGFA pela área da comunicação em todos os TO exteriores.
Nunca mais as Forças Armadas Portuguesas participaram numa operação com a pressão mediática continua como esta inicial na Bósnia. No entanto, o 3BIAT, além de ter presença em permanência de alguns OCS que mantiveram equipas na Bósnia – RTP e RDP –, teve, em Setembro 1996, que lidar com duas dezenas de jornalistas (RTP, SIC, TVI, RDP, TSF, Rádio Nova, Rádio Renascença, Rádio Capital, Expresso, Público e Tal e Qual), por altura das eleições. Mesmo que a situação estivesse pela nossa parte bem organizada, obrigou, naturalmente, a bastante coordenação e cuidados, a concorrência entre jornalistas podia causar danos colaterais na missão! Não causou. Outro momento delicado, com as directivas implementadas a mostrar mais uma vez a sua eficácia, mas exigir rigor na conduta, o acidente que vitimou dois portugueses, em Outubro, também foi exigente em termos de comunicação. Entre 5 de Janeiro e 6 de Agosto, estiveram na Bósnia, a trabalhar com a força, 135 jornalistas nacionais e 7 estrangeiros. Não se tratavam de visitas pontuais, mas de dias, semanas, meses, de jornalistas em números que iam flutuado, a trabalhar todos os dias junto dos nossos militares.
O facto da pressão mediática ter diminuído muito, sobretudo, depois do fim da missão IFOR, em Dezembro, levou o Exército a deixar de incluir um oficial de informação pública exclusivamente para esta função no quadro orgânico do batalhão, logo com o 1.º Batalhão de Infantaria Motorizado da Brigada Mista Independente (1BIMoto/BMI). Por esta altura, os OCS portugueses desinteressaram-se do tema Bósnia. Apesar disso, com alguma regularidade, jornalistas, agora da imprensa regional – por regra, das cidades de origem das forças expedicionárias – visitavam, por curtos períodos, as FND.
Todos os militares na sua preparação para os TO exteriores assistiam – e, julgo, assistem! – a uma palestra sobre esta problemática, e passaram a levar no bolso um pequeno cartão plastificado com as “Linhas de Orientação nas Relações com os Órgãos de Comunicação Social” (que, com os anos, foi sendo alterado) e muitos oficiais receberam formação nas escolas da NATO e em Portugal sobre esta temática do relacionamento com os media.
Também aqui houve, claramente, um antes e um depois da Bósnia em 1996.
Uma breve referência à presença diplomática portuguesa na Bósnia e Herzegovina, naturalmente sem qualquer ligação orgânica à MFAP-IFOR, mas com efectiva ligação ao contingente português.
“(…) A participação de um numeroso contingente militar português na IFOR levou o Ministério dos Negócios Estrangeiros a ponderar a necessidade da constituição de uma Missão Diplomática em Sarajevo (...) a Bósnia está [em 1995/6] a servir de balão de ensaio para testar um novo tipo de missão que combina o político com o diplomático e com o militar (…) antecipando-nos, mesmo em relação a outros Aliados, como por exemplo a Espanha, permitiu à máquina diplomática portuguesa ser habilitada com informação em primeira mão sobre o desenrolar dos acontecimentos e participar “in loco” no processo de elaboração das posições comuns dos Chefes de Missão da U.E. sobre um determinado assunto (…)” 40.
A “Missão Temporária de Portugal em Sarajevo” foi legalmente criada em 14 de Março de 199641, mas António Tânger Correia, o primeiro representante diplomático de Portugal na Bósnia, já estava no TO há mais de um mês e assistiu ao primeiro hastear da Bandeira Nacional, em 2 de Fevereiro de 1996, no DAS, em Vogošća.
Tânger Correia interessava-se pelos assuntos da força portuguesa, mantinha uma cooperação estreita com o SNR e com oficial de informações do DL, a partilha de assuntos de interesse comum era uma realidade, cada parte tinha acesso a informações de diferentes origens. Era presença regular nos vários quartéis portugueses do 2BIAT e DAS. No contexto dos países que empenharam militares no terreno era, de facto, uma mais-valia haver uma representação diplomática portuguesa no terreno, dava-nos um estatuto de “primeiro escalão”. Tânger Correia, como entidade portuguesa de maior precedência protocolar na Bósnia, acompanhou as visitas das altas entidades militares e portuguesas ao TO e tomava parte nas reuniões que se seguiam e, em determinadas ocasiões, em reuniões do batalhão com entidades locais. O embaixador português e a sua escolta do Grupo de Operações Especiais da PSP (GOE/PSP) eram “da casa”!
Outros portugueses em serviço na Bósnia, a maioria pessoal da Polícia de Segurança Pública, não raras vezes, vinham até aos nossos quartéis, tomavam uma refeição, falavam português, e continuavam a sua vida um pouco “mais perto de casa”!
A presença diplomática que deveria ter sido extinta em Dezembro 1996, manteve-se até Janeiro de 2012, quando terminou a presença militar na Bósnia e a Bandeira Nacional foi arreada no QG da EUFOR, em Ilidza/Sarajevo.
Em alguma da bibliografia apresentada no final, é possível ler o desenrolar da missão IFOR. Foram inúmeras operações, muitas com muitas histórias para contar, impossível neste artigo, por questões de espaço. Assim, optou-se por incluir alguns dados significativos que foram apresentados, em 29 de Janeiro de 1997, pelo então Brigadeiro Piloto Aviador Eduardo Eugénio Silvestre dos Santos, nas funções de Chefe do Estado-Maior do Quartel-General Conjunto/EMGFA. Neste interessante documento, Silvestre dos Santos, também sócio efectivo da Revista Militar, fez não só o balanço global da operação da NATO, o que foi alcançado e porquê, como fez referência à participação nacional nos esforços de paz na ex-Jugoslávia, desde Julho de 1992, e finalmente a participação portuguesa na operação “Joint Endeavour”, entre Janeiro e Dezembro de 1996.
No respeitante à Força Aérea, “(…) o C-212-Aviocar, de Janeiro a Abril, realizou 15 missões de apoio logístico à IFOR, num total de 91 horas de voo (...) o TACP, de Março a Dezembro, efectuou 421 missões de guiamento e controlo de aeronaves de ataque (…) o C-130 efectuou 57 missões de sustenta-
ção logística (…) totalizando 664 horas de voo, 2807 passageiros e 475 toneladas de carga (…) entre Fevereiro e Dezembro foram efectuadas 338 deslocações de jornalistas em avião militar, 189 Lisboa-Sarajevo e 149 Sarajevo-Lisboa (…)”.
Quanto ao Exército, “(…) as dificuldades iniciais provocadas pelas condições climatéricas adversas, a que se juntaram alguns problemas de instalação e inadaptação ao tipo de alimentação italiana, justificam-se pela natural falta de experiência neste tipo de missões (…) foram ultrapassados os problemas encontrados (…) alguma inexperiência terá causado acidentes evitáveis (…) melhoria gradual das condições de instalação (…) a acção dos batalhões centrou-se sobretudo na vigilância e segurança do eixo Sarajevo-Podromanija-Rogatica-Ustipraca-Gorazde e da IEBL na região de Praca. Nestas áreas efectuou patrulhamentos e escoltas a colunas humanitárias, apreendeu armamento, inspeccionou locais de acantonamento e montou segurança a retransmissores de comunicações. A acção operacional das nossas forças foi referida inúmeras vezes em termos elogiosos e reconhecida, quer pelas chefias militares da IFOR, quer por entidades políticas, quer pela própria população. É justo registar e sublinhar nomeadamente as relações isentas e imparciais que mantiveram com as populações sérvias e muçulmanas (…) o contingente nacional registou 4 mortos e 13 feridos (…) colheram-se vários ensinamentos, quer ao nível do planeamento quer ao nível da execução (…) as inflexões permanentes no planeamento militar [da NATO] levaram a que a integração do 2.º BIAT na brigada italiana só fosse formalmente confirmada uma semana antes do dia D (…) o reconhecimento e estudo táctico da Área de Responsabilidade (…) feito de modo expedito (…) o Memorando de Acordo com o Exército Italiano (que devia anteceder a operação) só foi assinado meses depois (…) qualquer que seja o local onde as nossas forças possam vir a estar empenhadas no futuro, dois domínios se revelaram de grande importância – o das comunicações e o do apoio logístico (…) limitações ao nível das comunicações (…) a necessidade de atempadamente serem previstas ou adaptadas regras essências, tais como normas de permanência, rotação e licenças, sistema retributivo, subsídios de risco, pensões de sangue, etc. (…) o reconhecimento do papel fulcral e preponderante que os OCS desempenham hoje neste tipo de operações (...)”.
Como nesta conferência de imprensa não foram fornecidos dados numéricos relativos à missão do Exército, socorremo-nos, para dar uma ideia do volume de trabalho realizado, de um comunicado à imprensa da MFAP – IFOR/Bósnia, em 25 de Julho de 1996, com dados do 2BIAT que se preparava para ser rendido pelo 3BIAT, o que aconteceria a 29 de Julho e 12 de Agosto. Digamos que se estava a meio da missão IFOR.
“(…) Efectivos presentes no teatro de operações, 877 militares, sendo 734 do 2.º BIAT, 126 do DAS, 7 do DL e 10 do TACP/FAP (…), desde 3 de Fevereiro de 1996 quando o batalhão foi dado como pronto (…) Patrulhas de reconhecimento, de Controlo da Zona se Separação e Itinerários: 898;
Escoltas a colunas auto de ajuda humanitária, a evacuações sanitárias e outras: 217; Monitorização de locais de acantonamento de armamento e tropa: 28;
Operações com unidades dos EUA e Francesas: 4;
Missões de reconhecimento: 117;
Respostas a pedidos de pesquisa do escalão superior: 61;
Missões de segurança ao Comando do Corpo de Reação Rápida OTAN em Ilidza/Sarajevo: 5;
Ações de marcação da IEBL: 8 (missão concluída, toda marcada);
Participação em Joint Military Comissions com as facções: 19JAN (Gorazde); 03FEV (Gorazde); 28FEV (Rogatica); 20MAR (Rogatica); 22MAI (Rogatica); 18JUL (Rogatica);
Guiamentos FAC (controladores aéreos avançados) com aeronaves de Espanha, Holanda, França, Itália e EUA: 227;
Missões de treino conjunto FAC com aliados: 8;
Outras missões FAC: 5;
Reconhecimento a potenciais alvos das unidades aéreas: 158;
Colunas de Reabastecimento (DAS para o 2.ºBIAT): 177, em 177 dias;
Quilómetros percorridos: 1.960.067;
Consumo gasóleo: 516.045 l;
Consumo rações de combate: 31.116;
Consumo refeições ultracongeladas: 32.920;
Apoio Sanitário nos postos de socorros do 2.º BIAT de Rogatica; Vitkovici; Praca; e do DAS de Vogoska e Sarajevo: 90 consultas por semana em média;
Serviço postal: 36 toneladas de encomendas e 26.900 cartas;
Jornalistas e técnicos da comunicação social: 142 (ao serviço de 1 agência noticiosa; 3 televisões; 6 rádios; 4 revistas e 11 jornais, além de 1 cineasta e 1 pintor);
Apoio de aeronaves da Força Aérea Portuguesa: 31 missões Hercules C-130 Lisboa-Sarajevo-Lisboa e 5 missões Falcon 50;
Apoio da Marinha Portuguesa: 1 missão de transporte de viaturas e contentores, Alfeite-Ploče, com o NRP “Bérrio”.
O 3BIAT iniciaria a sua missão em Agosto, partes da tipologia das operações eram as mesmas, mas várias outras novas surgiram. A implementação dos Acordos estava a correr bem, mesmo que com percalços e dificuldades, realizaram-se eleições e a vida das populações lentamente ia assumindo alguma normalidade.
Material, entre o desejável e o possível
Os orçamentos são o que são e se os utilizadores querem ter à sua disposição o “estado da arte”, quem tem que os fornecer nem sempre percepciona as mesmas prioridades.
Regressando a 1995 e 1996, podemos olhar para este aspecto dos materiais que foram fornecidos de duas maneiras: o tradicional ‘copo meio-cheio ou meio-vazio’! E isto porque, sendo verdade que o Exército fez um esforço muito grande e em muito pouco tempo, também é verdade que muita coisa faltou inicialmente e só depois de lançada a operação foi sendo melhorada. Quem estava no terreno achava que demorou muito, quem fornecia dizia que foi em tempo recorde! Se alguma coisa foi conseguida em 1996, várias outras só anos mais tarde, mesmo que logo ali tenham sido sinalizadas.
Houve e haverá sempre diferentes percepções das necessidades. Talvez isto justifique, por exemplo, que as viaturas blindadas Chaimite nunca tivessem sido substituídas durante os muitos anos que durou a missão. O último batalhão regressou em 2007 e, todos os anteriores, entre 1996 e esta data, as utilizaram, e só em 2013 novas viaturas blindadas para substituir as Chaimite, as Pandur II 8X8 começaram a ser empregues no Kosovo, onde as V-200 ainda serviam nessa data. Quem as operava, logo em 1996, achava o material completamente desadequado e já obsoleto, até perigoso, mas recordo, no ano 2000, o comandante de uma força regressada da Bósnia no seu debriefing sobre os seis meses de missão, afirmar perante o CEME e todo o comando do Exército que, as Chaimite tinham correspondido às necessidades. As Chaimite, mesmo remotorizadas nos anos de 1980, mantinham problemas graves nas transmissões, as “pontes” partiam com frequência, os travões eram muito deficientes, as viaturas sujeitas a emprego operacional constante necessitavam de muitas paragens para manutenção, o que as tornou nas viaturas com mais baixa taxa de operacionalidade da força e as tornava muito dispendiosas42. As tentativas de as climatizar não produziam efeitos visíveis, e a sua operação no inverno era de uma tremenda dureza para as guarnições. O seu interior era extremamente incómodo e, ali, várias missões duravam horas e horas, as armas colectivas não tinham qualquer escudo de protecção. Tinham a vantagem de poderem ser empregues em caminhos estreitos, eram de fácil condução, e o seu aspecto agressivo causava impacto. Foram, sobretudo, usadas nas escoltas a colunas humanitárias, em postos de controlo e em algumas patrulhas na Zona de Separação, aqui em terrenos difíceis. Mais tarde, no ano seguinte, fruto destas experiências, foram construídas umas “cabines” em ferro e acrílico para proteger o posto de condução, sem grandes efeitos práticos, porque aquilo embaciava com facilidade, mesmo que conferisse alguma protecção do vento, chuva e neve.
Casos concretos do que não havia e passou a haver!
Por incrível que nos possa parecer hoje, em 1995, o Exército Português, melhor, as Forças Armadas Portuguesas, não tinham generalizado o uso de coletes balísticos. Havia “meia-dúzia” em uma ou outra unidade. Só em 1995, já com a missão IFOR no horizonte, é que o Exército comprou em quantidades apreciáveis os novos coletes, que garantiam alguma protecção balística aos militares.
Foi também com esta missão que o novo padrão do uniforme de campanha, o “DPM – Disruptive Pattern Material ” – está agora, em 2021, em vésperas de ser parcialmente substituído –, que os paraquedistas tinham trazido para o Exército, em 1994, passou a ser o geral do Ramo (e, depois, das Forças Armadas). Até aqui, o Exército usava o padrão introduzido nos anos de 1960, durante a Guerra do Ultramar. Foi, aliás, curioso ver que alguns militares não paraquedistas ainda levavam também esse antigo “camuflado” na bagagem, não tinham o novo distribuído. Nesta primeira missão na Bósnia todos os militares, independentemente do Ramo, fardaram de igual. Normalizou-se assim para todas as missões, o que nunca tinha acontecido na história militar em Portugal, ver os três Ramos com os “camuflados” iguais. Nos últimos anos, isto alterou-se no Exército, onde hoje “convivem” três tipos de uniformes camuflados diferentes (DPM, Multicam e o novo) e mais dois para ambiente “deserto” e “neve”, estes últimos também já existiam para missões específicas.
No mesmo padrão DPM, foi também a partir desta missão que as unidades expedicionárias passaram a receber, para todo o seu efectivo, as calças e o casaco de abafo gore-tex, um artigo também introduzido pelos paraquedis-
tas, ainda na Força Aérea. O mesmo se passou com o capacete balístico, modelo US, que também se generalizou no Exército nesta missão e depois nas seguintes.
Mesmo sem ser exaustivo, recordo que para esta missão foram comprados novos – e, depois, logo substituídos, porque os primeiros não provaram – sacos de cama para climas frios, meias gore-tex, polainas gore-tex, luvas, gorros, kits de primeiros-socorros individuais, camas de campanha de alumínio e um “canivete suíço” que acabou por conviver com a “faca de mato” com cabo de osso – uma reminiscência do Ultramar – que ainda foi distribuída. Já a missão decorria há um par de meses, chegaram os novos casacos e calças tipo “forro polar”, muito apreciados e que foram bastante úteis ainda neste primeiro inverno.
De assinalar que o aspecto do militar, o seu fardamento e equipamento individual, das botas à boina ou ao capacete, é muito relevante nestas missões. Os militares cumpriram a missão, na maior parte das vezes, em contacto com as populações de um país civilizado, em aldeias, vilas e cidades. Parte dos nossos quartéis estava dentro de localidades, lado a lado com populações civis, e não no meio do campo, isolados. O atavio (e mais ainda o comportamento, naturalmente) era determinante para o modo como esses povos nos olhavam e avaliavam.
Por estes anos, havia ainda no Exército uma memória muito viva da Guerra do Ultramar e, não raras vezes, percebia-se que para os altos quadros do Ramo era com essa memória que olhavam para as nossas necessidades. E estranhavam. Só para dar um exemplo, não foi fácil explicar-lhes que as nossas unidades precisavam de chuveiros de campanha e outros equipamentos deste tipo que, noutras latitudes e épocas, eram manufacturados localmente pela tropa e, muitas vezes, consistiam num buraco aberto no solo e umas lonas a proteger43. Por incrível que pareça hoje, foram mesmo necessárias as visitas de altas entidades militares ao terreno para apressar algumas compras, as condições de vida das tropas, só vendo e sentindo se percebiam na sua verdadeira dimensão. Era, aliás, muito curioso ver a “atitude” quase geral das altas patentes dos diversos sectores do Exército que vinham avaliar in loco o que liam nos relatórios recebidos em Lisboa. Vinham claramente predispostos a contradizer as “queixas”, começavam por reconhecer o frio, logo no primeiro contacto com o terreno, e depois da visita saíam convencidos das nossas razões e a elogiar o esforço e trabalho desenvolvido!
Em termos de equipamentos colectivos, foram adquiridas várias novidades para esta operação, algumas que tiveram grande relevância no cumprimento da missão. Desde logo, as tendas insufláveis e climatizadas, um equipamento excepcional sem o qual as coisas teriam sido muito, mas muito mais complicadas. Depois, as novas cozinhas de campanha, depósitos flexíveis de combustíveis e de água. As casas de banho e as latrinas de campanha44, imprescindíveis neste tipo de operações, não havendo instalações em alvenaria ou contentores adaptados a estas finalidades.
Já durante a missão, em Maio, foram recebidas e aplicadas placas balísticas/pára-brisas blindados para 17 das 60 viaturas Iveco 40.10, aplicadas localmente por equipas de contacto dos Serviços de Material. Tinham algumas limitações, as suspensões das viaturas também tiveram que ser reforçadas, mas ainda assim as condições de segurança melhoraram.
Um aspecto que na altura significou um salto qualitativo enorme foi a aquisição de equipamento de desminagem e o treino que um ‘punhado’ de engenheiros militares receberam no TO. Desde a Guerra do Ultramar que o Exército tinha perdido capacidade nesta área e o DL integrou um oficial de engenharia que, muito por sua iniciativa e entusiasmo, com o apoio do Comando do Exército, iria desenvolver esta actividade. Chegado à Bósnia, contactou com sapadores da Brigada e da Divisão, propôs a aquisição dos materiais que foram adquiridos em tempo recorde e foi ele próprio receber formação. Em breve, estava de volta ao TO para desenvolver a sua actividade, quer em proveito das forças nacionais quer até de outros países, e mesmo de populações que se viam afectadas nas suas áreas de residência/trabalho com minas. O Tenente Augusto Pinheiro, talvez até excedendo o que lhe seria devido, resolveu um sem número de problemas nas áreas dos aquartelamentos portugueses, mas o seu grave acidente, em Junho de 1996, acabou por determinar a entrega desta actividade à BMN-SN, onde também trabalhavam excelentes profissionais EOD. Ainda assim, ficou a “escola” e por incrível que pareça, hoje, passados 25 anos, o Tenente-Coronel Augusto Pinheiro é professor na Academia Militar, onde esta temática é abordada.
Em termos de armamento, o batalhão recebeu, novos, lança-granadas automáticos 40mm Santa Barbara e metralhadoras ligeiras MG 3 7,62mm, além das veteranas, mas eficazes, Brownning 12,7mm que equipavam as Chaimite e alguns UMM Alter. Algumas V-200 também vinham dotadas com uma Browning.30 que os paraquedistas, sempre que podiam, substituíam pelas MG3. O restante armamento individual e colectivo era o orgânico dos paraquedistas, espingarda Galil 5,56mm, morteiros 60mm long range, CSR Carl Gustav 84mm, Míssil Milan.
No equipamento individual houve um esforço para adquirir artigos inexistentes nas dotações individuais do Exército e que só depois desta missão se generalizaram, fruto da experiência e propostas desta força inicial:
– Coletes tácticos com capacidade para carregadores, nestas duas primeiras missões os militares ainda usavam o sistema de suspensórios e porta-carregadores;
– Camelbak para substituir o cantil;
– Coldres e porta-carregadores para pistola;
– Botas goretex, na primeira missão o pessoal foi equipado com botas de cabedal para climas temperados ou tropicais, muitos compraram do seu bolso estas novas botas;
– Novas bandoleiras para a espingarda que permitiam mais flexibilidade de utilização;
– Óculos de protecção e de sol;
– Óculos para os condutores das viaturas blindadas;
– Faca Aitor (para substituir a “faca de mato”);
– Canivete Alicate Aligator;
– Tira do nome bordada e cozida ao uniforme (o Exército fornecia uma fita velcro e depois cada um escrevia o seu nome), pode parecer um detalhe, e é, mas dá um aspecto de uniformidade muito importante, o mesmo com as “bandeiras nacionais” para usar no ombro que eram fornecidas em modelos muito diferentes e por vezes ridículos;
– Helmet bag que passou a ser um saco distribuído a todos os militares;
– As mochilas tipo ALICE que os paraquedistas traziam do Corpo de Tropas Paraquedistas (CTP) e ainda foram usadas na Bósnia, mais tarde foram substituídas pelas Berghaus.
Para terminar, uma nota para o magnífico apoio e actividades do Serviço de Administração Militar, designadamente da Direcção do Serviço de Intendência/Manutenção Militar (DSI/MM), para fazer chegar em quantidade, qualidade, diversidade e oportunidade, todo o tipo de reabastecimento, muito especialmente em Classe I, VI e II, e para adequar com muita flexibilidade os rígidos procedimentos administrativos às necessidades.
Pessoal
Durante o primeiro ano de missão, estes pioneiros desmistificaram o que era participar numa missão deste tipo. O Exército Português, melhor dizendo, os militares individualmente e as suas famílias, foram interiorizando que novos tempos tinham chegado, o afastamento de casa e das rotinas em Portugal começou a ser novamente admitido como possibilidade e normalidade.
Pelo lado positivo, estas missões tinham (e têm) a motivação pessoal de qualquer militar que goste da sua actividade profissional, põe-se em prática o aprendido em anos e anos de formação e treino. Alguns, têm a recompensa dos louvores e medalhas que são parte importante da vida militar e todos têm a compensação económica. Estas missões são relativamente bem pagas e, comparativamente com os vencimentos em território nacional, melhor pagas quanto mais baixo for o posto. No entanto, deve referir-se que, em seis meses de missão, o militar não fica milionário! A valores de hoje – e na altura eram menores, porque este suplemento estava sujeito a IRS, só mais tarde isso foi objecto de legislação que o isenta, mesmo que obrigue a determinados pressupostos –, o militar ganha, num mês, além do vencimento, mais 2.400,00€, se for Praça, 2.600,00€, se for Sargento, e 2.800,00€, se for Oficial. Ou seja, se for poupado, o militar pode “trazer para casa”, ao fim de uma missão, entre 14.400,00 e 16.800,00€ extra.
Recordo que, na Bósnia, em 1996, não havia internet e um dos factores que levavam a grandes gastos por muitos militares eram as comunicações telefónicas. Estas, eram difíceis e caras, sobretudo, no início, com o decorrer dos meses, foram sendo montados sistemas de comunicações mais acessíveis, mas sempre pagos pelos próprios. Em Maio, foram inauguradas “cabines telefónicas” que funcionavam com cartão.
Foi montado, desde o início, pelo Exército, um Serviço Postal que funcionou relativamente bem. Inicialmente, assentava nos voos de sustentação Hercules C130, tendo a primeira distribuição de correspondência tido lugar logo em 10 de Fevereiro de 1996. Este apoio tinha bastante influência no moral do pessoal e alcançou uma dimensão significativa na missão inicial45, mesmo que a melhoria das comunicações telefónicas ocorridas, passados mais de três meses de missão, lhe tenham retirado alguma pressão. Os voos de sustentação tiveram, na área do pessoal, mais um aspecto muito positivo, o de proporcionar transporte para pessoal que vinha de licença – note-se que isto era comum nos contingentes com os quais trabalhávamos no terreno, nomeadamente, os italianos e os franceses, mesmo que estes tivessem apenas quatro meses de missão.
São vários os aspectos negativos que foram melhorados, quer durante missão quer em situações semelhantes nas missões seguintes: a falta de clarificação inicial sobre licenças, o que causou mal-estar e naturais dificuldades ao comando das forças; verificaram-se muitos casos ligados à administração de pessoal não resolvidos em Portugal ou com atrasos significativos (promoções, renovação de cartões, aprontamento de processos, vencimentos e actualizações, descontos), o que causava natural instabilidade e até problemas aos familiares em território nacional. As deficiências que se verificaram no acompanhamento dos familiares dos militares falecidos em Janeiro, com muita falta de informação, causou problemas graves e haveria mesmo de chegar aos tribunais. Alguns aspectos foram resolvidos pela legislação publicada posteriormente com efeitos retroactivos, mas, por incrível que pareça, um ou outro detalhe ainda se arrastou, durante anos e anos.
Em termos de legislação, apesar de Portugal estar empenhado em missões de Paz, desde 1991, nunca tinha havido pressão para publicar legislação adequada, as coisas funcionavam por despachos avulsos, quer do MDN quer dos CEM respectivos. Mesmo esta missão IFOR foi assim iniciada, mas os problemas e dúvidas que se geraram levaram a mais esta importante alteração, e a seguinte já foi objecto de Portaria do MDN, publicada em Diário da República, e, desde então, assim tem sido sempre.
No decorrer desta primeira missão, os militares aperceberam-se que vários países tinham medalhas específicas para as Missões de Paz. Aliás, vários militares portugueses foram agraciados, além da medalha NATO alusiva à operação, com a medalha francesa e a medalha italiana, exclusivas para missões deste tipo. O assunto foi “germinando” através de contactos pessoais e, logo em 1997, a Secção de Heráldica do Exército trabalhou o assunto e elaborou uma proposta que viria a ser aceite pelo CEME, em Dezembro de 1998, a “Medalha Comemorativa das Missões de Apoio à Paz”. O assunto seguiu para Conselho de Chefes de Estado-Maior que optou – julgo que mal – por modificar o articulado legal da já existente para o Ultramar “Medalha Comemorativa de Comissões de Serviço Especiais”, para incluir as missões de paz e humanitárias, mas também todas as missões no estrangeiro. Assim, quem presta serviço num QG internacional, em Bruxelas ou Norfolk, recebe uma medalha igual a quem cumpre uma FND46. Não me parece justo, mas assim é, desde o ano 2002, acrescendo que o desenho da medalha nada tem a ver com as missões de paz, mas sim com as Forças Armadas Portuguesas no antigo Ultramar. Foi uma oportunidade perdida.
O nível médio do militar do Exército, quer em termos de formação e treino quer em termos de disponibilidade psicológica para ser empenhado em operações, foi evoluindo, foi melhorando. As Praças RV/RC começaram a olhar para estas missões como motivação para permanecer mais tempo ao serviço, melhorando a capacidade do Exército e em particular das unidades potencialmente expedicionárias em conseguir efectivos. Aos paraquedistas na Bósnia seguiu-se a infantaria da BMI e, passado pouco tempo, a Brigada Ligeira de Intervenção47. Os chamados “regimentos de província” que eram olhados com alguma condescendência por muito boa gente no Exército, em poucos anos, estavam eles a fornecer batalhões para as missões expedicionárias. Mais tarde, também pessoal e depois sub-unidades das Zonas Militares dos Açores e Madeira foram (e são) empenhadas.
Estas missões obrigaram, sem dúvida, a um “nivelar por cima” dentro do Ramo terrestre.
Foi também na Bósnia que se iniciou a participação de militares femininos nas missões expedicionárias. O DAS integrou um pequeno grupo de 10 militares do sexo feminino, 1 Tenente QP-Veterinária, 1 Alferes e 8 Primeiros-Cabos e Soldados RV/RC paraquedistas. Não foi isenta de problemas de adaptação esta novidade, nomeadamente, pela precaridade das instalações, mas metade das militares (5 praças) permaneceu na Bósnia os 6 meses iniciais. O 3BIAT também incluiu militares femininos.
Após o regresso dos militares do 2BIAT a Portugal, o Centro de Psicologia Aplicada do Exército (CPAE) fez uma avaliação psicológica a parte muito reduzida do seu efectivo (menos de 10%), mas foi pioneira, e permitiu propor um modelo que foi sendo aperfeiçoado, com avaliações ao pessoal expedicionário antes, durante e depois das missões. Logo no 3BIAT, 2 Alferes RC, Psicólogas, acompanharam o exercício final de preparação para a missão e depois acompanharam a força, permanecendo 3 meses, cada uma, na Bósnia. No regresso, os militares foram avaliados. E assim passou a ser regra nas missões expedicionárias. Os resultados destes trabalhos são naturalmente levados em linha de conta pelo Comando do Exército para melhorar diferentes aspectos das missões, sendo gradualmente publicados e disponibilizados – pelo menos em parte – para estudos de carácter académico por parte de entidades civis. Este trabalho é muito relevante no sentido de prevenir episódios do chamado “stress de guerra” e também de os poder acompanhar e tratar quando surgem.
Um aspecto que também deve ser referido é a questão dos intérpretes. Sendo prática normal nas unidades da UNPROFOR, não foi prevista inicialmente na nossa missão. Chegados ao terreno, perante a evidente necessidade – poucos locais falavam inglês ou francês, sobretudo, nas áreas rurais –, também o 2BIAT contratou cidadãos bósnios, quer de origem sérvia quer muçulmana, para estas tarefas. Em Rogatica, foi inicialmente contratada uma intérprete de origem sérvia, refugiada de Knin que estava deslocada nesta cidade onde o batalhão se estava a instalar; em Gorazde, o batalhão contratou uma e um intérpretes de origem muçulmana que anteriormente já tinham trabalhado para a ONU. Outros se seguiram. Uns estiveram connosco por períodos relativamente curtos, três fizeram disso a sua vida e acompanharam as forças portuguesas quando mudaram de aquartelamentos. Os que trabalharam, até 2006, foram: Muhamed Bešlija, um dos dois iniciais de Gorazde; Daniela Knezevic-Kapetina, de Sarajevo, refugiada em Rogatica, começou a trabalhar com o batalhão português, em 1997; Jelena Markovic, também de Sarajevo, que iniciou o trabalho em 1999. Os intérpretes eram fluentes em inglês e/ou francês e os que nos acompanharam mais anos acabaram a falar o português.
Força Aérea
a) TACP
Mesmo que este artigo incida sobre o Exército, na realidade, também na Força Aérea se fizeram sentir algumas mudanças significativas decorrentes desta missão na Bósnia.
Pela primeira vez na sua história, a Força Aérea criou um Destacamento de Controlo Aéreo Táctico expedicionário48 (TACP – Tactical Air Control Party). Manteve-o na Bósnia durante toda a missão IFOR, e voltou a empenhar uma força com estas características no Kosovo, Afeganistão e, agora, na RCA, embora estes sucessivos destacamentos com características e dimensões diferentes.
O TACP foi levantado pela FAP, a partir de Maio de 1995, toda a sua preparação foi executada internamente (Centro de Treino de Sobrevivência da Força Aérea), e em Itália (Aviano e Vicenza, com a US Air Force), em sistemas de comunicações HF e VHF. O aprontamento decorreu – sem qualquer contacto com o Exército – no segundo semestre de 1995, até Fevereiro de 1996, sendo projectados para Sarajevo, em 8 de Março de 1996, em aviões C-130 da Força Aérea.
Foram equipados com o melhor radio via satélite que existia, o PRC-117D, uma viatura táctica-administrativa e duas Viaturas Blindadas de Transporte de Pessoal Condor equipadas com sistemas de comunicações HF e VHF FM banda alta. Usaram o mesmo uniforme de campanha que o Exército e adquiriram espingardas Galil iguais às dos paraquedistas.
O TACP tinha o comandante, um mecânico de electrónica e duas equipas Forward Air Controller (FAC), cada uma com um oficial piloto-aviador, o controlador aéreo táctico, um operador Condor e um operador de comunicações, num total de 8 militares. Cada equipa FAC actuava independentemente da outra.
b) Hercules C-130
Tendo em linha de conta o grau de ameaça que havia em Sarajevo, no início da missão, a Força Aérea iniciou o processo de aquisição de sistemas de guerra electrónica Radar Warning Receiver SPS-1000, chaff e flares e também de blindagem para os cockpits de dois Hercules C-130. Este “Protocolo de integração de sistemas de autoprotecção – GE em aeronaves C-130” foi de facto iniciado durante, mas terminado só depois da missão IFOR e acabou por ser estendido a toda a frota.
Comando e controlo
Quando um protagonista elabora sobre o que viu, como é o caso deste artigo, haverá sempre uma visão marcada pelo seu posicionamento pessoal aquando dos factos. Um soldado que tenha estado na Bósnia aborda o que viu de um modo diferente do de um sargento e este do oficial, e muitas mais possibilidades se poderiam considerar, de acordo com as tarefas que cada um cumpriu. Esta visão “ao nível do terreno”, mesmo que depois comparada com documentos oficiais e até opiniões de outros protagonistas, marca este artigo e talvez marque mais este último capítulo. Esta é uma percepção certamente diferente das avaliações “macro” que depois lemos em publicações académicas ou em seminários e conferências. Não estará mais certa ou errada do que outras, é a que me ficou; está temperada pela leitura de directivas, memorandos e muita mais documentação desses tempos.
O Comando Aliado na Europa – SACEUR – ligava-se com o CEMGFA em Portugal, o qual abordava os assuntos em causa na atribuição de forças com o Ministro da Defesa Nacional. Em 1993, já havia correspondência entre o CEMGFA, o CEME e o Comandante do CTP49, sobre a participação de uma unidade de combate em acções de manutenção de paz na ex-Jugoslávia. Em 22 de Dezembro de 1994, o CEMGFA, tendo recebido ordem do MDN, informa a NATO da disponibilidade de Portugal para participar numa operação de retirada da UNPROFOR da Bósnia com um Batalhão de Infantaria Aerotransportado, solução proposta como a primeira opção pelo Exército que tinha recebido as Tropas Paraquedistas, renomeadas Aerotransportadas, em 1 de Janeiro de 1994.
O CEME, que já tinha, durante 1994, difundido directivas sobre prontidão operacional para operações de paz e humanitárias para diferentes unidades, e na directiva de planeamento para 1995 tinha colocado várias sub-unidades das três brigadas com estados de prontidão diferentes, sendo um BIAT/BAI o mais elevado (menos tempo para intervir), acciona, em 1995, a preparação da força, leia-se, do batalhão aerotransportado. O apoio de serviços, como depois foi empregue, só “mais em cima” foi mandado realmente aprontar. Muitos elementos de planeamento estavam naturalmente em falta, mas a missão foi atribuída ao 2BIAT/BAI. Nesta altura, estava prevista a rotação de três batalhões aerotransportados durante um ano de missão, com apenas quatro meses de permanência no TO para cada batalhão, como mais tarde viríamos a constatar ser o que faziam italianos e franceses, por exemplo.
O que não havia dúvidas e ficou amplamente provado é que era o CEME, em pessoa, que supervisionava a preparação da força. De viva voz, quer em reuniões quer em visitas às unidades em aprontamento, ou em memorandos e mensagens, o General Cerqueira Rocha foi o motor da preparação da força. Eram frequentes os “saltos” por cima da cadeia de comando, facto, naturalmente, que a muitos desagradava e era por vezes embaraçoso, mas conhecendo-se a máquina burocrática do Exército e o temor que o CEME causava, parecia a única solução para muitos assuntos avançarem. Com uma personalidade completamente diferente, o Vice-CEME, Tenente-General Gabriel Augusto Espírito Santo, completava bem o comando do Exército, nestes tempos difíceis “(…) actuante e competente, mas num outro estilo, fazendo pontes sem deixar de ser exigente, mas muito mais “brando” no enfrentar os protagonistas (…)”, refere um oficial que conheceu bem estes tempos na primeira pessoa. Esta personalidade do CEME até agradava aos integrantes da força, porque percebiam que só assim os assuntos se resolviam e, por outro lado, é inegável, sentiam-se quase que lisonjeados pela atenção recebida!
A Directiva Operacional do CEMGFA n.º 6/95, de 19 de Maio de 1995, sobre “Participação das Forças Armadas, em tempo de paz, na satisfação de compromissos militares decorrentes de acordos internacionais”, recorrendo à Lei de Bases da Organização das Forças Armadas, determinava as relações de comando. A responsabilidade na preparação da força caberia naturalmente ao Ramo que depois a “entregaria” ao CEMGFA, que assumiria o seu comando operacional e a iria atribuir ao comandante da força multinacional onde fosse empregue. Depois, havia várias “nuances”, que previam ao CEMGFA exercer competência através do Chefe de Estado-Maior do Ramo. Isto mesmo foi dito ao Ministro da Defesa Nacional, António Vitorino, no Conselho Superior Militar, de 28 de Novembro de 1995, pelo CEMGFA “(…) estava a ultimar a respectiva Directiva50 e que o Comando Operacional da Força seria sempre do CEMGFA, que por seu turno, delegaria no CEME, enquanto que o Controlo Operacional, esse, seria sempre prerrogativa do SACEUR (…)”.
Durante a preparação da força, a sua projecção e depois os primeiros três meses de missão, o Exército assumiu o comando da força e o CEME, em pessoa ou através de algum dos seus adjuntos, ligava-se com os comandantes no terreno. A percepção que ficou a quem estava na Bósnia é que os problemas com a imagem da força transmitida pelos OCS foram o principal motivo que levaram o CEMGFA, naturalmente com anuência do MDN, a alterar a situação. E as ordens que chegavam à Bósnia eram claras, o Exército é que mandava. Aliás, em 26 de Fevereiro de 1996, durante a primeira visita à Bósnia do MDN51, este fez-se acompanhar apenas do CEME, porque, disse à comunicação social “(…) O general Cerqueira Rocha é o responsável pelo batalhão da Brigada Aerotransportada Independente. Como comandante operacional da operação, cabe ao CEMGFA acompanhar o Primeiro-Ministro, quando este visitar os portugueses (…)”.
Tivesse sido ou não despoletado o problema do comando da força por questões de “imagem”, o facto é que se alterou mesmo e a começar pela “Informação Pública”. Revisitando as notícias de então, se nas semanas iniciais a questão dos mortos e da instalação da força com os seus problema e dificuldades, muitas claramente negativas, tiveram destaque, olhando para as publicadas por ocasião das visitas de João Soares (20 de Fevereiro), Vitorino (27 de Fevereiro) e Guterres (30 de Março), não há dúvida que “as queixas dos militares”, “condições de vida”, “vencimentos” e “férias” ocuparam muito espaço, levando mesmo os governantes a terem que se pronunciar sobre estes temas.
Em 14 de Março, o CEMGFA emite a Directiva n.º 1/96 – Informação Pública e Informação Interna para a Operação “Joint Endeavour” –, suportada pelos Despachos n.º 14 e n.º 15 do MDN, ambos de 23 de Fevereiro de 1996, na qual retira ao Exército o controlo desta área e o assume, através do seu Quartel-General Conjunto; em 27 de Março, a Directiva Operacional n.º 2/96 “Empenhamento Nacional no OPLAN 10405 (Joint Endeavour)” altera as relações de comando52, quer em Portugal – mantém o Comando Operacional – quer na Bósnia, onde o DL, por exemplo, passa a depender do comandante do 2BIAT, o Senior National Representative deixou de ser um oficial na Bósnia, mas o National Military Representative no SHAPE, Bélgica, e os oficiais do DL passam a ter as missões discriminadas53.
Estava assim em finais de Março, início de Abril, consubstanciado, finalmente, o modelo que iria vigorar até ao fim da missão – quer a nível interno da força quer nas ligações com Lisboa, o qual com um ou outro aperfeiçoamento é o de hoje nas missões expedicionárias!
O CEMGFA comanda a força nacional e delega no comando multinacional o seu controlo operacional no TO, e é responsável pelas relações com os OCS; os Ramos prepararam, projectam e apoiam nos aspectos de pessoal e logística.
A avaliação que cada um faz das missões expedicionárias pode ser discutida, mas a realidade é que todos têm cumprido. As unidades do Exército Português empenhadas têm levado a cabo as suas missões com profissionalismo, não desmerecendo por comparação com outros países, e, não raras vezes, mostrando até mais qualidade do seu pessoal. Claro que em todas houve e há “casos desagradáveis”, internamente conhecidos, mas que, nos dias de hoje, raramente transparecem para o exterior. Uma ou outra notícia “negativa” com as FND é, hoje, raríssimo acontecer. Sendo certo que o Ramo terreste foi aprendendo com as sucessivas missões, também é certo que a exposição mediática é mínima ou mesmo inexistente.
Olhando, hoje, para o que se passou em 1995/96, podemos pensar que muita coisa podia ter sido melhor planeada e melhor executada, é certo, mas as circunstâncias em que esta missão foi preparada foram únicas.
Os que hoje partem numa FND e já estiveram em missões anteriores, sofrem, por vezes, algum desencanto com lacunas que teimam em manter-se, mas a realidade é que muita coisa mudou para melhor na generalidade dos aspectos, poucas comparações se podem fazer, e ainda bem. Isto não desculpa, naturalmente, a necessidade de constante aperfeiçoamento!
Na Bósnia, em 1996, os paraquedistas portugueses e todo o pessoal de outras armas e especialidades do Exército, e os da Força Aérea que integraram a missão, foram pioneiros, desbravaram um caminho que tinha que ser feito, e foi. Não se pouparam a esforços e, acima de tudo, deixaram a Bósnia e Herzegovina com todos os objectivos operacionais cumpridos e, mesmo fora do contexto militar, Portugal ficou visto internacionalmente como até ali não tinha acontecido54.
As tremendas provações por que passou este contingente foram ultrapassadas e fica hoje, em cada um, a satisfação de ter contribuído para haver na Europa, desde há 25 anos, um país onde a guerra não regressou.
Contribuíram para a mudança do Exército, uma imagem diferente de Portugal no mundo e para o início da normalização da Bósnia e Herzegovina.
Almeida, Ana Luísa da Rocha, “A posição dos partidos políticos portugueses face à guerra da Bósnia-Herzegovina (1992-1995)”, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 11 de Setembro de 2012.
Anuário Estatístico da Defesa Nacional, Ministério da Defesa Nacional, Lisboa, 1996 e 1997.
Brito, Luís Villa de, Tenente-Coronel (Coordenador), “Bósnia 96, Missão do Exército em Apoio à Operação de Paz”, SIPRP/GabCEME, Lisboa, Julho de 1997.
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* 25 anos depois da partida de Lisboa para a Bósnia e Herzegovina.
1 Portugal e o Exército, em particular, tinham sido confrontados, em 1990, com a sua própria incapacidade operacional. “Apesar das dificuldades, conseguiu-se estruturar um Agrupamento de Armas Combinadas (Agrupamento de Forças), à custa de meios da BMI/CMSM (Brigada Mista Independente/ Campo Militar de Santa Margarida) e da Brigada de Forças Especiais (BFE). Mas a previsão da natureza das operações a desenvolver e, principalmente, as dificuldades de assegurar exigente sustentação por apreciável período de tempo, contribuíram certamente para que não fosse recomendado o empenhamento de uma unidade de combate (na operação Desert Strom, “Guerra do Golfo” – 1990)”. General Cerqueira Rocha, “Portugal e as Operações de Paz na Bósnia: A Preparação das Forças”, Nação e Defesa, N.º 92 – 2.ª Série, 2000, Lisboa.
2 Total 376. Afeganistão-170; Colômbia-1; Iraque-1; Mali-10; República Centro Africana-192; Somália-2. Consultado www.exercito.pt, em 24 de Novembro de 2020.
3 O Exército tinha mantido em Moçambique, durante o ano de 1994, o Batalhão de Transmissões n.º 4, no âmbito da UNMOZ. Em Angola, UNAVEM III e depois na MONUA, empenhou a Companhia de Transmissões n.º 5, a Companhia Logística n.º 6 e o Destacamento Sanitário n.º 7, entre 1995 e 1998. Noutro âmbito, o da Cooperação Técnico-Militar, o Exército matinha oficiais e sargentos em vários países de língua oficial portuguesa, desde 1991.
4 Ver comunicado oficial a assinalar, em 8 de Novembro de 2017, os 25 anos do início da missão: https://ejercito.defensa.gob.es/actualidad/2017/11/6328_25_aniversario_bosnia.html.
5 Em 22 de Dezembro de 1994, o CEMGFA, Almirante Fuzeta da Ponte, havia informado o SACEUR, por ordem do Ministro da Defesa Nacional (Fernando Nogueira), que Portugal disponibilizaria um Batalhão Aerotransportado para a operação da NATO de retirada da UNPROFOR da Bósnia. O ministro António Vitorino, confirmaria isso, “…o processo de preparação das forças foi iniciado pelo XII Governo Constitucional, contemplando três possibilidades alternativas que assim foram disponibilizadas ao XIII Governo…”, António Vitorino, Ministro da Defesa Nacional em 1995/1997, Nação e Defesa N.º 92 – 2.ª Série.
6 Recordamos que, ainda, em 28 de Setembro de 2018, na Assembleia da República, o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda votaram contra um “Voto de congratulação aos militares portugueses na República Centro Africana”. Tratou-se de uma iniciativa do Partido Social Democrata e do Partido Popular, votada favoravelmente também pelo Partido Socialista e pelo Pessoas Animais Natureza e a abstenção do Partido Ecologista “Os Verdes”.
7 «…O PCP considerou que o conflito na Bósnia-Herzegovina foi nada mais, nada menos do que a “natização [SIC] e americanização” de uma “nova ordem” na Europa…». Almeida, Ana Luísa da Rocha, “A posição dos partidos políticos portugueses face à guerra da Bósnia-Herzegovina (1992-1995)”, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 11 de Setembro de 2012.
8 João Amaral, deputado do PCP, interveio várias vezes, ainda em 1996, sobre seguros e pensões de preço de sangue e teve reuniões com familiares dos falecidos.
9 Em Setembro de 1991, 5 militares do CTP tinham integrado uma missão de evacuação da Força Aérea no Zaire. Em Outubro de 1992, 30 militares do CTP tinham integrado a missão de repatriamento executada pelas Forças Armadas para repatriar civis de Angola. Tudo missões de alguns dias/semanas, tudo o resto tinham sido prevenções!
10Moçambique e Angola no quadro da ONU e sem unidades de combate.
11Todos QP, RC e RV. Os paraquedistas não tinham pessoal “de 4 meses”, ao contrário das restantes brigadas que não tinham (ainda) unidades assim constituídas.
12PORTUGAL NO CONTEXTO INTERNACIONAL, Opinião pública, defesa e segurança publicado pelo Instituto da Defesa Nacional / Edições Cosmos, em 1998. ISBN: 972-762-112-0. Curiosamente António Vitorino tinha na sua posse um outro inquérito, mandado fazer pelo governo, que mostrava uma maioria favorável.
13António Vitorino apresentou aos Chefes de Estado-Maior, no Conselho Superior Militar, uma sondagem encomendada pelo governo que apresentava uma maioria favorável à intervenção!
14“(…) Tratou-se de uma decisão particularmente difícil, na medida em que representou um regresso das Forças Armadas portuguesas a um teatro de operações europeu, donde havíamos estado ausentes desde a I Guerra Mundial e cuja memória colectiva não pode ser tida como muito favorável. Mas foi uma decisão propiciada pela consciência profunda de que a pertença a uma Aliança determina não apenas direitos de solidariedade mas também deveres de partilha de responsabilidades e de riscos, uns e outros faces da mesma moeda (…)”. Vitorino, António, “Nos Cinquenta Anos da NATO: Algumas Reflexões sobre a Operação de Paz na Bósnia-Herzegovina”, Nação e Defesa N.º 92 – 2.ª Série, 2000, Lisboa
15Em 1995, o nosso batalhão, depois de ter estado atribuído a uma brigada canadiana e a uma belga, chegou a estar “inserido” pela NATO, em termos de planeamento, numa brigada espanhola, na operação de retirada da UNPROFOR, facto a que o EMGFA e o Exército não se opuseram, remetendo para o poder politico a decisão, que realmente a travou, obrigando a NATO a reformular os planos. Até à missão no Iraque, em 2016, Portugal nunca aceitou ficar com unidades sob directo comando espanhol – mesmo que a cooperação no terreno em vários TO fosse excelente. Em Agosto de 2006, houve mesmo alguma polémica quando foi noticiado em Espanha e logo depois em Portugal, que o Exército Português iria integrar uma brigada espanhola na força da ONU, no Líbano. O Ministro da Defesa português de imediato desmentiu e a unidade de Engenharia portuguesa acabou por ficar na dependência directa do Comandante da UNIFIL.
16Na “Ordem de Batalha” inicialmente prevista, este destacamento teria 21 militares. Depois, foram sendo retirados oficiais e alterados lugares a desempenhar, acabando por partir para a Bósnia apenas 15: 1 Coronel Tirocinado; 1 Tenente-Coronel; 6 Majores; 5 Capitães; 1 Tenente; 1 Primeiro-Sargento.
17Na realidade, não havia qualquer legislação para este tipo de empenhamento (só foi publicada em Dezembro de 1996), os militares que partiram não sabiam quanto tempo de missão tinham que cumprir, falava-se em um mínimo de 4 meses e um máximo de 12, e a opção foi deixar quem quisesse regressar depois de 4 meses, que era aliás o tempo de missão, por exemplo, para os contingentes franceses e italianos. Outra legislação omissa se seguiu ao longo dos anos, como a relativa a “suplemento de missão” (1997 e 2000) ou “seguro de vida” (1999). Nesta missão inicial e até 1999, muitos militares faziam seguros de vida e invalidez, mas em instituições privadas, pagando naturalmente para isso.
18Em 17 de Junho de 1995, o jornal “Semanário” titulava “Batalhão Português na Bósnia: a previsão vai até 200 mortos” e continuava, “…a missão do batalhão português é das mais perigosas que podem existir. O governo e a oposição são cúmplices no silêncio sobre a oferta de militares portugueses...”.
19Desde muito cedo que foi esta a opção obrigatória do Exército. O próprio CEME, General Cerqueira Rocha, em memorando enviado ao EMGFA, ainda em finais de 1993, “Participação de uma unidade do Exército no âmbito duma força multinacional”, referia claramente que um “Batalhão Aerotransportado” seria a primeira opção, referindo ainda (recorda-se, os paraquedistas ainda eram da Força Aérea) que deveria actuar sob um “comando terrestre”, leia-se, do Exército. Nessa altura, o Exército não tinha voluntários suficientes na BMI como não tinha ainda nas vésperas da missão IFOR, quando o CEME, no Conselho Superior Militar de 28 de Novembro de 1995, refere não ter, fora da BAI, “mais do que uma companhia de voluntários”.
20Em 1995, o Exército tinha 7.632 militares QP; 11.095 RV/RC; 30.898 SEN.
21Diário do 2.º BIAT/FND/IFOR. Note-se que isto foi um mês antes de se iniciar a projecção da força!
22Idem.
23Durante a missão os portugueses puderam ver “unidades” de países que investiram fortemente na construção de quartéis “para durar”, alguns em antigas instalações afectadas pela guerra – bases aéreas, estações de caminho-de-ferro, etc. – outros mesmo de raiz, percebendo-se que a intenção era criar boas condições de vida e de segurança e não condições “de campanha”. Só dois exemplos, nós éramos dos poucos que previmos alojar o pessoal em tendas (mesmo que fossem boas, climatizadas) e não em contentores (naturalmente, melhores) e cujos militares dormiam em “camas de campanha” – estes “burros do mato” não eram construídos para serem usados meses seguidos, passado algum tempo já estavam todos empenados ou/e partidos! – e não em camas normais.
24Na altura, foi muito criticada em meios do Exército em Portugal esta escolha, a qual tinha realmente limitações. A realidade é que nenhuma das unidades do Exército (9 batalhões) que ali se sucederam, até Fevereiro de 2000, quando a força portuguesa mudou para o Visoko, logrou mudar de instalações! Muitos só percebiam quando lá chegavam que ali não contava só a nossa vontade, e ainda que não tínhamos recursos financeiros para construir um quartel de raiz, como mais tarde e bem, foi, por exemplo, feito no Líbano, pela Engenharia do Exército Português.
25Apenas aceitou o capitão destinado ao Bureau Communication Information e mesmo este por pressão do Public Information Officer da IFOR, na realidade deveriam ter sido integrados no Quarte-General (QG) da DMNSE, mais dois oficiais, o coronel e um major. A própria Directiva Operacional do CEMGFA relativa ao DL (a 18/95, de 27 de Dezembro de 1995), aludia a estes lugares e outros que não se verificaram na prática.
26Muito pouco falado, este apoio de camiões civis fretados teve relevância na sustentação da força. No início da missão chegaram a ter a frequência de 1 a cada 2 dias. Quase tudo transportavam, de alimentos a sobressalentes e até viaturas 40.10, por exemplo, do e para o TO, mesmo que não isenta de peripécias para estes condutores civis.
27Primeiro-Cabo Paraquedista Aquilino Rodrigues Oliveira.
28Explosive Ordnance Disposal (Desactivação de Engenhos Explosivos).
29Entre Janeiro e Dezembro de 1996, a IFOR registou, no total, 52 mortos e 224 feridos.
30Além dos mortos, referidos no início do artigo, ficou ferido o Soldado Paraquedista Hugo da Silva Sousa.
31Além do já referido Primeiro-Cabo Aquilino Oliveira (24 de Janeiro), o Capitão Leite Basto ferido gravemente numa mão com uma mina “Gorazde” (17 de Março) e o Tenente Augusto Pinheiro, também ferido com gravidade na cara/olhos, com uma “PMA-3” (2 de Junho).
32Os segundos-sargentos Santos Oliveira e Paulo Dias, por acção de uma “PMR2A” (1 de Março).
33O Decreto-Lei n.º 233/96, de 7 de Dezembro, que aprovou o “estatuto dos militares em missões humanitárias e de paz no estrangeiro” foi publicado em Diário da República de 7 de Dezembro de 1996, “produzindo efeitos desde 1 de Janeiro de 1996”. Apesar das missões do Exército em Moçambique se terem iniciado em 1994, não tinha havido o cuidado de produzir e aprovar legislação específica para este tipo de missões. Outros documentos legais se seguiriam depois, como a relativa a seguros de saúde.
34Uma homenagem dos paraquedistas ao grande exercício anual da Brigada de Paraquedistas Ligeira do Corpo de Tropas Paraquedistas, entre 1979 e 1993.
35“A Informação Pública Portuguesa na «IFOR»/Bósnia”, Revista Militar n.º 1/2 – Janeiro/Fevereiro 1997 (páginas 69 a 119), artigo que escrevi por sugestão do Coronel Alberto Ribeiro Soares, Sócio efectivo da Revista Militar, o qual, antes da minha partida, teve a feliz ideia de me lembrar qualquer coisa como, “vai para uma missão nova, tome notas do que vir/fizer, recolha dados e depois escreva sobre o tema”.
36Secção de Informação, Protocolo e Relações Públicas do Gabinete do Chefe do Estado-Maior do Exército.
37Eu próprio, que tinha ido com esta incumbência genérica, além da colocação no Bureau Communication Information da DMN-SE, ser oficial de informação pública (PIO – Public Information Officer) da MFAP-IFOR e, nesse sentido, ocupar-me da ligação aos jornalistas e ser porta-voz da força, recebendo ordens, no TO, do SNR e de Portugal, do Chefe da SIPRP/GabCEME.
38Memorando n.º 5/96 “Relacionamento com os OCS na BiH”, de 13 de Fevereiro de 1996, recepcionado, em Sarajevo, em 16 de Fevereiro de 1996.
39Em finais de Março, ainda haveria alguma confusão na articulação entre o EMGFA e a Bósnia, com um episódio insólito. Chegou ao TO um oficial superior do Exército, colocado no EMGFA, em funções ligadas à informação pública, para preparar a visita do Primeiro-Ministro (30 de Março). Começou a contactar os jornalistas presentes e a tecer comentários estranhos sobre a situação no terreno e a força que mal conhecia, levando mesmo à publicação de notícias na imprensa sobre a situação. O CEMGFA determinou o seu regresso imediato a Portugal e a situação normalizou.
40Gomes, João Mira, “O Envolvimento Diplomático de Portugal na Bósnia-Herzegovina”, Nação e Defesa N.º 92 – 2.ª Série, Inverno 2000.
41Despacho conjunto A-25/96-XIII dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e das Finanças, de 14 de Março de 1996.
42Durante a maior parte do ano de 1996, as V-200 tiveram taxas de operacionalidade entre pouco acima de 50% e os 80%, e exigiram bastante esforço de manutenção, quer nas unidades quer no DAS quer das equipas de contacto, e abastecimento frequente de peças e lubrificantes, desde Portugal. Mesmo os UMM Alter, com entre 10 e 17 anos de vida, tiverem sempre taxas de operacionalidade acima dos 80%.
43Inicialmente, na Bósnia, também ainda tivemos que o fazer, nomeadamente em Kukavici. Recordo o olhar incrédulo do general francês comandante da Divisão, ao ver nesta localidade os nossos soldados a tomar banho numa destas instalações artesanais, rodeada de neve…
44E aqui, note-se, a exigência de adquirir os produtos químicos adequados, sem os quais o sistema não funcionava e chegava mesmo a congelar. Inicialmente, estas latrinas foram fornecidas sem estes químicos, porque quem as adquiriu julgou não serem imprescindíveis…
45Entre Fevereiro e final de Julho: 36 toneladas de encomendas e 26.900 cartas!
46Tendo esta legislação sido publicada, já em 2002, os militares que a ela se julguem com direito devem solicitar ao respectivo Ramo a sua atribuição. Decreto-Lei n.º 316/2002, de 27 de Dezembro, Aprova o Regulamento da Medalha Militar e das Medalhas Comemorativas das Forças Armadas.
47Não foi sem receios que muitos no Exército viram o CEME, General António Eduardo Queiroz Martins Barrento, determinar à BLI o aprontamento de uma força, o “Agrupamento Alfa”, para cumprir uma missão na Bósnia, em 1998.
48Mas, já anteriormente, a Força Aérea havia qualificado oficiais pilotos aviadores como FAC - Forward Air Controller -, alguns até no estrangeiro, sendo, no entanto, empregues apenas em exercícios em território nacional. Sobre este assunto ver "Tactical Air Control Party", do Tenente-general Piloto Aviador Mimoso e Carvalho, in "Mais Alto" n.º 450 - Abril 2021.
49É muito curioso que o CEMGFA se dirigisse directamente ao Comandante do Corpo de Tropas Paraquedistas da Força Aérea Portuguesa.
50A Directiva Operacional n.º 2/96 “Empenhamento Nacional no OPLAN 10405 (Joint Endeavour)”, foi apenas publicada em 27 de Março de 1996! Habitualmente, é este documento que dá origem à preparação da força, meses antes de uma missão, mas as circunstâncias desta foram o que já vimos.
51Antes de Vitorino, o primeiro político a visitar a missão havia sido João Soares, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o que terá irritado bastante o governo, e, ainda por cima, deu voz pública às deficientes condições em que as tropas viviam.
52Em declarações à imprensa, ainda em 9 de Março, o Almirante António Carlos Fuzeta da Ponte já tinha dito “(…) quem tem o comando operacional das forças portuguesas na Bósnia é o CEMGFA (…)” e comentava o jornalista “(…) no que parece ser um ataque ao protagonismo do CEME (…)”. Semanário, 9 de Março de 1996.
53Com a saída do Comandante do DL, Coronel Avelar de Sousa, evitavam-se assim problemas que nunca tinham acontecido, mas eram previsíveis com a nova estrutura de comando.
54“Creio sinceramente que o profissionalismo e o elevado brio com que os militares portugueses assumiram este desafio e desempenharam a missão demonstra, acima de tudo, a grande maturidade das nossas Forças Armadas e representa um assinalável ponto de viragem na sua preparação, por forma a continuarem a dar um contributo inestimável à sustentação da posição de Portugal no Mundo. É minha convicção de que este específico posicionamento de Portugal no Mundo contribuiu, de forma relevante, para o largo apoio que foi dispensado à nossa candidatura a membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 1997-1998”. António Vitorino “Nos Cinquenta Anos da NATO: Algumas Reflexões sobre a Operação de Paz na Bósnia-Herzegovina”, Nação e Defesa N.º 92 – 2.ª Série, 2000, Lisboa.