A mudança radical do método de fortificação medieval para o da idade moderna está ainda mal estudada quanto às origens, não porque haja falta de exemplos físicos, mas antes, porque, embora eles tenham sido bastante analisados, nada foi publicado sobre isso na época em que essa mudança estava a ter lugar, o que é compreensível, pois é coincidente com o início da actividade de Gutenberg. Isso não iliba da ausência da pesquisa de manuscritos em arquivo, e nos quási seis séculos que se lhe seguiram já poderia ter sido melhor divulgada.
A primeira área que está ainda mal estudada é a da principal causa: a mudança radical da artilharia de assédio. Não se põe em dúvida que os maiores responsáveis por isso foram os dois franceses – irmãos Jean e Gaspard Bureau – que ainda não mereceram uma exaustiva biografia, apoiada na documentação directa e indirecta da sua actividade, e só são mencionados em curtos artigos e referências passageiras. A substituição do ferro forjado por bronze fundido, como matéria prima das bocas de fogo, das munições de pedra por munições metálicas, e da pólvora em pó pela granulada, foram as modificações técnicas da artilharia francesa, que lhe permitiu rasgar todos os fortes e cidadelas (menos Pas de Calais) ocupadas pelos ingleses. A estratégia e táctica inerentes, que levou à expulsão destes do país, também é atribuível aos irmãos Bureau, e terminou com a Guerra dos Cem Anos, e a vitória da França.
Uma segunda área mal estudada, é a das primeiras tentativas para reforçar as antigas fortificações contra a surpreendente nova eficácia da artilharia de assédio (“de bater”, como depois se designou, para distinguir da “de campanha”). Depois de muitas urbes se terem esgotado a construir fortificações ainda no fim da Idade Média (como foi cá o caso no reinado de D. Fernando), tiveram pouco mais de um século depois de reforçá-las para resistirem à nova artilharia. Daí que uma das primeiras tentativas, para poupar tanto quanto possível, foi a da descarga de grandes massas de terra por detrás das muralhas que aumentava a reduzida espessura medieval – só que mesmo assim as muralhas eram rasgadas e as cargas de terra escorriam pelas brechas e serviam de rampa de penetração aos sitiantes. Isso implicou que se procurasse conter a terra de forma o mais económica possível com travejamento de madeira e vegetação.
Mas se a nova artilharia servia para “bater” sitiados, ela também servia para “bater” sitiantes. Só que eram necessárias posições de tiro de dentro das fortificações para lá colocar as bocas de fogo que pudessem atingir no exterior os alvos inimigos. Ora, torres e adarves eram de superfícies demasiado reduzidas para aceitarem material de maiores calibres – a primeira solução foi a da colocação das bocas de fogo sobre os montes de terra, mas isso não permitia o tiro de flanco, que era na defesa o mais eficaz. A solução foi o desenvolvimento dos “bastiões” que a isso se destinavam. O primeiro que sobre eles publica é Giovanni Battista della Valle – um comandante mercenário que andara pela Itália e Alemanha – no seu livro “Vallo Libro pertinenti a Capitani …”, publicado no mesmo ano (1521) que “L’arte della guerra”, de Maquiavel.
Porém, a um historiador não basta conhecer o que está publicado. Compete-lhe frequentar os arquivos para esclarecer através de documentos manuscritos os temas aos quais se dedica. Foi isso que fez o oficial do exército prussiano e notável professor de história da Academia Militar de Berlim, Max Jähns (*1837 †1900). Era originário duma família de académicos, que não de militares, mesmo assim, assentou praça com dezassete anos no 28º Regimento de Infantaria Prussiano, e lá foi promovido a alferes com vinte. Serviu no Regimento, mas, em 1866, primeiro ano da Guerra Interna Alemã, passou a prestar serviço de estado maior, que se prolongou até ao fim da Guerra Franco-Prussiana. Tal era, porém, a sua formação académica, e trabalho não oficial de pesquisa que, no posto de capitão, foi chamado, em 1872 para professor de História da Arte da Guerra na famosa Kriegsakdemie de Berlim1.
Max Jähns começara por publicar, em 1865, a história do seu Regimento nº 28. Mas, em 1872, publicou um tratado de tal forma enciclopédico2, que terá levado a direção da Kriegsakademie a convidá-lo para professor da cadeira de História da Arte da Guerra. Fora já precedido por seis diferentes professores, mas nenhum atingiu a duração de tempo em que ele a regeu; em 1886, no posto de tenente-coronel, passou por iniciativa própria à reserva. Entretanto, tinha publicado uma inumerável quantidade de obras valiosas, mas aquela em que mais se destacou foi publicada já na reserva. Trata-se da Geschichte der Kriegswissenschaften, vornehmlich in Deutschland (História das Ciências da Guerra, sobretudo na Alemanha), München/Leipzig 1889-1891 – é uma obra em três volumes, com um total de 2.915 páginas (tivemos a oportunidade há, alguns anos atrás, de adquirir uma edição fac-simile dos três volumes, no alemão de grafia gótica original, mas publicado, em 1966, em Nova York e Hildesheim. Desde que a possuímos, não abdicamos quási diariamente de a consultar, pois contém informações sobre o tema indicado no título, praticamente inexistentes em publicações da mesma área).
Terminadas as Guerras de Libertação da Alemanha – 1813-1815 – recomeça a reconstrução de fortificações que seriam inspiradas pelas gravuras e texto da obra do grande pintor renascentista Albrecht Dürer – Etliche underricht, zu befestigung der Stett, Schloß und Flecken (variada instrução para a fortificação de cidades, castelos e áreas), conforme nos informa o notável historiador de arte e museólogo Wilhelm Waetzoldt, o qual também refere que um dos que analisa essa influência é exactamente Max Jähns3. É natural que, atendendo à indirecta relação inicial do artista Dürer com a fortificação, este investigador da arte da guerra tenha feito pesquisas para encontrar influências que para ela tenham levado Dürer (*1471 †1528), ainda no século XV. Este publicou o seu tratado – o primeiro sobre fortificação da Idade Moderna –, um ano antes de morrer, e nele o início é exactamente dedicado a “bastiões”. Ora, numa pesquisa nos arquivos de Heidelberg, Jähns encontra também um primeiro manuscrito, datado de 1480 e dedicado também aos “bastiões”. O autor estava identificado como Hans Schermer e o texto era em alemão pré Hochdeutsch (alto alemão), o saído da linguisticamente unificadora tradução da Bíblia de Lutero, impressa em 1534. Mesmo atendendo à dificuldade paleográfica, Jähns soube interpretá-lo e compreender embora com dificuldade os grosseiros desenhos originais do manuscrito (figuras 1, 2, 3, 4). Para melhor entendimento, incluiu desenhos da sua responsabilidade (figuras 5, 6, 7) que permitem entender os “bastiões” de Schermer, e a semelhança dos das gravuras de Dürer com eles.
Embora Max Jähns já tivesse referido os textos na sua História da Ciência da Guerra, em 1889, para os divulgar ainda mais publicou, em 1891, no nº 98 da revista Archiv für Artillerie- und Ingenieuroffiziere des deutschen Reichsheeres, o esclarecedor artigo cuja tradução em português empreendemos. Esta nossa é aparentemente a primeira tradução jamais feita em qualquer língua, e, embora em 1967, um artigo de Christa Hagenmeyer se lhe refira na revista belga de filologia Leuvense Bijdragen4, mais nenhuma referência encontramos em recentes publicações sobre fortificação ou história de arte. Um bom exemplo desta ignorância é a obra colectiva La genèse du système bastionné en Europe, publicada, em 2014, pela Universidade d’Aix – Marseille e pelo CNRS, que tendo como objectivo exactamente este tema, não contém nenhuma referência ao artigo de Max Jähns. Este alheamento da historiografia militar alemã estende-se, para além da militar, a muita da outra5.
XXVI
Hans Schermer e a arte de fortificação cerca de 1480 – de Max Jähns a acrescentar, uma página de gravuras (figuras 1 a 8) in Archiv für Artillerie- und Ingenieuroffiziere des deutschen Reichsheeres, 98/1891 págs. 545-555
A mais antiga nota de instrução sobre a regular forma de fortificação contra o uso de armas de fogo, que jamais até agora fora conhecida, foi o manuscrito de Hans Schermer por mim descoberto em Heidelberg e divulgado na minha “História da Ciência da Guerra” (I, Munique 1889, pg.431 e ss.). Na altura expus um fac-simile dos desenhos de Schermer bem como a minha tentativa para divulgar uma reconstrução das suas referências, o que terá lugar no que se segue. De facto, no que respeita ao texto, não posso acrescentar mais ao que até agora já comuniquei, pois o que Schermer exprimiu em palavras já se encontra na minha “História da Ciência da Guerra”, onde também identifiquei a sua posição histórica e expus o estado em que se encontrava a arte de fortificação no seu tempo, e assim sou só capaz de o repetir, porque essencialmente o acho o mais exaustivo; mas primeiro que tudo a fiel reprodução dos desenhos de Schermer e o meu esclarecimento ilustrado deles, deverá tornar totalmente compreensível este alta – e notavelmente original documento sobre a moderna fortificação.
O aparecimento das bocas de fogo abalou o sistema de construção de defesa, o qual se mantivera em metódico imobilismo durante o século XIV, e desde meados do XV começara a preocupação com a eficácia da artilharia, influenciando de forma determinante a actividade do empreiteiro de construção militar. Começaram-se a fortificar de novo as velhas cidades, e reconheceu-se como problema a solucionar o seguinte: ao manter total segurança contra o trepar pelas escadas de assalto, havia que permitir também uma eficácia arrasadora às bocas de fogo. Quando isso se pretendia, não se podia falar particularmente de colocar estas nas torres, como fora o hábito até então; o adarve das muralhas era contudo demasiado estreito para dar espaço aos grandes calibres. Não se tentava agora alargar simplesmente o topo das muralhas mas, dado que se descarregava terra encostada a elas, criava-se assim uma passagem por trás da qual se podia disparar a boca de fogo. Um tal “Schütte” [descarga] permitia assim recuperar uma parte da segurança, que só a muralha não podia mais prestar, contra a violência das novas bocas de fogo, e por isso os franceses passaram a designar por remparer – ou seja, por parer à nouveau – a descarga de tais montes de terra, donde se lhe derivou a designação de rempart (muro). Não era raro não encostar este muro às muralhas da cidade, mas antes deixar em vez disso entre estas e os montes de terra um espaço livre a que se chamava “passagem”. Assim se obteve nos montes o desejado espaço de colocação para a boca de fogo, e quando as muralhas não estavam directamente reforçadas, possuía-se mesmo assim por trás delas, mesmo depois de serem derrubadas, uma segunda defesa – assim lhes estava dado o sentido apropriado da palavra remparé.
Por muito que tal ordenamento satisfizesse também em puro sentido de fortificação, era porém pouco suficiente para o artilheiro; de facto, a boca de fogo colocada na altura da passagem não tinha qualquer possibilidade de fazer tiro rasante sobre alvos próximos, e a grande consequência disso começou a ser confirmada progressivamente nos anos subsequentes. Por causa disso a descarga de terra passou a alterar-se muito mais frequentemente, de uma interior para uma exterior: o assim chamado “Niederwall” [muro baixo] ou então (com uma designação que antigamente se utilizava) fossae bracchia6. Isto teve lugar através de uma configuração do até aí denominado “Zwinger” [barbacã]: antes do baixo muro ou estacada que a fechava para o exterior, abriram um fosso profundo, encheram com terra o espaço da barbacã até à altura do seu encerramento para o exterior e concretizaram assim uma descarga externa, donde preferencialmente se fez a proteção das bocas de fogo. A parede exterior ou estacada da barbacã constituíram agora também a escarpa do fosso, e o muro baixo (fausse braie) foi ultrapassado em altura pela muralha principal. – Não demorou muito até que se pusesse o Niederwall [muro baixo] agora também em ligação com estruturas flanqueadoras na qual se colocaram baterias salientes em vez de o fazer nas velhas torres, estruturas que agora não eram de pedra, mas de madeira (“Bohlen”), de ramagens e terra, e que por isso foram preferencialmente designadas por “Bohlenwerk, Bohlwerk” [construções de pranchas de madeira] – (em italiano por baluardo, em francês por boulevard), ou então por Bastei [bastião – em italiano bastia, bastione, em francês bastille)7.
Contudo, a potência crescente da artilharia não levou só à concepção do flanqueamento, mas por então também à escarpa (parte oblíqua do muro [n.trad.]) que até ao tempo fora praticamente só um obstáculo passivo, para dar mais eficiente capacidade própria. Isto só foi possível através do erigir de construções côncavas, e quando se quis utilizar as semelhantes, logo em seguida foram para isso aconselháveis os bastiões, os quais, pelo facto de terem recebido as bocas de fogo não só nas suas plataformas, mas também em pisos inferiores, conseguiram para estas um fogo reforçado e rasante de flanco. Por esse motivo as baterias de casamata aparecem primeiro de preferência nos baluartes (Bohlwerken) e nos bastiões.
Onde finalmente se tratasse de totalmente novas construções, foi aconselhado desistir da construção de muros e a cerca defensiva ser constituída só por descargas de terra e bastiões: um procedimento que se tornou especialmente aconselhável para terras baixas pobres em pedra, como a Alemanha do norte e a Lombardia.
Sobre o estabelecer de tais fortificações resultantes da utilização regular de bocas de fogo, mas sobretudo com a forma e feitio que os baluartes (Bollwerke) ou bastiões, estruturas de guerra compostas de terra, traves e mato assumiam, ensina-nos o manuscrito mencionado na Introdução do Códice Palat. Germ. 562, o qual, por razões internas e externas terá sido escrito no último quartel do séc.XV.
O manuscrito8 está encadernado numa decrépita capa de pele de porco com a meio safada apresentação: “Para espingardar e construir”. As páginas 1 até 5b contêm o opúsculo que aqui nos interessa sobre a construção dos bastiões. Seguem-se muitas páginas sem número. Com a página 6 dá-se início a um “livro de fogo”, que até à página 12b contém vinte e seis instruções alemãs para a produção de pólvora e explosivos. Completa-se até à página 50 com receitas de carácter medicinal, mágico e erótico. Na página 51 o autor inicia instruções artilheiras para o “carregamento de uma boca de fogo com virotões”; mas são retiradas ao fim de 4 linhas, e o remate do livro é constituído por uma rima com uma “querida mulher”.
A obra sobre a construção do bastião consta de uma curta introdução e de quatro ilustrações desenhadas com algumas palavras esclarecedoras9. A introdução é a seguinte:
“Se se quiser construir protecção à volta de cidade ou castelo, que seja segura, designa-se a amostra inicial rodeando a porta por bastião. Seguem-se compridas descargas de terra, segue-se uma elevação, segue-se de novo uma descarga, segue-se depois outro bastião na cerca de uma cidade ou castelo. O início deve ser elevado com erva repetida duas vezes uma sobre a outra, e deve descarregar terra atrás da erva, e deve colocar sobre a terra ondulação de erva, estas ondulações devem estar por trás e pela frente, e por trás da descarga de terra deve estar uma grande cerca com duplas tábuas cruzadas, à frente da cerca e por trás da descarga de terra, e as canhoneiras devem ser todas de carvalho no comprimento, estreitas através das descargas de terra à frente, atrás (ou seja dentro) largas. Assim armo eu hanns schermer”.
Não se pode afirmar que Hans Schermer se tenha exprimido de forma compreensível nestas contradições, e também que os seus rudes desenhos com poupadas explicações não brilhem de forma nenhuma claramente. Ele tenta unir desenhos da base e da elevação, mas não no sentido de uma perspectiva do cavaleiro, antes numa forma curiosa e inconsequente. A primeira gravura dá uma espécie de vista conjunta daquilo que mais tarde se designou por uma “Frente” fortificadora, ou seja, uma secção da cerca de um bastião para o outro (figura 1).
Por baixo da parte média da mesma (portanto, debaixo daquilo que mais tarde se chamou cortina) lê-se:
“Isto é uma descarga (de terra) de um bastião para o outro, em cima uma estacada contra a descarga de terra, também um “ouriço” e a descarga. Item entre ambos os bastiões deve calhar um monte, sobre o qual se combate o sitiante a uma cidade, com o canhonaço sobre o monte”.
Por baixo de um bastião encontra-se:
“Item isto é um bastião, que tem por baixo XXXV pés, através dos quais as canhoneiras, e a sebe com tábuas cruzadas e um “ouriço” à volta do bastião em cima”.
Por baixo do outro bastião encontra-se:
“Item isto é o outro bastião entre as descargas, está comprovado”.
A segunda gravura traz a apresentação especial de um só bastião (figura 2).
“Item isto é um bastião com quatro aberturas sobre outras quatro. Pois já sempre com 4 sebes (se “zeun” significa Zäune [sebes]) no interior como com tábuas cruzadas e um “ouriço” como nele acima se encontra”.
Ambas as outras figuras trazem pormenores; o mais importante é a apresentação de duas “janelas de correr num bastião”, das quais têm uma XXX pés, a outra XX ou XXX pés de comprimento (figuras 3 e 4).
Além disso são ainda desenhados “ouriços” e “estacas” para as paredes de tábuas cruzadas. Quer dizer que:
“Item uma estaca na terra junto às tábuas cruzadas” (figura 3c). “Junto ao “ouriço” um tronco pontiagudo e com X pés de comprido” (figura 4a). “Item tábuas cruzadas numa sebe junto ao bastião” (figura 4b) e “Item uma estaca no caixote de tábuas cruzadas com cinco pés de comprido (figura 4c).
A imagem que, por observação mais minuciosa, se obtém dos desenhos e notas de Schermer, é a figura 5.
– A base da sua fortaleza é um polígono, em cujos vértices bastiões moderadamente salientes provavelmente também servem de portas de armas. Entre os bastiões distendem-se as “descargas [de terra]” (as cortinas), em cujo centro se eleva um “monte” (cavaleiro de cortina) [c] de onde a eficácia do tiro se deve preferencialmente verificar. (“um monte, sobre o qual o cerco a uma cidade se defende com a arma de fogo nesse monte”10). O fosso [d], que se encontra antes desta cercadura não está revestido exteriormente. Para o interior toda a fortificação está fechada pela mais forte cerca [Fig. 1 a] – Entre a escarpa e o pé do muro encontra-se uma larga berma com “ouriço” (Fraise). [figura 1b); figuras 5e e 6e]. Da berma elevam-se as descargas de terra cobertas com erva numa suave inclinação, os bastiões contra, à mesma altura (35’) que as cargas de terra como construções verticais na cerca (Bundwerk, “zeun”), ou seja madeira, ervas, terra, faxinas e estrutura de vime, cuja utilização mista (fortes troncos acorrentados) têm mesmo de permitir a construção vertical. Esta é, porém, condicionada pelos espaços vazios disponíveis para os bastiões. Cada bastião [figuras 6 e 7] mostra, nomeadamente, quatro “Wer”, ou seja quatro fileiras por cima umas das outras de orifícios para as bocas de fogo, cada fileira com quatro ou cinco canhoneiras. E de facto a fileira inferior com canhoneiras forradas com pranchas de carvalho fica no horizonte que coincide com a altura das bermas exteriores e do pátio dos bastiões; a segunda fileira fica ao nível de 10 pés das mais elevadas bermas interiores; na terceira fileira as bocas de fogo só podem ser elevadas (como aquelas que iconografias concomitantes frequentemente apresentam), e os serventes só lá podem chegar por escadas. A quarta fileira de canhoneiras está ao nível do forte parapeito do passadiço. De facto só por ambas as fileiras superiores é possível a colocação de canhoneiras flanqueantes; pelas inferiores impede-o o escarpado das descargas. De resto a expressão “Scharte” não parece própria para estas colossais seteiras; trata-se mais de galerias ou casamatas, que atravessam completamente o corpo dos bastiões, ou seja, passam de dentro para fora, de fora para dentro retiram em altura e largura (para a frente estreita, para trás larga). Nelas estão as bocas de fogo com os seus serventes, e ao nível do terreno servem também como passagens de portal (“a porta dos bastiões”), às quais, diante de um ou outro dos bastiões possivelmente uma ponte levadiça conduz. Havendo aí um grande perigo de ataque livre, as canhoneiras de ambas as fileiras inferiores, tão cedo não tenham armamento serão fechadas, e assim de forma muito invulgar e por isso tanto mais sólida; de facto não com cargas ou portas de canhoneiras, mas com enormes “janelas de correr” [figura 3a e b; figura 7a], as quais a galeria em comprimento, ou seja, de dentro para fora, totalmente enchem, sendo compostas de fortes árvores de haste alta. O seu comprimento corresponde no piso inferior a 30, nos seguintes de 20 a 30 pés. Esta desconcertante instalação parece-nos tanto mais estranha, quanto as plataformas inferiores das bocas de fogo de facto são tidas em conta preferencialmente para o combate próximo, as “janelas de correr” para dentro e para fora como defesa artilheira das casamatas peculiares mas de qualquer forma não requerem consumo de tempo.
É evidente que nesta configuração muito não é prático, e eu ficaria muito grato se fosse possível uma sapiente construção militar que obtivesse das sugestões de Schermer uma mais vantajosa e viável reconstrução do que a que eu consegui. Pode-se de qualquer forma obter estímulo dos detalhes: os grandes e típicos traços das construções militares de Schermer são de facto os mesmos que pouco depois Dürer e não menos a “velha escola italiana” adoptaram. Pois tanto a fortificação de cidade desta escola como a de Dürer pertencem mesmo de forma idêntica à maneira de Schermer “construir protecção à volta de cidade ou castelo” à sistema poligonal; tanto numas como noutras os Bastione (bastiões) são caponnières de bocas de fogo; tanto numas como noutras, falha a tarefa aos “cavaleiros das cortinas” (montes) de dar golpes para o exterior. Também a tentativa de com a escarpa através da construção côncava obter a dupla virtude para uma construção de obstáculo e defesa activa, encontra-se não só em Dürer mas também nos italianos tais como Bonacorso Ghiberti (cerca de 1490), Francesco di Giorgio-Martini (1500) e Gianbattista della Valle (1517). Também este último na Alemanha muito viajado comandante de mercenários se tornou na Itália o próprio professor da “Arte de bastionar”; desesperadamente aconselha ele, em explícita oposição às construções em pedra, a utilização de bastioni compactados por faxinas derrubadas e esqueletos de entremeadas traves assentes sobre o solo. Constrói-os tanto quadrados como redondos, instala duas casamatas sobrepostas e um parapeito para bocas de fogo ao ar livre, e apresenta-se também totalmente como representante daqueles exactamente mesmos princípios os quais, cerca de uma geração antes, Hans Schermer tinha proposto. Os dados de della Valle são de facto convenientes para lançar alguma luz sobre as demasiado limitadas formas de construção de tais bastiões por Schermer, e por isso deixo eu aqui a correspondente parte dos originais italianos juntamente com os desenhos que lhes dizem respeito [figura 8].
Às palavras de della Valle junto eu (em ANEXO), por causa da sua estranheza, aquela germanização associada, que Jacob de Zetter em uma por ele em 1620 publicada “Arte da Guerra e da Artilharia” incluiu, e da qual resulta que já para Zetter parecia impossível designar com a expressão “bastione” algo diferente da projecção pentagonal da muralha principal, obrigatória no seu tempo; ele traduz por isso “bastionne quadro” por “Damm” (dique); “bastione tondo”, mas também como “parapeito redondo ou cesto-trincheira”! – De certa forma é della Valle francamente culpado desta confusão, na medida em que nomeadamente sob o título de “Modo de fare Bastioni quadri” não discute a arte de preparação de bastiões, mas só as vantagens gerais da construção em madeira sobre a construção de pedra, enquanto que a “arte de bastionar”, ou seja a construção em madeira como tal, que de resto para bastiões redondos como para bastiões poligonais é no essencial completamente a mesma, expõe sob o título de “Modo de fare uno Bastione tondo”. Este “modo di fare bastioni“ de della Valle fornece um valioso complemento ao manuscripto com desenhos de Schermer. De facto, o texto não é de forma nenhuma claro; mas ensina tanto, e os desenhos em anexo confirmam-no, que nos bastiões de Valle como nos “Pasteyen” (bastiões) de Schermer, se trata dos mesmos materiais e essencialmente da mesma construção. Os bastioni estão previstos com casamatas em dois pisos e com um terraço superior sem cobertura; as bocas de fogo disparam através de canhoneiras, que estão interiormente forradas com pranchas – o que é totalmente o caso com Schermer.
Tanto quanto se pode compreender, della Valle quer as suas construções auxiliares localizadas independentes das velhas muralhas, que constituem assim um tipo de segmento geral por trás de uma linha de fortes avançados – um formato no qual o princípio de fortificação medieval, e o moderno, não estão tão ligados em técnica de construção, mas sim muito mais tacticamente.
Do ponto de vista técnico, os italianos claramente serviram-se muitas vezes como exemplo de construções alemãs de defesa, as quais usavam como modelo o sistema de Schermer. Isso é mostrado não só relativamente a della Valle, mas também numa gravura de um corpo de casamata produzido tipo cesto, de vime e terra, que se encontra na “Escola de Arquitectura e Plástica” do jovem Ghiberti (manuscrito da Galeria dos Ofícios de Florença). Este apoio num modelo nórdico parece tanto menos notável, quanto depois de 1521, Maquiavel, no sétimo volume da Arte della guerra, com raiva clama: “Sempre de novo explico que as antigas matérias da guerra, esquecidas de todo o mundo, na Itália desapareceram completamente. Se ainda se encontra alguma vez algo de utilizável, então temos que agradecê-lo aos povos para além dos Alpes”.
Della Valle Modo di fare Bastioni quadri con soi pertinentie Questo e modo de Bastione quadro com le soe chiane e candonere con doe casematte, el quale bisogna Como e stato ditto che sta al sapere murare le sue manocchie, et calcarli como per l’altro e detto, et facendose como conviene et con larte et intendimento pertinente ad epso sera de gran perfettione. Et piu e da sapere che li bastioni son trovati per molti boni respeti, prima son piu espeditivi alla guerra che Muro, et se reseccano piu presto chel muro, et mancho spesa, et anchora resisteno piu ad colpi de artellarie, et piu securo di faville de pietre che non e cossi el muro, che quando non si po pui resistere ale botte, et muro fa piu dando le pietre de epso muro ad li Militi che la pietra del candoner, o altro pezo, quello che non fanno el riparo, prendendo el devere, che quando si fa uno riparo e prohibito che el terreno che ui metiate che non li sia pietre ni suna che quando la palla del nimico uiene, et troua pietre al riparo lo disfa piu presto et le pietre che usisce fora amaza glie militi che stanno al combattere. | De Zetter Lançar uma defesa quadrada e o que lhe pertence As defesas são nos assédios úteis para muitas coisas: Primeiro, em vez de uma muralha, têm muito mais baixos custos de construção, são muito mais rapidamente erigidas e rapidamente secas. Já para não dizer que resistem muito melhor à violência dos projecteis que as próprias muralhas; como as pedras destas são rebentadas com os disparos, os soldados sofrem mais vezes com as lascas estilhaçadas, que com as próprias munições. Como os rasgões são produzidos pelos disparos, nestas defesas podem ser muito mais rapidamente colmatados e completados. |
Modo di fare Bastioni quadri con soi pertinentie Questo e modo de Bastione quadro com le soe chiane e candonere con doe casematte, el quale bisogna Como e stato ditto che sta al sapere murare le sue manocchie, et calcarli como per l’altro e detto, et facendose como conviene et con larte et intendimento pertinente ad epso sera de gran perfettione. Et piu e da sapere che li bastioni son trovati per molti boni respeti, prima son piu espeditivi alla guerra che Muro, et se reseccano piu presto chel muro, et mancho spesa, et anchora resisteno piu ad colpi de artellarie, et piu securo di faville de pietre che non e cossi el muro, che quando non si po pui resistere ale botte, et muro fa piu dando le pietre de epso muro ad li Militi che la pietra del candoner, o altro pezo, quello che non fanno el riparo, prendendo el devere, che quando si fa uno riparo e prohibito che el terreno che ui metiate che non li sia pietre ni suna che quando la palla del nimico uiene, et troua pietre al riparo lo disfa piu presto et le pietre che usisce fora amaza glie militi che stanno al combattere. | Erigir uma defesa redonda ou de cesto e com elas proteger a boca de fogo e os seus serventes Da mesma forma serve a defesa redonda ou de cesto, o local, pois exige a edificação segundo um custo, com as suas vigias e com uma ameia e um parapeito como previstos para uma muralha. Mas para produzir os mesmos são precisos os troncos usados, cuja espessura não pode ser maior que a dum braço e devidamente dobrados, atados pelo meio e também entrelaçados e como que emparedados, saindo em conjunto dobrados. Realizado isto lança-se terra para as sebes, que se enchem, e depois se pisa totalmente com um pesadelo pisador, cobre-se de novo com uma camada de erva e em seguida com terra sólida, e não se deixa de as fechar. Onde no entanto peças de maior calibre e outras bocas de fogo forem colocadas, tem de se forrar de madeira em todos os lados e, quer no espaço cruzado quer em altura, deixar bastante espaço, em cima enfiar sebes e terra, tudo o que melhor se possa montar, quando se estiver lá e se deixar fazer. |
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* “Hans Schermer und die Befestigungskunst um 1480” (por mim traduzido “Hans Schermer e a arte de fortifificação cerca de 1480”), publicado no periódico Archiv für Artillerie- und Ingenieuroffiziere des deutschen Reichsheeres (Arquivo para oficiais de Artilharia e Engenheiros do Exército do Reich), n.º 98/ano de 1891, págs. 545-555, como vem (sem o título alemão), na pág. 218.
1 Schwertfeger, Major-General Bernhard Die grossen Erzieher des deutschen Heeres – Aus der Geschichte der Kriegsakdemie (Os grandes educadores do Exército Alemão – Da história da Kriegsakedemie [Academia de Guerra]), Potsdam: Rütten & Loening Verlag, 1936, p. 141.
2 Ross und Reiter in Leben, Sprache, Glauben und Geschichte der Deutschen (Montada e Cavaleiro, na vida, linguagem, crença e história dos alemães), Leipzig: Verlag von Fr. Wilh, Grunow, 1872, 2 vol.
3 Waetzoldt Dürers Befestigungslehre (A instrução de fortificação de Dürer), Berlin: verlegt bei Julius Bard, 1916 pgs. 10/11.
4 Que nos foi gentilmente enviado por Sandra Vervynck, bibliotecária da Universidade de Gand. A coleção de gravuras aqui reproduzidas também foi gentilmente enviada à Biblioteca do Exército pelo Zentrum Informationsarbeit der Bundeswehr – Strausberg.
5 Brito, Pedro de “O patriciado urbano na recente historiografia alemã” in Revista da Faculdade de Letras (do Porto), II Série, Vol. IX, 1992, pp. 319/20.
6 Tito Lívio e Suetónio usam a palavra. Bracchia significa o antebraço, ou seja “as pinças de caranguejos e escorpiões”. Fossae brachia pode, de facto, traduzir-se directamente como “pinças de caranguejos”.
7 Bastone (bâton) é um cajado; bastire (Bâtir) quer dizer construir, ou seja erigir originalmente estacas de madeira. Bohlenwerke e Stockbauten designam-se assim tais estruturas correspondentes a esqueletos de madeira, que mantém as construções estáveis. Ambas as designações, “Bohlwerk” e “Bastion”, só no séc. XV se tornaram geralmente válidas. De facto Littré já encontrou bastio num documento provençal de 1238; mas só na guerra entre ingleses e franceses, especialmente diante de Orleans (1428), é que as bastilles se tornaram universalmente conhecidas. A partir de então o seu nome foi germanizado em “Bastei” (de resto o nosso “Bast” significa também no vernáculo “madeira”, especialmente de ulmeiros e tílias).
8 Este notável manuscrito foi até agora completamente desconhecido.
9 Inseridos foram no meio do texto de ensaio da fortificação dois desenhos de carros de luta e alguns pormenores sobre a distribuição dos mesmos no fortim de viaturas.
10“Opor-se a um acampamento à volta de uma cidade” significa resistir aos trabalhos de preparação de um cerco.
Mestre em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Além de história social e económica dos sécs. XVI e XVII, tem-se dedicado à investigação da história militar em duas áreas bem definidas: os oficiais britânicos da Guerra Peninsular, a Revolução Militar e as Artes Militares quinhentistas.