Nº 2631 - Abril de 2021
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Hospital Militar do Porto, mais de 150 anos de história
Tenente-coronel
Raquel Santos

No próximo dia 22 abril de 2021, completam-se 159 anos desde o assentamento da primeira pedra deste lindo edifício histórico, localizado em pleno coração da cidade do Porto. Em jeito de comemoração e homenagem à sua mais recente colaboração nesta “guerra” contra a pandemia, o presente artigo tem como objetivo partilhar convosco um pouco sobre o percurso do apoio sanitário, prestado pelo Hospital Militar do Porto, aos portugueses, ao longo dos seus mais de 150 anos de existência.

Proponho-me, primeiro, fazer um enquadramento histórico da organização do apoio sanitário aos militares efetuado pelos hospitais existentes na cidade, anteriores ao surgimento do Hospital Militar do Porto (princípios do século XIX), e depois, faço uma resenha dos acontecimentos sobre o mesmo.

O início do século XIX foi um período de intensa atividade militar na cidade do Porto (invasões francesas, guerra peninsular, guerra civil) e, como consequência, uma maior necessidade de apoio sanitário ia surgindo à medida que o esforço da guerra aumentava. Antes da construção do Hospital Militar do Porto, durante os finais do século XVIII e inícios do século XIX, o apoio sanitário prestado aos doentes militares da cidade do Porto, bem como os de toda a região norte do país, era efetuado em instalações improvisadas e provisórias, não construídas para esse fim, mas que eram ocupadas e adaptadas, às quais chamavam hospitais.

Na cidade do Porto, sabe-se da existência de hospitais militares desde 1808. Os mais importantes foram os seguintes (esquema 1):

– Hospital de S. Bento da Vitória, instalado no Convento de S. Bento dos Frades, às Taipas. Foi utilizado como hospital militar desde a 2.ª invasão francesa e durante toda a guerra peninsular, estando em funcionamento entre 1808 e 1832. Este hospital foi totalmente destruído pelos absolutistas durante a guerra civil;

– Hospital de S. Francisco, localizado no centro histórico do Porto. Entre 1810 e 1822, foi utilizado como hospital militar pelas tropas portuguesas. Em 1932, durante a guerra civil, foi novamente requisitado e, em 1833, no final do cerco do Porto, um incêndio provocado pelo tiroteio miguelista destruiu parte das instalações;

– Hospital de Santo António da Cidade, instalado no Convento de S. António da Cidade, no Campo de São Lázaro, durante o ano de 1809, foi usado como hospital por tropas francesas e depois por tropas portuguesas;

– Hospital de São João Novo, instalado no Convento de São João o Novo, foi requisitado pelo General de Brigada Comandante da Praça, em 1809, durante a guerra peninsular, para instalação de militares doentes e feridos vindos de Valença. Em 1832, voltou a ser utilizado como hospital militar e, depois do final da guerra civil, foi o único hospital destinado para militares que ficou a funcionar, até 1861 (Reis, 2004, pp. 23-30).

Esquema 1 – Integração temporal dos Hospitais Militares do Porto, durante o século XIX.

 

Efetivamente, cada vez era maior a perceção que seriam necessárias instalações próprias e mais adequadas para a prestação de cuidados de saúde às tropas. Na Carta de Lei n.º 8 de 18 de abril de 1854, sendo regente do reino D. Fernando, pai do ainda menor D. Pedro V, é autorizada a edificação de um hospital militar, na cidade do Porto.

D. Pedro V era muito jovem, tinha apenas 16 anos, aquando da sua ascensão ao trono português. Naquele tempo, Portugal foi flagelado por duas epidemias, uma de cólera (1853-56), e outra de febre amarela (1856-57). O monarca era conhecido por ter valores sociais bem presentes e, nomeadamente, por percorrer os hospitais e demorar-se à cabeceira dos doentes, o que lhe trouxe muita popularidade.

Em 24 de novembro de 1860, o rei D. Pedro V visitou o Convento de S. João o Novo, que estava a ser utilizado como Hospital Militar. Segundo testemunhos, o rei escreve as suas impressões da visita numa folha simples de papel: “Visitei o hospital no dia 24 de Novembro de 1860 e satisfez-me o zelo com que a direcção combate as dificuldades pelas deficiências do local e pela escassez dos recursos” (Carmo, 2012 cit. por D. Pedro V, 1860, p. 6). Supõe-se ter sido durante essa visita que o rei tomou a decisão de mandar construir um hospital militar de raiz, que assegurasse a melhor assistência aos militares do norte do país. Enquanto tal não aconteceu, decidiu-se transferir o hospital militar do Convento de S. João Novo para a Quinta do Melo, às Águas Férreas, que pertencia à Viscondessa de Vieiros e onde se manteve até 1869.

Realidade interessante é que, apesar de o hospital receber a denominação e nome do seu rei patrono, este nunca teve a oportunidade de visitar as suas instalações. O jovem rei D. Pedro V falece no ano de 1861, de febre tifóide, com apenas 24 anos. Sucede-lhe o seu irmão D. Luiz, que toma as medidas necessárias à concretização da vontade expressa pelo seu antecessor. Para tal, promulga, a 19 de abril de 1862, a Ordem do Exército n.º 7, onde ordena que este receba a denominação de Hospital Militar de D. Pedro V.

O Visconde de Sá da Bandeira era ilustre figura da época, a quem a cidade do Porto, provavelmente, traria algumas memórias vividas, sobre a necessidade de adequado apoio sanitário às tropas. Pois, no decorrer da guerra civil, havia perdido o braço direito em combate, no Alto da Bandeira, em Vila Nova de Gaia. À data, era Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, e é ele que principia as diligências para dar início à construção do referido hospital. Tais diligências não terão sido fáceis. Existiam, à época, vários exemplos de litígios da Câmara do Porto com o Exército, nomeadamente, conflitos por intermédio de embargo de obras nas unidades militares e há correspondência no Arquivo Histórico Militar que comprova esse facto.

O local escolhido para edificar o hospital foi “em campos situados entre a Boavista e a então Rua das Valas. Um deles pertencia a Ana Esganada, com 80 a 90 metros de testeira, sitio no princípio da Avenida da Boavista, onde assenta o corpo principal do edifício. Outro, era uma fracção do Campo das Pardelhas e outro ainda era uma parte do Campo da Consorte, nas Valas... Estes terrenos foram comprados (escritura de 15 de Março de 1862) por um conto e setecentos mil réis” (O Tripeiro, Série VI Ano X, p. 297). Outras parcelas viriam a ser compradas mais tarde. A escolha do local, não foi deixada ao acaso, “foi a mais feliz que se poderia desejar. A longa rua da Boa Vista, que há de ser em pouco tempo a melhor e mais formosa da cidade, tem terrenos que corta condições sobremaneira apreciáveis para toda a espécie de contrucção, em que se quizer obter a proximidade da povoação, sem os inconvenientes que andam ligados ás acumulações de povoado… o terreno eleva-se sobre a cidade, que domina em parte, e por duas maneiras se afasta das margens do Douro, centro dos maiores nevoeiros… O estudo das proximidades foi feito cautelosamente. Não existia nem existe n’ellas estabelecimento algum industrial de espécie por qualquer modo nociva ou incommoda. A vegetação não falta por todos os lados” (O Escholiaste Medico, 1869).

No dia 22 de abril de 1862, sob cerimónia com grande solenidade, foi assente a primeira pedra, data essa ainda hoje festejada anualmente na unidade. Na cerimónia compareceram as mais altas individualidades da época. Num jornal da altura, surge uma descrição deliciosa da cerimónia: “Foi hontem a inauguração do novo hospital militar, que se vai construir-se nesta cidade… o campo estava demarcado por mastros com bandeiras… a um pavilhão armado no centro do campo, onde estavam cadeiras para as pessoas… e a do poente do mesmo pavilhão ao Cabouço onde devia ser depozitada a pedra fundamental, … e logo, benzida a pedra fundamental pela autoridade eccleziastica… foi a dita conduzida em uma padiolla… até ao sítio onde devia ser lançada… Collocada a pedra no Cabouço… foi o snr, general Ferreira firmal-a com algumas pancadas dadas por um martelo, e argamassal-a com uma colher… fazendo em seguida o mesmo exm.o general um discurso aluzivo ao acto que se praticava, findo o qual entou os vivas a El-Rei D. Luiz e D. Fernando e à carta constitucional… Dentro do campo, achavam-se… um grande número de pessoas não convidadas, sobresahindo por entre a multidão, que alli se achava, algumas senhoras que com a sua presença foram abrilhantar aquelle acto” (O Jornal do Porto, 1862). Pela descrição, a dita pedra teria 80 centímetros quadrados e foram precisas 24 pessoas para transporta-la durante o evento. Tinha também as seguintes inscrições em latim transcrito para português, de um lado: “Hospital Militar, debaixo do título do rei D. Pedro V, governando Portugal D. Luiz I, edificado no ano de 1862”; na outra face: ”Este hospital por decreto de 22 de Março de 1862 tomou o nome nos faustos auspícios de D. Pedro V, príncipe óptimo pela sua exímia solicitude à memória dos vindouros”. O ato solene termina com grande pompa e circunstância da seguinte maneira: “Apenas lançada a pedra no Cabouço foi anunciado aquelle acontecimento por uma girandola de foguetes, e as baterias da serra do Castello da Foz salvaram com 21 tiros cada uma” (O Jornal do Porto, 1862).

Em tempos passados, tentei fazer uma investigação relativamente ao paradeiro da pedra fundamental. Comecei pelo mais óbvio, uma visita minuciosa as fundações subterrâneas do hospital. Não a tendo encontrado, e pensando que talvez esta tivesse sido removida para outro local, efetuei diligências e contactos com engenheiros militares, com o professor de história do Instituto Universitário Militar, responsáveis pela lapidária do Museu Militar e Museu Soares dos Reis, Arquivo Histórico Militar e Divisão Municipal de Museus e Patrimónios Culturais da Câmara Municipal do Porto, não tendo obtido informações de relevo sobre a sua localização. Cheguei à conclusão que, apesar de se tratar de uma pedra de grandes dimensões com inscrições honoríficas, esta encontra-se provavelmente soterrada nos alicerces do hospital.

O mesmo jornal da época transcreve o discurso do Dr. João António Marques, recitado na inauguração dos trabalhos do Hospital Militar de D. Pedro V, na cidade do Porto e que refere o seguinte: “Senhores: – O edifício que vai construir-se, ao mesmo tempo que contribue a pagar assim uma grande divida, e que preenche uma ampla lacuna na organização medico-militar do paíz, há-de tambem ser um monumento de gloria nacional, e uma honraria para a segunda cidade do reino. Como estabelecimento destinado a reunir n’uma calculada simplicidade, todas as condições de bom tratamento dos doentes, elle será o primeiro que assim se tenha erigido em Portugal. E do conselho da experiência de todos os paizes, do que em cada um d’elles se tem achado de mais util, o hospital militar de D. Pedro V dará um exemplo, ou um modelo para seguir” (O Jornal do Porto, 1862). Circunstância fascinante é que o Dr. António Marques foi fundador da Cruz Vermelha em Portugal, um médico militar cirurgião que deu imensos contributos para a área da saúde militar e, na época, desempenhava o cargo de Cirurgião de Brigada.

Ainda nos dias de hoje, no salão nobre do Hospital Militar do Porto (fotos 1, 2 e 3), faz-se homenagem às ilustres figuras da época, às quais se deve a sua existência. No centro do salão, temos o retrato do rei D. Pedro V, o idealizador do projeto, à direita, o retrato do Visconde de Sá da Bandeira, o procurador incansável e, à esquerda, o Dr. José António Marques, o assessor técnico de saúde.

Fotos dos retratos existentes no salão nobre: 1 – Cirurgião de Brigada José António Marques; 2 – D. Pedro V; e 3 – Visconde de Sá da Bandeira.

 

Em jeito de indiscrição, os litígios existentes na época entre a Câmara do Porto e o Exército foram notados, inclusive, pelos jornalistas presentes, e no mesmo jornal refere o seguinte: “Porque faltaria? Notou-se hontem… a falta da camara municipal ao acto da inauguração do hospital de D. Pedro V. Que razão plausível se daria para que ella não fosse abrilhantar aquelle acto… Boa pergunta! – a camara faltou para que se falasse nella; – e, alem disso, ella não anda boa, porque soffre agora muito do britanico spleen. Deus lhe dê prompto remedio para vermos se acabam as criancices municipaes” (O Jornal do Porto, 1862).

Numa carta enviada pelo Visconde de Lagoaça, na altura presidente da Comarca do Porto, ao Visconde de Sá da Bandeira, este justifica a sua ausência na cerimónia: “Há de lhe porem ter feito desagradável impressão a noticia de que a Camara Municipal não assistido aquela solenidade, pela minha parte senti-o muito, em não poder porque infelizmente há dez dias que me acho bastante doente, e até com moléstia de cuidado, o meu facultativo prohibio-mo completamente, nem eu poderia satisfazer aos meus desejos sem grande risco da minha saúde, apar deteriorada, preveni a todos os meus colegas, ainda não sei o motivo porque faltaram, de certo deve de ser justificadíssimo…” (Lagoaça, 1862). Apesar de atualmente vivermos numa era de informação, esta seria uma conversa que nos dias de hoje aconteceria num simples telefonema entre entidades políticas, e ficaria perdida no tempo. No entanto, passados mais de 150 anos, esta informação trivial, chega até nós em formato de correspondência guardada em espólio no Arquivo Histórico Militar.

O Hospital Militar do Porto foi considerado o primeiro grande hospital construído de raiz em Portugal. A sua construção ficou a cargo do capitão engenheiro Miguel Batista Maciel. As fotos 4 e 5 são as plantas de projecto do Hospital Militar de D. Pedro V.

(Arquivo Histórico do Hospital Militar Regional N.º 1, 1862)

Fotos 4 e 5 – Plantas de engenharia do Hospital Militar do Porto, à esquerda, primeiro piso, à direita, segundo piso.

 

Na segunda metade do século XIX, a descoberta de microrganismos como agentes patogénicos causadores de doenças transmissíveis revoluciona a concepção dos projectos de unidades de saúde, dando início a princípios de isolamento de patologias, disposição da arquitectura em pavilhões múltiplos, instalações com a preocupação com a ventilação e iluminação naturais. Numa análise às plantas de engenharia e pela descrição do edifício, ainda em construção, numa notícia publicada nos jornais em 1864, podemos confirmar que esses conceitos vanguardistas, foram aplicados no desenho. Algumas curiosidades que me chamaram a atenção foram: a existência de uma residência do Diretor do Hospital e sua família; característica própria de hospitais militares é que, para além das enfermarias, ditas gerais, existiam quartos para os oficiais e enfermarias de sargentos, mas também as “enfermarias para presos” e para as “moléstias contagiosas”; havia ainda os quartos separados e específicos para “doidos”, “doenças d’olhos” e “doenças de sarna”; tinha também uma “botica e laboratório”; “capela, livraria, casa das sessões de Junta”; “casa d’autópsia, quarto mortuário” e uma “arrecadação de palha” (Plantas do projecto arquitectónico do Hospital Militar do Porto, 1982). O primeiro pensamento que me surgiu é que a palha seria um bem de primeira necessidade, como é hoje o combustível, para alimentar os cavalos, usados como meio de transporte. Mas, dado que a localização escolhida não possuía qualquer acesso direto ao exterior, serviria, talvez, para fazer colchões para as camas.

Numa descrição das capacidades de salubridade e internamento das enfermarias, refere o seguinte: “Tanto no primeiro como no segundo pavimento, junto a todas as enfermarias e adjacentes às galerias, devem ficar quartos para enfermeiros e para despejos; assim como nos topos das enfermarias e adjacentes a estas, em cada uma deve haver latrinas dum lado, e do outro casa para lavatórios. Todo o edifício deve ficar circundado de parques, comunicando com os jardins… O edifício foi construído para uma lotação de 280 doentes, sujeitando-se a uma boa higiene nosocomial, mas em caso de necessidade pode receber muito mais, não sendo difícil alojar 400” (Morgado, 1928). Facto intrigante é que, já na altura, havia o conceito de fazer do hospital uma reserva nacional de cuidados de saúde. E essa necessidade era pelos mesmos motivos que assolam a sociedade na atualidade, as epidemias. “Assim apreciado pela area que ocupa, o novo hospital do Porto parece maior do que realmente é ou se crê necessário. As accommodações para 280 doentes, não são comtudo excessivas quando se atende a que as forças concentradas na segunda cidade do reino por vezes têem tido maior movimento ainda; quando se conhece que em ocasiões de epidemias se luta com grandíssimas dificuldades para obtenção de casa própria ao estabelecimento de hospitaes, a ponto de que há poucos anos um distincto general que comandava a divisão, só pôde proporcionar logar aos doentes cedendo a casa que lhe é dada para habitação” (O Escholiaste Medico, 1869).

Em 1869, o hospital estava construído em cerca de um terço, que correspondia à frontaria, ao corpo central e a dois pavilhões laterais do lado poente, todo o projeto restante estava com os alicerces ainda visíveis (figura 1). Apesar de não estar concluído, recebe, nesse ano, os seus primeiros doentes provenientes das guarnições e transferidos da Quinta das Águas Férreas.

(Arquivo Histórico do Hospital Militar Regional N.º 1, 1865)

Figura 1 – O edifício inacabado do Hospital D. Pedro V.

 

A partir de 1869, o hospital esteve a funcionar durante muitos anos com o restante projeto inacabado. A obra esteve quase parada e só em 1912 e 1914 foram concluídos e inaugurados mais pavilhões a nascente (figura 2).

Figura 2 – Hospital Militar D. Pedro V (Soares, 1908).

 

Com a implantação da República, em 1910, o hospital deixa de ser designado de D. Pedro V e passa a ser Hospital Militar do Porto.

No dia 27 de julho de 1918, deflagrou um incêndio que atingiu toda a frontaria e dependências anexas. Os cerca de 300 doentes que estavam internados foram evacuados para o Hospital da Cruz Vermelha. Num jornal da época, o episódio é descrito desta forma: “Confrangeu-se hontem o coração emquanto assistíamos ao violento incêndio, serem pasto das chammas as importantes instalações do corpo central do edifício, há pouco ainda visitado pelo snr. Presidente da republica, que teceu os maiores elogios as condições magnificas em que ellas se encontravam e ao asseio e ordem escropulosos que a tudo presidia. É uma perda enorme que urge remediar, tanto mais que o belio edifício era justamente considerado como dos primeiros da peninsula” (O Comércio do Porto, 1918). Facto intrigante é que a causa do incêndio também é relatada no mesmo jornal “O incêndio, que principiou por volta das 7 horas da tarde, na chaminé da cosinha da casa do inspector de saúde, coronel-médico…, que alli vive com sua família”, podendo-se pensar que a causa provável foi o jantar queimado da esposa do Sr. Coronel. Na altura, iniciou-se prontamente a reconstrução, que ficou concluída em 1920.

Durante os movimentos revolucionários de 31 de janeiro de 1891 e 3 de fevereiro de 1927, travaram-se nas ruas do Porto violentos combates entre forças militares. Relativamente ao apoio prestado pelo Hospital Militar do Porto nos confrontos de 31 de Janeiro, o jornal da época refere que “… para o hospital militar foram remetidos… diferentes feridos. Estes estão todos na conta de revoltosos e por conseguinte entraram para a enfermaria do calabouço. Somente os guardas municipais, é claro, ficaram recolhidos nas enfermarias livres… Os revoltosos feridos que receberam tratamento no hospital militar são no numero de vinte e três” (O Jornal do Porto, 1891). É interessante a utilização das enfermarias do calabouço, para os feridos prisioneiros.

O movimento revolucionário de 3 de fevereiro de 1927 foi mais prolongado e intenso que o de dia 31 de janeiro de 1891 e, consequentemente, com maior número de baixas. Durante os 5 dias de confrontos “o Hospital Militar, desempenhou, desta vez, o papel primacial que lhe competia, recolhendo e tratando o maior número... Efectuaram-se, durante esses dias de luta, perto de 40 intervenções operatórias, a maior parte de grande cirurgia” (Morgado, 1928). O jornal da época refere que no Hospital Militar do Porto foram tratados cerca “70 praças víctimas de revolução” e até “foi operada uma creança de 13 mezes…, estando no collo da mãe,…foi attingida por uma bala que se lhe cravou no estomago” (O Comércio do Porto, 1927). O empenhamento do hospital neste incidente com múltiplas vítimas (Mass-casualty) foi um feito notável. Principalmente, a capacidade de resposta no tratamento cirúrgico de inúmeros doentes de trauma major. Equiparável, nos dias de hoje, apenas a hospitais centrais de cidades com grande estatística de acidentes e violência ou zonas de “guerra e catástrofe”. Outro fato admirável é que a ajuda médica não era só aos militares feridos, mas também vítimas civis que ali recorriam, e fazia-se o que fosse necessário para salvar vidas, inclusive, cirurgia pediátrica. Nestas notícias, é interessante verificar, o pormenor no relatado dos feridos internados no Hospital Militar do Porto, nomeadamente: nome completo, posto, unidade de origem, motivo de internamento, necessidade de cuidados cirúrgicos, quais os “operadores” (cirurgiões) e mortes. Esta informação, atualmente considerada até confidencial e pertencente ao sigilo clínico, era exposta no jornal sem pruridos, talvez com o intuito de informar familiares e amigos das vítimas.

(Arquivo Histórico do Hospital Militar Regional N.º 1, década de 1950)

Figura 2 e 3 – Enfermaria e bloco operatório do Hospital Militar Regional do Porto.

 

Na Ordem do Exército n.º 7, série 1.ª, de 30 de junho de 1927, o Hospital Militar do Porto, passa a ter categoria de Hospital Regional e assume a denominação de Hospital Militar Regional N.º 1 (figura 6). Este foi um duro golpe e num Congresso de Medicina, em 1928, o Diretor da Clínica Cirúrgica do Hospital Militar do Porto, refere o seguinte: É de notar que pelos anteriores regulamentos o Hospital Militar do Porto teve sempre categoria igual ao de Lisboa, com idêntica organização e função. Parece nos pois que esse facto representa uma série ameaça ao seu desenvolvimento, se não actual, pelo menos futuro nos restao Hospital do Porto ir perdendo, a pouco e pouco, os seus meios de acção, o que impedirá a sua marcha progressiva. É isto justo? É isto razoável?... É a única forma hoje de fazer valer os nossos direitos. É a custa do nosso esforço que isso deve conseguir-se (Morgado, 1928). Passaram-se quase 100 anos e as ameaças político-económicas ao Hospital Militar do Porto mantêm-se muitos semelhantes. Naquele tempo, a solução passou pelo alargamento dos tratamentos sanitários à família militar “mães víuvas, esposas, filhos e filhas solteiras, dos oficiais, dos sargentos do activo, reserva ou reformados”, previsto em Ordem do Exército de 30 novembro de 1925. Atualmente, opta-se pela celebração de protocolos com entidades hospitalares do SNS, para realização de cirurgias, exames endoscópicos de gastroenterologia, entre outros.

Durante a Guerra Colonial, de 1961 a 1975, à semelhança dos restantes hospitais militares em território nacional, incrementa-se as capacidades nas especialidades da cirurgia plástica e reconstrutiva, ortopedia e principalmente na fisiatria e reabilitação protésica aos militares mutilados. Capacidade essa potenciada por acordos com a Associação dos Deficientes das Forças Armadas e com o Hospital Militar de Hamburgo na Alemanha.

No contexto de surtos de Legionella que, por vezes, aparecem no nosso país, um caso interessante é que o primeiro doente de Legionella descrito em Portugal foi diagnosticado, em 1981, pelo Prof. Dr. Levi Guerra, no Hospital Militar do Porto.

No ano de 1986, tiveram início as obras de construção de um novo edifício, numa área adjacente ao primeiro, sendo que as obras ficaram concluídas no ano de 1993.

Como que um tributo, a memória do rei que idealizou o seu projeto, a partir de 1990, passou a ser designado por Hospital Militar Regional N.º 1 (D. Pedro V) e no átrio principal da entrada do edifício do hospital, pode ver-se um busto de D. Pedro V, assente em pedestal com a legenda: “A D. Pedro V 22-4-1862, o norte agradecido 22-4-1998” (figura 7).

O Hospital Militar do Porto, apesar de, até 2014, pertencer ao ramo do Exército, sendo o único localizado a norte do país, foi o primeiro a servir como hospital comum aos três ramos das Forças Armadas e Forças de Segurança da GNR e PSP. A partir desse ano, passou a denominar-se de Hospital das Forças Armadas – Polo do Porto (figura 8).

Fotos do átrio de entrada:

Figura 6 – Placa comemorativa. Figura 7 – Busto de D. Pedro V.

Figura 8 – Hospital Forças Armadas Polo Porto, na atualidade.

 

Mais recentemente, no contexto de pandemia CoViD 19, também se envolveu no apoio sanitário ao serviço dos portugueses, tendo recebido durante a primeira vaga de pandemia, em março e abril de 2020, 86 idosos, na sua grande maioria, oriundos de lares de diferentes cidades a norte do país. E durante a segunda vaga da pandemia, abriram 50 camas, em protocolo com a Administração Regional de Saúde do Norte, tendo, desde outubro de 2020 até a data, recebido mais de 330 doentes CoViD positivos em apoio aos hospitais do SNS.

Podemos, então, concluir que, apenas em 1862, na cidade do Porto, deu-se início à construção do primeiro e único hospital militar nacional de raiz e exclusivamente destinado ao tratamento de doentes militares. Na altura, recebeu a denominação de Hospital Militar D. Pedro V, em memória do rei que idealizou a sua existência. Mesmo sem ver terminada a sua construção, recebeu os primeiros doentes, sete anos após a cerimónia de assentamento da primeira pedra, tendo-se mantido em funções desde então. Ao longo dos seus mais de 150 anos de existência, muito há para relatar. Foi construído de raíz, reconstruido após incêndio, sofreu remodelações e acrescentos. Prestou apoio sanitário aos militares e civis, com particular relevância durante os movimentos revolucionários que decorreram na cidade do Porto e recentemente no contexto de pandemia CoViD 19. Viu a sua denominação e classificação ser alterada, consoante as vontades políticas das épocas.

O Hospital Militar do Porto é um museu, mas é um museu vivo. Ainda nos dias de hoje permanece funcional, cumpre a sua missão para com os militares e estará sempre disponível para apoiar os portugueses quando for necessário. Pois, em toda a sua história, manteve-se sempre fiel a sua velha divisa, que, em tempos, se fazia revelar pela luz, num belo vitral existente nas escadarias no amplo hall de entrada do edifício (figura 9):

“Aqui não há inimigos, apenas doentes”

“HIC NON HOSTES NISI MORBI”

Figura 9 – Vitral da escadaria do hall de entrada.

 

Bibliografia

Bloco operatório do Hospital Militar Regional N.º1, década 50. [Foto]. Porto. Arquivo Histórico do Hospital Militar Regional N.º 1.

Carmo, P, 2010. O Hospital Militar Regional nº 1 no tempo. Porto: NOVELGráfica.

O Tripeiro, Série VI Ano X p. 297, A Rotunda da Boavista. [Jornal] Espólio da Biblioteca Pública Municipal do Porto.

Enfermaria do Hospital Militar Regional N.º1, década 50. [Foto]. Porto. Arquivo Histórico do Hospital Militar Regional N.º 1.

Ministério da Guerra, 1927. Ordem do Exército, Série 1º, N.º 7 de 30 de junho: pp. 915-924.

Morgado, F, 1928. Os Serviços de Cirurgia no Hospital Militar do Porto. Porto: Conferência no III Congresso de Medicina.

O edifício inacabado do Hospital D. Pedro V, 1865. [Foto]. Porto: Arquivo Histórico do Hospital Militar Regional N.º 1.

O Escholiaste Medico, 30 setembro 1869, Vol. 18, n.º354. O Hospital Militar de D. Dedro V, no Porto. [Folhetim]: Arquivo Histórico do Hospital Militar Regional N.º 1.

O Comércio do Porto, 7 de fevereiro de 1927. No hospital militar. [Jornal] Espólio do Comércio do Porto, Vila Nova de Gaia: Arquivo Municipal de Gaia.

O Comércio do Porto, 8 de fevereiro de 1927. Os feridos – No Hospital Militar. [Jornal]. Espólio do Comércio do Porto, Vila Nova de Gaia: Arquivo Municipal de Gaia.

O Comércio do Porto, 9 de fevereiro de 1927. No hospital militar. [Jornal]. Espólio do Comércio do Porto, Vila Nova de Gaia: Arquivo Municipal de Gaia.

O Comércio do Porto, 28 de julho de 1918. Hospital Militar do Porto – Pavoroso incêndio. [Jornal]. Espólio do Comércio do Porto, Vila Nova de Gaia: Arquivo Municipal de Gaia.

O Jornal do Porto, 3 de fevereiro de 1891. No Hospital Militar. [Jornal]. Publicações periódicas: O Jornal do Porto, Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal.

O Jornal do Porto, 23 de abril de 1862. Discurso recitado na inauguração dos trabalhos do hospital militar D. Pedro V, na cidade do Porto. [Jornal]. Publicações periódicas: O Jornal do Porto, Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal.

Lagoaça, V, 1862. Correspondência entre visconde de Lagoaça, presidente da Comarca do Porto, e o marquês de Sá da Bandeira, referente à inauguração dos trabalhos do Hospital Militar de D. Pedro V. Porto. Arquivo Histórico Militar, Referência PT/AHM/DIV/3/18/01/08/559.

Plantas do projecto arquitectónico do Hospital Militar do Porto, 1982. [Foto]. Porto. Arquivo Histórico do Hospital Militar Regional N.º 1.

Reis, CV, 2004. História da Medicina Militar Portuguesa. Lisboa: Estado-Maior do Exército. Volume II, pp. 23-31.

Secretaria D’Estado dos Negócios da Guerra, 1862. Ordem do Exército N.º 12 de 19 de abril – 1.º Decreto, Paço de Pedrouços: D. Luís I.

     Soares, A, 1909. Hospital Militar D. Pedro V. [Foto]. Lisboa. Arquivo Histórico Militar: Iconografia, Referência PT/AHM/FE/E-904/PQ/1.


 

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Tenente-coronel

Raquel Santos

Comandante do Agrupamento Sanitário do Exército, desde 2022. Competência em Medicina Militar e em Medicina de Emergência pela Ordem dos Médicos. Diretora do Bloco Operatório e Chefe de Serviço de Anestesiologia do HFAR-PP, desde 2020.

REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia