A saída caótica dos Estados Unidos da América (EUA) do Afeganistão trouxe de novo à nossa memória recente as imagens da retirada do Vietname, do Iraque e, sobretudo, a evidência de que o interesse nacional dos EUA está sempre em primeiro lugar, independente das consequências para terceiros ou para a eventual surpresa por ausência de coordenação e consulta, por parte quer de aliados quer das organizações internacionais que integram. Entre Joe Biden, único responsável pela decisão que levou à saída das tropas americanas do Afeganistão nos moldes a que assistimos e o conceito “America First”, de Donald Trump, não há diferenças, muito embora o estilo possa ser diferente e as razões atuais de política interna apresentadas possam servir de justificação ou de desculpa.
Como já se tinha referido, em edição anterior da Revista Militar, a Europa e a Rússia não são a primeira prioridade da estratégia nacional americana; o foco estratégico na região Índico-Pacífico há muito que vinha a ser referido, de forma explícita e algo destemperada por Trump, não foi desmentido aquando da presença de Biden na Reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em Bruxelas, este ano, e, se dúvidas ainda existissem, foram dissipadas com o recente acordo de cooperação tecnológica e de defesa dos EUA com a Austrália e com o Reino Unido, o AUKUS, tendo como preocupação principal a China, mais uma vez perante a surpresa dos aliados europeus e da própria União Europeia (UE) e da OTAN.
O relacionamento recente dos EUA com a OTAN importa ser acompanhado com atenção pelos aliados europeus, designadamente, no que toca às expectativas americanas de apoio e seguimento à sua política para com a China, pois é previsível que hesitações neste domínio possam fazer aumentar o seu desinteresse pelo seu empenhamento político e militar na Aliança Atlântica. Não se advoga uma política de seguidismo cego da política americana na região geopolítica da China, Mares circundantes, reivindicações territoriais, diferendo entre as Coreias e a sempre questão de Taiwan, mas, sim, como responder a esses desafios concretos, tendo presente os interesses e reais capacidades dos países europeus, da UE e o envolvimento da OTAN, de acordo com as responsabilidades assumidas no Tratado.
Após a assinatura do acordo AUKUS, no Parlamento do Reino Unido, a oposição questionou Boris Johnson, relativamente a qual seria a posição e o envolvimento, quer político quer militar, num eventual agravamento da situação de Taiwan, ou mesmo um incidente dos EUA com a China. A resposta de um ator que se afirma querer ter uma postura estratégica global, escudou-se na necessidade de se respeitar o direito internacional e de não se agudizar tensões.
Depois de 31 de agosto e concretizada a retirada americana do Afeganistão, as questões da defesa europeia voltaram ao escrutínio da comunicação social, fruto da Reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros (MNE) e da Defesa (MDN), para análise da situação e para as declarações finais que referiam a necessidade da criação de uma força de intervenção rápida da UE, situação que não motivou grandemente os presentes, com o MDN de Portugal a referir “que existem outras opções” [?].
Contudo, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no discurso sobre o Estado da União Europeia, reavivou o debate sobre a matéria, embora de uma forma tranquila e sem pressa, informando que vai convocar uma Cimeira Europeia da Defesa, que será organizada pelo Presidente Emmanuel Macron, quando a França detiver a presidência do Conselho da UE; a questão da defesa europeia continua a ser um assunto sempre adiado.
Num aspeto teve absoluta razão, afirmando “antes de se discutir a mobilização de tropas, é necessário um consenso sobre a sua utilização e precisamos de desenvolver a nossa vontade política”, algo que necessita de uma verdadeira pedagogia de espírito de defesa, a começar nos Estados-membros. Mais uma vez, se este exercício de efetivo reforço das capacidades militares europeias não for assumido em termos nacionais e em simultâneo feito numa perspetiva de reforço do pilar europeu da OTAN e não em seu detrimento, poderá ser uma contribuição no sentido de se evitar que o desinteresse americano pela Aliança Atlântica se agrave.
Mas existe uma realidade estratégica, que resulta da forma como os EUA saíram do Afeganistão e que tem efeitos psicológicos concretos, quer nos opositores da estratégia americana quer na confiança das parcerias estabelecidas entre aliados. Se essas interrogações se colocam perante aliados europeus, qual será idêntica reflexão na Coreia do Sul ou em Taiwan? E junto dos movimentos radicais, que poderão ver nos Talibãs, de novo no poder, um incentivo para o prosseguimento das suas ações de desestabilização e para o incremento do terrorismo?
Os EUA estão também perante uma escolha de uma ação estratégica nacional que corporize uma “terceira via de intervenção na conjuntura internacional”, entre uma política de coação militar e o alheamento internacional, apenas alterado pela avaliação do seu interesse nacional, que determine a modalidade de ação irá eleger?
Esta é também uma reflexão estratégica que os europeus não poderão deixar de acompanhar.
Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964.
Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.
Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.
Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.