Em qualquer País, as leis quando são elaboradas têm como objectivo, normalmente, a melhoria da vida dos cidadãos e das organizações.*
No caso destas últimas, racionalizar os recursos e as estruturas, motivar e envolver os colaboradores e procurar optimizar os resultados, constitui-se como o paradigma a ser perseguido, quando se procura legislar no sentido de garantir o quadro legal que melhor se possa adequar aos desafios e às ameaças com que as organizações se defrontam no âmbito da sua actividade.
Contudo, semelhante realidade tende a não se verificar, quando se depara com a falta de conhecimento e de experiência do legislador, aliada à sua falta de visão institucional, ao oportunismo político e, não raras vezes, à cedência a preconceitos enraizados, acabando por se traduzir, quase sempre, em normativos incoerentes e desajustados, sobre a matéria a legislar.
Terá sido isso, provavelmente, que aconteceu quando da elaboração da presente reforma da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), aprovada, recentemente, em Conselho de Ministros, por via duma proposta do Ministro da Defesa Nacional (MDN), para o efeito.
Na realidade, desde há alguns meses que o Ministro se vinha desmultiplicando em intervenções junto da Comunicação Social e na Assembleia da República sobre esta reforma, apontando como objectivos principais a modernização das Forças Armadas (FA) e o repensar do seu futuro, bem como aproximá-las do modelo da estrutura militar de outros países europeus, sem que se entendesse bem a urgência e a necessidade de tal iniciativa, no momento particularmente grave que o País atravessa.
Ficamos a saber que, na sua essência, o que era proposto se materializava num acentuado reforço das competências do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), traduzido num substancial prejuízo das responsabilidades e das competências dos Chefes de Estado-Maior dos Ramos (CEM), não se escusando o Ministro de afirmar, no entanto, que tinha a concordância dos mesmos, para o efeito.
Na verdade, pelo que é dado a conhecer, aquela concordância limitava-se somente a um único chefe militar, o CEMGFA, que, como tudo indica, terá sido o mentor do projecto da reforma em questão, facto oportunamente aproveitado, sob o ponto de vista político, pelo próprio MDN.
Entretanto, diversas entidades vieram a público colocar em causa o racional seguido para as alterações propostas à actual Lei, alertando que as competências dos CEM dos Ramos seriam profundamente esvaziadas, ficando os mesmos reduzidos a um papel meramente secundário, no quadro das relações hierárquicas com o CEMGFA e com a tutela, se a reforma avançada, com o enquadramento proposto, viesse a ser aprovada.
Alertava-se, ainda, que, como resultado imediato, o equilíbrio e a coordenação entre o CEMGFA e os CEM dos Ramos, até agora verificados, ficariam seriamente abalados, podendo, mesmo, vir a pôr em causa a eficiência colocada nos processos de planeamento e de emprego das Forças, e na optimização das capacidades disponíveis do Sistema de Forças Nacional, em cada momento.
Deste modo, marginalizando as Chefias dos Ramos do topo do patamar da decisão política estratégica, estariam criadas as condições para a concretização de um velho projecto, há muito ambicionado pela classe política, em Portugal, no sentido de subalternizar as FA, diminuir-lhes a visibilidade pública e social, e submête-las a uma total governamentalização, procurando anular, assim, o seu carácter institucional.
Qual o objectivo do Ministro, então, ao referir não ter havido a intenção de menorizar os Ramos, indicando que os mesmos continuariam a existir e a deter uma identidade própria e vincada, enquanto propunha, entretanto, que os respectivos Estados-Maiores ficassem sob a coordenação do CEMGFA, e os CEM deixassem de despachar directamente consigo, embora, mais tarde, tenha deixado cair esta questão, contudo, de forma mitigada?
O que pretendia alcançar, quando assinalava que com um novo diploma sobre a organização das FA se iria melhorar o respectivo processo de gestão, e acabar com redundâncias anteriormente verificadas?
Sobre este aspecto, importaria que o MDN pudesse ter esclarecido os Portugueses sobre quais as missões que as FA não tivessem vindo a cumprir com relevância e reconhecimento, quer internamente quer ao nível internacional, e com que legitimidade se podia questionar o processo de gestão do seu emprego, quando se tem vindo a presenciar, há muito tempo, uma continuada redução dos recursos atribuídos para o seu funcionamento, sem prejuízo, no entanto, da sua proficiência.
No mesmo sentido, impunha-se que indicasse quando e de que forma a coordenação entre o CEMGFA e os CEM não se tivesse vindo a pautar, em cada momento, pela eficiência colocada nos processos de planeamento e de emprego das forças e na optimização das capacidades do Sistema de Forças Nacional, e, nesse sentido, como pode sugerir a existência de redundâncias, que, no seu entender, se impunha eliminar.
Deveria ser, igualmente, obrigatório indagar quais as disfunções referidas pelo ministro, no âmbito da estrutura superior de comando das FA, entre o CEMGFA e os CEM dos Ramos, no domínio do respectivo relacionamento hierárquico e funcional, bem como quais as razões que têm dificultado o processo de decisão que o MDN vem mantendo com estes últimos, para que, no âmbito da reforma anunciada, possam ser afastados do despacho com a tutela.
Estas questões, por muito que o MDN tenha pretendido mistificar o respectivo esclarecimento, num processo que o CEMGFA, decididamente, pareceu acompanhar, indicam, de forma bastante evidente, que nada tem estado em causa nestes domínios, uma vez que as missões atribuídas aos Ramos, sob o comando e controlo operacional do CEMGFA, conforme a lei, aliás, já preconiza, têm vindo a ser sistematicamente cumpridas com prontidão, relevância e eficácia.
Na realidade, na actual LOBOFA, o CEMGFA tem a responsabilidade de planeamento e implementação da estratégia militar operacional, tendo, para o efeito, os CEM na sua dependência hierárquica para as questões que envolvem a prontidão, o emprego e a sustentação das Forças e meios da componente operacional do Sistema de Forças Nacional.
No Artigo 10.º da referida Lei, essas responsabilidades encontram-se explicitamente inscritas num conjunto de competências que asseguram ao CEMGFA o comando e o controlo operacional das FA, através das capacidades operacionais dos respectivos Ramos, incluindo as missões das Forças Nacionais Destacadas, bem como as acções no âmbito da Protecção Civil.
No referido diploma, fica bem explícito, ainda, que os CEM se relacionam directamente com o CEMGFA, como Comandantes subordinados, mantendo na sua dependência as questões relacionadas com a geração, recrutamento e sustentação das Forças, bem como as responsabilidades no âmbito das operações específicas dos respectivos Ramos.
Questiona-se, então, qual o sentido das afirmações do MDN sobre o lançamento das bases do futuro das FA, e o que pretendia referir, concretamente, quando anunciou que queria colocar os CEM dos Ramos na dependência hierárquica do CEMGFA, uma vez que tal disposição já está contemplada no quadro da LOBOFA em vigor?
O que pretendia atingir, ainda, ao afirmar não fazer sentido pensar na autonomia dos Ramos, quando, efectivamente, a subordinação dos mesmos ao CEMGFA, através dos respectivos CEM, já se encontra materializada no referido diploma?
O Presidente da República, na sua qualidade de Comandante Supremo das Forças Armadas, estará, seguramente, elucidado sobre as preocupantes consequências para a componente militar da política de Defesa Nacional, caso a pretensa reforma venha a ser aprovada e promulgada, realidade que não seria estranha à irrelevância a que os Chefes dos Ramos seriam reduzidos, no processo da decisão estratégico militar.
Terá sido a reflexão sobre esta matéria, que o terá levado a afirmar recentemente, que … sabemos bem como os homens, hoje, e um dia as mulheres, também, no desempenho destas funções (CEMGFA) passam…, mas as Instituições ficam para além deles e delas…
No entanto, o MDN, apesar das fortes reservas e das pertinentes interrogações levantadas pela falta de oportunidade e da validade intrínseca das alterações propostas, acabou por apresentar o projecto de reforma da LOBOFA, em sede de Conselho de Ministros, tendo afirmado (avisado?) no final, após a respectiva aprovação, perante a comunicação social, que não esperaria obstáculos, por parte das Chefias militares, na implementação da reforma em questão, chegando, abusivamente, a afirmar que estas apoiavam a reforma proposta.
Tal afirmação pecando, por não ser verdadeira, como já se suspeitava, na altura, acabou por ser cabalmente desmentida, mais tarde, quando da audição dos CEM em sede da Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República.
Seria importante, deste modo, que o Ministro pudesse explicar como pode formular uma aspiração daquela natureza, quando ele e o CEMGFA rejeitaram liminarmente, ao longo de todo o processo, as propostas de alterações mais importantes feitas à Lei por parte dos CEM dos Ramos.
Seria, por outro lado, interessante saber como pode sugerir um consenso alargado na aceitação da Lei, quando nem sequer deu a conhecer, previamente aos Chefes Militares dos Ramos, a versão final da respectiva proposta, a qual veio a apresentar no Conselho de Ministros, tendo em vista a respectiva aprovação.
Entretanto, conviria referir que uma das principais razões que, invariavelmente, o MDN enunciou como justificação para a proposta da reforma apresentada, tenha sido a aproximação que proporcionaria ao modelo de organização das FA de outros países, na Europa e na própria OTAN.
Semelhante argumentação, contudo, além de pouco consistente em termos de conteúdo, é de difícil entendimento, uma vez que nenhum motivo suficientemente válido obriga ou justifica a necessidade de mudar o modelo de organização das FA portuguesas:
porque se é, apenas, por mudar não faz sentido, e se, simplesmente, é para copiar torna-se legítimo perguntar porquê(?)
Nada obriga Portugal a seguir um modelo de organização militar seguido por outros países, até porque, com certeza, existirão outros modelos, também, diferentes, reflectindo a especificidade própria da política de defesa nacional de cada um deles, da sua singularidade e posicionamento estratégico, da sua identidade cultural e do seu padrão de desenvolvimento económico e social.
Parece concluir-se, assim, que o facto de a LOBOFA em vigor contemplar, já, respostas às questões que o MDN, agora, vem colocar para justificar o reforço das competências do CEMGFA, deixa transparecer o objectivo último da sua proposta, o qual se prende, na sua essência, com a desejada subalternização dos CEM, ao limitar a sua relação directa com a tutela, tornando-a, na prática, quase exclusiva com o CEMGFA, e esvaziando o papel do Conselho de Chefes de Estado-Maior, ao perder a sua função deliberativa, atribuindo-lhe um mero papel consultivo.
Resta, assim, um indisfarçável propósito da menorização das FA, pela irrelevância atribuída aos Comandantes dos Ramos, ao ponto de os posicionar num patamar inferior ao das próprias forças de segurança, cujos chefes continuarão a manter uma relação directa e privilegiada com a respectiva tutela política.
Finalmente, parecendo ser o MDN adepto de modelos importados, seria, nessa medida, coerente que procurasse copiar, também, as condições de apoio e de funcionamento que outros países garantem às suas FA e à dignificação da profissão militar, onde não persistem, lamentavelmente, como nas Forças Armadas Portuguesas, as graves e continuadas injustiças no âmbito da retribuição salarial dos militares, bem como as preocupantes lacunas nos sistemas de recrutamento e nos processos do reequipamento, a par da pré falência do sistema de saúde militar e do Hospital das FA, bem como da assistência na saúde (ADM) e do apoio social complementar (IASFA).
Acentuar, desta forma, a irrelevância das FA, não será mais do que, impunemente, manter a estratégia que tem sido seguida pelo poder político, há demasiado tempo, ao evitar tratar as matérias que, verdadeiramente, importam às Forças Armadas e aos Militares.
Se estas questões, também, tivessem sido alvo de imitação por parte do MDN, talvez a persecução da reforma que, agora, pretende ver aprovada na Assembleia da República pudesse ser melhor discutida e mais coerentemente avaliada….
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* Artigo submetido à Revista Militar para publicação em 21 de junho de 2021. O autor escreveu este artigo em consonância com o anterior acordo ortográfico.