De há muito que as Forças Armadas (FFAA) não eram objeto de tanta atenção mediática quanto no presente. Infelizmente, este interesse não se prende com a vontade de levar ao conhecimento dos cidadãos a distinção com que as FFAA têm vindo a executar as suas missões e tarefas, quer no plano externo quer no interno, nem as insuficiências graves com que se debatem para garantir a sua prontidão, mas sim a propósito das controvérsias geradas por um projeto de reforma da sua estrutura superior.*
Antes de qualquer avaliação sobre o virtuosismo, ou falta dele, das propostas de lei ora em apreciação parlamentar na especialidade, importa que nos debrucemos sobre a oportunidade e metodologia adotadas.
Aparentemente, atendo-nos ao exemplo expresso pelo Almirante Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), na sua audiência na Comissão de Defesa Nacional (CDN), um dos principais catalisadores do processo, a par de outros que julgamos de natureza pontual, terão sido as dificuldades por si sentidas na coordenação global das FFAA no apoio ao combate à pandemia. Naturalmente, por consideração pessoal e respeito institucional, e por desconhecimento das situações em concreto, não pomos em causa aquelas declarações, mas que, em nosso entender, não justificam uma alteração legislativa desta natureza.
Porém, já merece questionamento a oportunidade de, em cima dos acontecimentos, quando a ‘espuma dos dias’ ainda não se dissipou, avançar para alterações legislativas de leis estruturantes da Defesa Nacional e das FFAA, como o são a Lei de Defesa Nacional (LDN) e a Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA). É do senso comum que não se deve legislar a ‘reboque’ de situações concretas, ocorridas em conjunturas específicas, pois é grande o risco de as emoções e os impulsos do momento condicionarem o racionalismo da análise e os respetivos resultados. Especialmente em matérias fundamentais e sensíveis, mandam a prudência e a razão que se aguarde pelo fim dos fatores perturbadores e, com mais serenidade, se dê tempo ao amadurecimento das ideias e campo para o encontro de caminhos comuns.
Acresce, no seguimento das opiniões expressas publicamente pelo Ministro da Defesa Nacional (MDN), que se o objetivo da reforma é acompanhar as evoluções já havidas em países aliados, dificilmente se entenderá que, tal como neles ocorreu, o processo inerente não seja precedido de uma profunda análise das alterações dos contextos geopolítico e económico, das implicações trazidas pelas profundas evoluções tecnológicas e pela transnacionalidade dos desafios atuais, como sejam, entre outros, as alterações climáticas, a biossegurança e a cibersegurança, os movimentos migratórios, as tecnologias disruptivas e o terrorismo. Só em resultado desta análise é possível estabelecer o modelo de FFAA que queremos e podemos ter, definir as suas missões, priorizar capacidades e constituir o sistema de forças e o dispositivo capazes de as cumprir e, por fim, instituir a estrutura organizativa responsável pelo funcionamento do sistema e pelo produto operacional que se pretende alcançar. Começar pelo fim, com motivações casuísticas, sem cuidar primeiro dos elementos que o devem determinar, é como construir um edifício sem cuidar da solidez dos seus alicerces.
Com o que precede, entrámos na metodologia, designadamente no modo singular como foram elaborados e anunciados os projetos de lei em apreço. Terão sido pensados e trabalhados sem qualquer envolvimento ou conhecimento prévio das principais instituições afetadas, concretamente os Ramos e seus Comandantes, completamente ao arrepio do que recomendam as boas práticas e os procedimentos havidos em ocasiões semelhantes. Poderá parecer que tal metodologia, dispensando visões distintas e o contributo dos outros interessados diretos, será mais rápida e eficaz na chegada aos objetivos pretendidos, não se perdendo tempo em debates e na porfia de consensos. Nada mais enganador. As consequências são sempre mais gravosas do que as aparentes vantagens. As decisões não participadas e a política dos factos consumados induzem frequentemente perceções negativas de autoritarismo, não podendo este encontrar respaldo justificativo na autoridade do poder político legítimo a que se subordinam as FFAA, nem na autoridade hierárquica presente nas organizações complexas, como é o caso da Instituição Militar.
De igual modo, se os objetivos não são partilhados, se não se trabalha em conjunto para os alcançar e há falta de transparência e de diálogo, a coesão e a confiança, elementos de crucial importância na ação militar, ficam irremediavelmente afetadas. Ao contrário, o trabalho em conjunto desenvolve os sentimentos de pertença, de corresponsabilização e de comprometimento coletivo. A não ser que haja um derradeiro esforço de concertação, a relação de confiança entre alguns dos principais atores da Defesa Nacional dificilmente voltará a ter a fluidez desejada.
Noutro âmbito, concretamente em sede da CDN, é de difícil compreensão que se tenha votado contra a consulta, à semelhança do ocorrido no processo de revisão anterior, “de antigos incumbentes dos cargos mencionados, ou outras personalidades de relevo…”1. Uma vez mais, a transparência do processo e o incentivo ao dever cívico de participação, sempre tão presente na retórica dos agentes políticos em estados de direito democrático, ficaram na gaveta dos procedimentos incómodos, algo incomum em matéria não classificada da Defesa e das FFAA.
Foi usado pelo MDN e por algumas, poucas, personalidades, o argumento de que esta reforma é imprescindível para colocar as nossas FFAA a par do que é praticado pela maioria dos países europeus. Não é tanto assim. Com efeito, as FFAA, desde a reforma de 2009 e o seu aprofundamento em 2014, já estão organizadas em função do Conceito Conjunto das Operações, o qual assenta basicamente em quatro pilares, a saber: o exercício do comando operacional das FFAA pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA); o Quartel-General Operacional Conjunto; a Força Conjunta de Reação Imediata; e a doutrina conjunta. Destes pilares, só o da doutrina nacional conjunta estará ainda por concretizar, socorrendo-nos da doutrina em vigor na NATO.
Assim sendo, parece que não estamos mal de todo, antes pelo contrário. Ou seja, não é por aqui que as FFAA deixarão de lidar com sucesso com as velhas e as novas ameaças, ou com os novos domínios da conflitualidade, como o espaço e o ciberespaço, cujo comando fica corretamente centrado no CEMGFA. As dificuldades que possam vir a sentir-se serão seguramente devidas a outros fatores que não a estrutura de comando ou o Conjunto, mas, antes, à escassez de recursos humanos e à obsolescência e atraso tecnológico da maioria das capacidades combatentes.
De igual modo, apesar de, no essencial, a atual estrutura estar alinhada com a dos nossos parceiros, há naturalmente diferenças palpáveis nos detalhes, dificilmente se encontrando dois países com estruturas de comando idênticas em virtude de inúmeras especificidades próprias. Em Espanha, tantas vezes citada como exemplo, foi promulgada, em maio de 2020, uma nova Lei Orgânica das suas FFAA. Os Chefes de Estado-Maior (CEM) continuam a exercer o comando dos Ramos debaixo da autoridade da Ministra de Defensa, apoiando-a diretamente “en lo relativo a la preparación, dirección y desarrollo de la política del departamento (ministério) en lo relacionado com su respectivo Exército”2, ficando apenas de fora a atividade operacional. Como vimos, o argumento que justifica a reforma pela necessidade de acompanhar a evolução havida noutros países, carece de solidez na sustentação, não sendo evidente qualquer possível disfunção na operação combinada com os nossos parceiros e aliados.
A matéria do articulado presente nas duas propostas de lei merece igualmente profunda e desapaixonada reflexão. Muito já foi dito e escrito, sendo bastantes os contributos e participações de diversos quadrantes da sociedade, os quais serão certamente objeto de ponderação no âmbito da apreciação parlamentar em curso. Porém, neste texto, tendo os CEM sido já ouvidos em sede da CDN e apresentado as suas propostas concretas de alteração, todas elas convergentes no essencial, entendemos já não ser oportuno entrar na análise detalhada do conteúdo. Ainda assim, pela sua relevância, não podemos deixar de evidenciar três aspetos presentes nas propostas de lei, com os quais não nos conseguimos identificar.
Desde logo, a dupla dependência do MDN e do CEMGFA por parte dos CEM, justificada com a tão proclamada “unidade de comando”. Salvo melhor opinião, a unidade de comando, tal como considerada no âmbito militar, tem em vista a necessária coesão no planeamento e na execução de operações, mas não na gestão administrativa. Aliás, o mais comum no campo das forças e meios militares, de que as Forças Nacionais Destacadas (FND) são um exemplo, é a existência de uma dupla dependência, do comandante operacional para a condução das operações, o CEMGFA, e do comando administrativo do Ramo no apoio, na sustentação e nas questões do pessoal.
Por outro lado, ainda com a unidade de comando como pano de fundo, não é fácil compreender que, sendo os Ramos organismos com autonomia administrativa, integrados na administração direta do Estado, e os CEM responsáveis pela administração financeira e patrimonial do respetivo Ramo, vejam cerceado o acesso à sua tutela. A esta compete garantir o mérito e a boa administração, mas, apesar disso, é ao CEMGFA que se pretende atribuir a administração de todos os assuntos de natureza militar. Com tal alteração, o CEMGFA passa a assumir na prática o comando completo das FFAA, enquanto os Ramos ficam ao nível dos Órgãos de Comando e Administração (OCAD), a exemplo do que ocorre na Guarda Nacional Republicana (GNR), cujo comandante tem o comando completo, e a quem se subordinam diretamente os titulares dos OCAD. Há que convir que o modelo proposto constitui uma gritante desclassificação para os Ramos. Não no imediato, mas com o passar do tempo, o centralismo pretendido iria cobrar a sua taxa ao espírito de corpo, às tradições, à cultura, à iniciativa, à inovação e à relação com os cidadãos, em particular com as comunidades que acolhem unidades militares. Configuraria uma mudança radical do paradigma que de há muitos anos enforma a atuação dos Ramos, subtraindo-lhes parte do seu ethos e do seu prestígio. Como acima se exemplificou com o caso de Espanha, isto não é colocar-nos a par do que ocorre nos países amigos.
O Conselho de Chefes de Estado-Maior, ao perder a maioria das competências, perde o seu múnus de órgão colegial, essencial ao debate de ideias, consensualização de prioridades e harmonização de posições. Poderá até ser adequada a supressão de algumas das competências atuais, mas não é fácil inteligir as razões que levam à eliminação de outras. Habituámo-nos a tomar como postulado que a tomada de decisão em grupo, ainda que porventura mais demorada, apresenta níveis de qualidade superiores à tomada de decisão individual, particularmente quando o colégio é constituído por entidades experientes e possuidoras de especialidades diferenciadas. Para além disso, leva ao comprometimento, à corresponsabilização, ao sentimento de pertença e à solidariedade do grupo com o resultado. É uma pena que se possam vir a perder estes valores nos processos de concertação de matérias tão estruturantes como a Lei de Programação Militar (LPM), Lei de Programação das Infraestruturas Militares (LPIM) ou o Orçamento.
Por fim, causa perplexidade a questão das missões reguladas por legislação própria, desaparecidas das atuais propostas. Em tais missões, tal como a expressão indica, a competência para a sua execução é atribuída aos Ramos e não às FFAA. Assim sendo, não fica claro como será possível atribuir essas competências ao CEMGFA sem alterar simultaneamente toda a legislação que as comete aos Ramos. Até lá, estes não podem deixar de as cumprir, uma vez que as competências que lhes estão atribuídas são originárias e, como tal, irrenunciáveis e inalienáveis. É a lei que atribui os poderes funcionais que integram a competência, designadamente o seu exercício. Acresce, ainda, que sendo missões que requerem capacidades especificas de natureza não militar, não faz sentido passar a atribuí-las às FFAA no seu conjunto, e, nesta medida, a ficarem sob o comando do CEMGFA.
Como é óbvio, pertencendo ao sistema de forças os meios que asseguram aquele exercício, tem toda a razão de ser manter informados o CEMGFA e o Comando Operacional Conjunto dos meios empregues e da sua localização e intenções de movimentos, o que, aliás, já é prática corrente. Deste modo, está igualmente a contribuir-se para o conhecimento situacional de interesse militar, dando expressão ao conceito de duplo uso. Exceciona-se nas propostas apresentadas a Busca e Salvamento Marítimo e Aéreo (SAR). Numa perspetiva de otimização dos recursos, os meios atribuídos a esta missão, que constitui um compromisso internacional do Estado, desempenham concorrentemente outras missões reguladas por legislação própria. Ora bem, se estas últimas saírem da competência dos Ramos e passarem para o CEMGFA, o que formalmente desaparece é a unidade de comando; o mesmo meio dependeria simultaneamente do CEMGFA numas missões, e dos Ramos na missão SAR.
Este assunto é bastante delicado pelas sensibilidades que desperta noutras instituições que para essas tarefas também concorrem, tornando recomendável não alterar os equilíbrios atualmente existentes.
Presente o acima exposto, e porque o calor do debate público está a pender para juízos mais emocionais do que racionais, consideramos que o mais prudente seria que o processo parlamentar se desse tempo para promover um diálogo alargado, franco e construtivo, capaz de influenciar de forma positiva mentalidades e comportamentos, e para aprofundar a análise das questões de índole mais técnica, a fim de se alcançar um produto final coerente, robusto e que melhor sirva os interesses de Portugal e das FFAA.
______________________________________
1 Parecer relativo à Proposta de Lei nº 84/XIV/2ª (GOV).
2 Real Decreto 521/2020, de 19 de mayo.
______________________________________
* Artigo submetido à Revista Militar para publicação em 13 de junho de 2021.
Ex-Assessor Militar do Primeiro-Ministro.