Napoleão Bonaparte, parco em modéstia e com uma ambição desmesurada, protegido da Corte de Luis XVI e beneficiário da Revolução Francesa, reformou a monarquia de França e criou o império, fez-se vítima das monarquias europeias e tentou conquistar a Europa, coroou-se imperador dos franceses, perante o Papa Pio VII, e recuperou a hereditariedade imperial para a própria família.
No entanto, os desígnios imperiais duram apenas até 1815, quando Napoleão I, líder dos marechais do Império, foi desterrado para a ilha de Santa Helena, onde morreu há 200 anos. Para o insucesso militar francês contribuiu também a contaminação da bactéria Rickettsia que disseminou o tifo entre as tropas napoleónicas, dizimando exércitos em campanha.
Concordo, pois, com Bruno Cardoso Reis, académico, investigador do Instituto da Defesa Nacional e assessor do Ministro da Defesa Nacional (MDN), quando afirma na publicação Tutela, Direção e Comando Superior das Forças Armadas na Europa do Século XXI – Análise Histórica e Comparativa, da Série E-Briefing Papers do Instituto da Defesa Nacional (IDN), publicada em maio do corrente ano:
“O uso extraordinário por Napoleão das centenas de milhares de homens que a Revolução Francesa colocou à sua disposição implicava coordenar vários exércitos para os concentrar de forma decisiva no momento e no local ideal para causar o máximo de impacto em batalha. Isso levou a que Napoleão tenha sido descrito por vezes como uma espécie de Estado-Maior-General na forma de um homem só (na verdade, tinha alguns, embora poucos, colaboradores, e uma estrutura institucional leve e em parte informal). Mas um comandante genial não é um sistema de comando (p. 13).”
Na memória dos séculos, pragas e pandemias também fazem parte da História dos Povos, pelo menos desde a segunda metade do século V a.C., sendo então já mencionadas, por autores gregos, no Corpus Hippocraticum. Das pandemias sempre resultaram graves consequências, de natureza sanitária, demográfica, económica, política, social e cultural ou mesmo em operações militares.
A Humanidade vive, desde o Inverno de 2019-2020, uma situação pandémica resultante da propagação do coronavírus SARS-CoV-2 e suas variantes. No início de 2020, líderes mundiais afirmavam que os seus países não estavam preparados para uma epidemia com a gravidade da COVID-19. Não se compreende estas afirmações dado que, ainda no século XX, inúmeros estudos, relatórios e artigos de opinião, nos domínios da estratégia e da medicina, elencavam “epidemias” e “pandemias” como “ameaças à segurança sanitária dos povos”.
O Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), ainda em vigor e que foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, de de 5 de abril (Diário da República de 05-04-2013), define as prioridades do Estado em matéria de defesa, de acordo com o interesse nacional, sendo “parte integrante da política de defesa nacional”, é explícito: “Portugal está sujeito a riscos ambientais e tem que melhorar a sua capacidade de prevenção, adaptação e resposta rápida, entre outros, ao desafio das pandemias e outros riscos sanitários, capazes de criar não só números significativos de vítimas, como de causar problemas de segurança adicionais pelo pânico que podem gerar.” O CEDN recomenda “uma estratégia nacional sanitária-epidemiológica”.
No entanto, as responsabilidades resultantes da implementação da reforma “Defesa 2020”, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 26/2013, de 11 de abril (Diário da República, 1.ª série, n.º 77 de 19-04-2013)”, sobrepuseram-se às preocupações pandémicas enunciadas no CEDN. O exemplo que o MDN, publicamente, tem designado de “dúvidas iniciais sobre o apoio das Forças Armadas na resposta à pandemia, que só foram resolvidas a partir de um seu despacho de outubro de 2020”, reflete a inércia criada pela falta de estudos de planeamento estratégico nacional, impensável num País de recursos limitados que até dispõe de dois “conceitos estratégicos”, ambos decididos em Conselho de Ministros, em abril de 2013, no intervalo de uma semana.
Apesar de nem os diferentes Governos nem opinião pública portugueses terem dado importância CEDN-2013 que alguns, na atual crise sanitária, apelidam de “desatualizado”, a situação pandémica conhecida noutros países, desde janeiro de 2020, deu os alertas necessários para que, seguindo o princípio da “previsão”, se planeasse uma resposta para o apoio militar à crise que se avizinhava, pois os responsáveis políticos e militares dispunham das competências que a lei em vigor lhes confere para a tomada de decisões adequadas para o emprego de unidades militares ou módulos especializados, em conjunto ou de um só ramo.
Recorda-se que, em 29 de abril de 2020, quase dois meses após a confirmação dos dois primeiros casos de infeção pelo vírus SARS-CoV-2 e um mês e meio depois de verificado o primeiro óbito por COVID-19, em Portugal, na publicação «Especial Pandemia» da Série E-Briefing Papers do IDN, com o título COVID-19 – Que impacto nas Forças Armadas?, Nuno Lemos Pires afimava:
“(…). Ainda a crise dava os primeiros indícios e já os militares planeavam e se preparavam. Antecipar. Faz parte do «ethos», antecipar, perspetivar, planear, para o cenário mais provável acautelando sempre o mais perigoso. É assim quando se antecipam ameaças e riscos – a possibilidade de pandemias integrava os cenários previstos no Conceito Estratégico Militar de 2014 – e, desde a primeira hora, que os militares individualmente estavam preparados e as suas unidades prontas, ou seja, disponíveis 24 horas, para qualquer situação, para qualquer cenário possível. Não é às Forças Armadas que cabe o papel principal num combate a uma pandemia, mas esta é também uma das suas missões. Assim, desde muito cedo que se definiu o estado final – na linguagem militar, o «end-state» – pretendido – ajudar as pessoas, sem distinção de nacionalidade, geografia ou estatuto. Mas também se definiu o centro de gravidade – outro termo do planeamento estratégico –, que foi simples de estabelecer – responder aos pedidos de apoio das autoridades primariamente responsáveis pelo combate à pandemia: o Serviço Nacional de Saúde, a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil e as Forças e Serviços de Segurança. Prontos e discretos, os militares disponibilizaram-se para apoiar, de forma planeada, racional e deliberada, o País, as pessoas, respondendo de forma afirmativa aos pedidos. (…)”
Com o Despacho n.º 10775/2020 de 28 de outubro (Diário da República, 2.ª série, n.º 214/2020 de 03-11-2020) o MDN decidiu que, “de forma a responder aos desafios impostos pela propagação do vírus COVID-19, os ramos das Forças Armadas contribuirão com os recursos humanos e materiais que se revelem necessários a apoiar as entidades competentes, no âmbito desta emergência de saúde pública” e, para o efeito, “delegou no Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas a competência para, reunir e ativar, os meios referidos, ficando estes na sua dependência, nos termos previstos no Código de Procedimento Administrativo e na LOBOFA”.
Neste quadro, militares do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), da Marinha, do Exército e da Força Aérea continuaram a cumprir, de forma exemplar, as tarefas cometidas no âmbito do apoio ao combate à COVID-19, no Continente e nas Regiões Autónomas, mas a decisão ministerial poderia ter sido antecipada, a janeiro de 2020, quando se verificou a potenciação da ameaça viral no País.
Os portugueses vivem em paz e em democracia!
Em 09-04-2021, dia do 103.º aniversário do desastre militar do Corpo Expedicionário Português, em La Lys (Flandres, fronteira franco-belga), durante a Grande Guerra (1914-1918), deram entrada na Assembleia da República, duas propostas do Governo no sentido de reforçar as competências do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), baixando as posições da Marinha, do Exército e da Força Aérea na administração do Estado:
– Proposta de Lei n.º 85/XIV/2.ª (GOV) que altera os Artigos 14.º (Ministro da Defesa Nacional), 23.º (Integração das Forças Armadas na administração do Estado) e 46.º (Programação Militar) da Lei de Defesa Nacional (LDN), aprovada pela Lei Orgânica n.º 1B/2009, de 7 de julho, e alterada pela Lei Orgânica n.º 5/2014, de 29 de agosto;
– Proposta de Lei n.º 84/XIV/2.ª (GOV) que aprova, em anexo, a Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA) e, em consequência, revoga a Lei Orgânica n.º 1-A/2009, de 7 de julho, alterada pela Lei Orgânica n.º 6/2014, de 1 de setembro.
– Três dias após estas iniciativas, o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português (PCP) apresentou dois projetos de Lei com propostas de alterações à LDN e à LOBOFA, “visando, entre outros aspetos, recentrar os poderes do Comandante Supremo das Forças Armadas e adequar as regras gerais do exercício dos direitos dos militares ao quadro constitucional, aproximando-os do patamar de direitos dos militares da maioria dos países da União Europeia e, também com o objetivo de restabelecer alguns aspetos da autonomia dos três ramos das Forças Armadas, designadamente no processo de escolha e nomeação dos militares para a sua estrutura superior”. Os referidos documentos são:
– Projeto de Lei n.º 792/XIV/2.ª (PCP) que altera a os Artigos 10.º (Comandante Supremo das Forças Armadas), 11.º (Assembleia da República), 13.º (Primeiro-Ministro), 16.º (Conselho Superior de Defesa Nacional), 27.º (Regras gerais sobre o exercício de direitos), 28.º (Liberdade de expressão), 29.º (Direito de reunião), 30.º (Direito de manifestação), 31.º (Liberdade de associação) e 32.º (Direito de petição coletiva) da LDN;
– Projeto de Lei n.º 793/XIV/2.ª (PCP) que altera Artigos 11.º (Competências do CEMGFA), 17.º (Competências dos Chefes de Estado-Maior), 18.º (Nomeação dos Chefes de Estado-Maior) e 24.º (Nomeações) da LOBOFA.
No dia 20 de maio, no Parlamento, foram aprovadas as propostas do Governo e os dois diplomas baixaram à Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República (CDN), para discussão na especialidade.
O momento e a forma, invulgarmente pouco comuns, como o MDN deu a conhecer publicamente as propostas governamentais, primeiro, no pretérito dia 17 de fevereiro, através de órgãos de comunicação social e, posteriormente, em 23 do mesmo mês, durante uma audiência na CDN, surpreenderam militares e outros cidadãos em geral e ainda suscitam muitas preocupações por, até ao momento, não terem sido dadas a conhecer as incidentes intenções do Governo, nomeadamente, os projetos dos decretos-lei relacionados com as orgânicas do EMGFA e dos ramos.
Na altura, o MDN afirmou tratar-se da intenção de alargar as competências do CEMGFA para que este tenha “à sua disposição, a qualquer momento, as forças de que precisa para executar as suas missões” e favorecer uma “visão de conjunto sobre as necessidades e processos de investimento das mesmas”.
No entanto, nas propostas governamentais, as alterações são justificadas com “a melhoria da articulação político-militar, nomeadamente através de uma distinção mais clara entre a orientação estratégica e a execução, o reforço da unidade de comando das Forças Armadas, aos níveis estratégico e operacional, a minimização de redundâncias de competências e de estruturas e o esclarecimento de situações que podem ser equívocas quanto à linha de comando.” Os argumentos pretendem explicar a perda de autonomia dos Chefes de Estado-Maior (CEM), para estes “passarem a depender hierarquicamente do CEMGFA para todos os assuntos militares e respondendo este em permanência pela capacidade de resposta militar das Forças Armadas”.
É óbvio que qualquer alteração no topo das Forças Armadas se repercute na organização, funcionamento e disciplina de uma instituição hierarquizada, até aos postos da base, pelo que, num Estado de Direito, essa é, entre outras, uma razão que torna impensável que uma entidade com responsabilidades na Instituição Militar assuma publicamente, de forma facciosa e passível de instigar divisionismos perturbadores da coesão militar, uma prática de contactos informais com militares no ativo sobre assuntos de serviço.
Pelas respetivas Leis Orgânicas, o EMGFA, a Marinha, o Exército e a Força Aérea, são dotados de autonomia administrativa, na dependência do MDN. No enquadramento legal em vigor, o CEMGFA já dispõe dos instrumentos legais para o exercício, de pleno direito, do comando operacional das forças e dos meios da componente operacional do sistema de forças, em todas as situações, incluindo o estado de guerra, e para as missões conjuntas e externas das Forças Armadas, dispondo, para este efeito, do Comando Conjunto para as Operações Militares. Porém, não podem ser previstas todas as situações em que as Forças Armadas poderão ser chamadas a atuar, nos termos da Lei.
Não é demais afirmar que o CEMGFA, enquanto responsável pelo planeamento e implementação da estratégia militar operacional, tem ao seu dispor a Marinha, o Exército e a Força Aérea, ramos militares que têm como missão principal participar, de forma integrada, na defesa militar da República, nos termos da Constituição e da Lei, sendo fundamentalmente vocacionados para a geração, preparação e sustentação das forças da componente operacional do sistema de forças, assegurando também o cumprimento das missões reguladas por legislação própria e das missões de natureza operacional que lhes sejam atribuídas pelo CEMGFA.
Desde 1982, o CEMGFA tem competências adequadas ao cumprimento das missões operacionais das Forças Armadas pelo que, ao longo de 25 anos, os detentores do cargo, oficiais generais dos três ramos com conhecimentos, pensamento estratégico, capacidade de liderança, experiência de comando e senso comum, com os CEM, projetaram forças conjuntas ou de um único ramo que, em diversas partes do mundo, em missões de paz e humanitárias da ONU, da OTAN ou da UE, honraram Portugal e mereceram rasgados elogios.
Na cerimónia das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 10 de junho passado, na cidade do Funchal, o Presidente da República (PR) e Comandante Supremo das Forças Armadas (CSFA), aludiu aos “milhares de portugueses que estiveram, mês a mês, semana a semana, dia a dia, hora a hora, segundo a segundo, a cuidar de todos nós”, no âmbito da pandemia COVID-19, e teve “uma palavra, ainda mais forte e mais rendida e emocionada, para com as mulheres e os homens que, na Saúde, por todo o país, salvaram vidas e velaram por pacientes”.
Neste propósito, o PR e CSFA também homenageou os militares, impondo as insígnias de Membro Honorário da Ordem Militar de Cristo aos Estandartes Nacionais do EMGFA, da Marinha, do Exército e da Força Aérea.
Anteriormente, em 4 de novembro de 2018, por ocasião do desfile militar que assinalou o 100.º aniversário do Armistício da Grande Guerra, o PR e CSFA enalteceu a participação dos militares portugueses, ao longo da História de Portugal, e prestou homenagem “a quem deu à vida por um mundo melhor, na terra, no mar e no ar, um sem número de combatentes, que se bateram pela Pátria e pela Humanidade e que ainda hoje se batem”. Na oportunidade, o PR ainda referiu: “sem vós, militares de Portugal, sem o vosso prestígio, sem o respeito e admiração pela vossa missão insubstituível não há liberdade, nem segurança, nem democracia, nem paz que possam vingar e quem, dentro ou fora, de vós, isto não entender, não entende nada do passado, do presente e do futuro de Portugal».
Consequente com as suas palavras, o PR e CSFA impõs as insígnias de Membro Honorário da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito Membro, nos estandartes militares da Marinha, do Exército e da Força Aérea.
Partindo do princípio que a resolução de qualquer problema não pode assentar em equívocos remendos e sendo do conhecimento público que a “questão determinante” das Forças Armadas, desde há muito tempo, é o elevado grau de limitações em recursos para o cumprimento das missões que lhes competem, naturalmente, surgem duas perguntas:
Qual é a “questão determinante”, de nível estratégico ou operacional, que exige uma reforma da estrutura superior das Forças Armadas quando tudo indica que a modernização destas deve focar-se nos recursos da Armada, do Exército e da Força Aérea?
Vai o reforço das competências do CEMGFA colmatar as limitações à operacionalidade das Forças Armadas?
A exposição de motivos para a “nova LOBOFA” refere que a pretensa reforma “não representa uma rutura com o passado, antes procura dar continuidade a reformas anteriores”. Embora esta explicação, sem concretizar “lições aprendidas” e aludindo vagamente a “novos desenvolvimentos na tipologia de ameaças e missões prevalecentes”, a proposta rompe com a realidade atual, designadamente, em três aspectos: subordina hierarquicamente os CEM ao CEMGFA, sem um desígnio nacional justificável, elimina a capacidade deliberativa do Conselho de Chefes de Estado-Maior, que passa a ser órgão de consulta do CEMGFA e alivia a agenda do MDN, passando os assuntos dos ramos a ser intermediados pelo CEMGFA, exceto nas missões de busca e salvamento marítimo e aéreo, da responsabilidade da Marinha e da Força Aérea, respetivamente, ou nos projetos da lei de programação militar e da lei das infraestruturas militares, globalmente.
O MDN afirmou, na CDN sobre as autonomias dos ramos, que “está a pensar nos desafios de 2020 e 2030, muitíssimo interessado nas reacções, nas ideias dos oficiais que estão no ativo, dos oficiais superiores, dos oficiais subalternos, daqueles que vão ser as forças armadas do futuro e não despreza, de forma alguma a experiência do passado mas pensa que deve ser equilibrada também com aquilo que vem para o futuro”. Posteriormente, o MDN disse publicamente que “não são os militares e muito menos os militares do passado que devem decidir sobre como funcionam as Forças Armadas do presente e do futuro”.
Tais afirmações apresentam visões que não correspondem a realidades, isto é, a promessa de um futuro esperançoso, sem tratar dos atuais problemas das Forças Armadas, a disponibilidade para o debate que afinal não é incentivado e a ideia de divisionismo que não existe entre militares do ativo, reserva e reforma.
Ainda na CDN atrás referida, o MDN afirmou que “entre os países da NATO já não se encontra um modelo parecido com o português, na medida em que já evoluíram para um modelo mais adequado que é o CEMGFA ter autoridade sobre os três ramos e também sobre as novas valências, da ciberdefesa e da saúde militar”.
Além de outros aspectos não concordantes com tal afirmação, verifica-se que estes países, com diferenças de regimes, níveis de desenvolvimento, formas de governo, culturas, tradições e designações dos respetivos ministérios da defesa, são distintos na organização, recursos e capacidades das respetivas forças armadas e designam o cargo mais elevado da hierarquia militar de “chefe de estado-maior de defesa”, cujas funções, na globalidade, não correspondem às previstas nos articulados das propostas em discussão que privilegiam o modelo de “estado-maior conjunto”.
No intervalo de tempo que mediou entre o anúncio da reforma e a votação dos projetos legislativos na AR, foram trazidas a público duas publicações relacionadas com o assunto.
A primeira, em março, uma síntese informativa sobre Organização Superior da Defesa Nacional: as Funções do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas – Enquadramento Internacional, elaborada na Divisão de Informação Legislativa e Parlamentar da AR, a pedido do Presidente da CDN da AR, que “teve por objeto a análise, na Bélgica, Espanha, França e Reino Unido, das funções atribuídas nestes países ao titular do cargo equivalente ao de CEMGFA, bem como a relação do mesmo com o respetivo responsável politico e os chefes dos diferentes ramos das Forças Armadas”). Trata-se de um trabalho simples, claro e bem executado por assessores da AR, com a correta compreensão das diferentes especificidades e dependências das estruturas orgânicas e das relações de comando superior militares nos países analisados.
A outra, uma publicação da Série E-Briefing Papers do Instituto da Defesa Nacional (IDN), com o título Tutela, Direção e Comando Superior das Forças Armadas na Europa do Século XXI – Análise Histórica e Comparativa, publicada em maio, elaborada por Bruno Cardoso Reis, académico, investigador do IDN e assessor do MDN, que pretende comparar as estruturas de comando superior das Forças Armadas de apenas quinze (ou dezasseis?) países europeus: Alemanha, Bélgica, Bulgária, Croácia, Dinamarca, Eslovénia, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Hungria, (Letónia?), Países Baixos, Reino Unido, República Checa e Suécia). De uma forma geral, os casos apresentados, onde se incluem os países referidos nos parágrafos anteriores, privilegiam o conceito de “chefe de estado-maior de defesa” e não o de “estado-maior conjunto”. Trata-se de um trabalho pouco estruturado, com muitas lacunas e alguns equívocos ou discrepâncias.
A falta de um estudo credível sobre “exemplos de reforma em países aliados”, com critérios certificados e dispondo de um glossário especializado válido, onde sejam claramente explicados os conceitos de organização militar, as estruturas de base e operacionais dos ramos militares e as modalidades de comando das estruturas superiores das Forças Armadas, tal como o desconhecimento de um balanço prévio sobre lições aprendidas, nomeadamente, quanto a dificuldades e problemas no sistema vigente, fragilizam, ou mesmo descredibilizam, a obtenção do tão desejado “consenso”.
Nestes dois estudos publicados também sobressai o desconhecimento dos distintos autores no que concerne a bases de organização das Forças Armadas. Por exemplo, sobre a estrutura de organização das Forças Armadas Espanholas, no folheto sobre Tutela, Direção e Comando Superior das Forças Armadas na Europa do Século XXI (…), diz-se:
“ESPANHA: depois de importantes reformas em 2010 e 2014, acabou de realizar uma nova reforma em maio de 2020, visando aprofundar as anteriores, de acordo com o mote “el valor de lo conjunto”. Os Chefes dos Estados-Maiores dos Ramos ficam principalmente responsáveis pelo aprontamento e sustentação das forças. Cabe ao CHOD o comando direto de toda a dimensão operacional e reforça-se o Estado-Maior Conjunto (EMACON) e o Comando Conjunto de Operações (MOPS), é criado um Comando Conjunto do Ciberespaço. A Unidade Médica de Emergência (UME) está na dependência direta do CHOD.”
Relevando apenas “el valor de lo conjunto operativo”, o autor publicou o organograma da estrutura operacional do CHOD, desintegrado da estrutura orgânica básica do Ministerio de Defensa de España [MDE] (https://www.
defensa.gob.es/Galerias/ministerio/organigramadocs/orga nigrama-minisdef.pdf), em anexo, o qual, sem equívocos, explicita as dependências do CHOD e de cada um dos Chefes de Estado-Maior, da Marinha, do Exército e do Exército do Ar, em relação ao Ministro de Defensa, bem como as relações de comando operacional na estrutura superior das Fuerzas Armadas, constantes, designadamente, no Real Decreto 521/2020, de 19-05, por el que se establece la organización básica de las Fuerzas Armadas (Boletín Oficial de España, num. 143, de 21-05-2020, pp. 33781-33793), de que se transcreve o respetivo articulado, nas partes correspondentes às matérias consideradas para o presente texto:
“(…)
TÍTULO I
De los Jefes de Estado Mayor
Artículo 4. El Jefe de Estado Mayor de la Defensa.
1. El Jefe de Estado Mayor de la Defensa ejerce, bajo la dependencia de la persona titular del Ministerio de Defensa, el mando de la estructura operativa de las Fuerzas Armadas y el mando del Estado Mayor de la Defensa.
(…).
Artículo 5. Los Jefes de Estado Mayor del Ejército de Tierra, de la Armada y del Ejército del Aire.
Los Jefes de Estado Mayor del Ejército de Tierra, de la Armada y del Ejército del Aire ejercen, bajo la autoridad de la persona titular del Ministerio de Defensa, el mando de su respectivo Ejército o de la Armada.
(…).
TÍTULO II
Estructura operativa de las Fuerzas Armadas
CAPÍTULO I
Disposiciones generales
Artículo 6. Concepto y organización de la estructura operativa.
1. La estructura operativa es la organización establecida para el desarrollo de la acción conjunta y combinada y dispuesta para el empleo de la fuerza en operaciones, en cumplimiento de las misiones de las Fuerzas Armadas, todo ello con arreglo a lo dispuesto en los artículos 11, 15 y 16 de la Ley Orgánica 5/2005, de 17 de noviembre.
2. La estructura operativa de las Fuerzas Armadas se organiza en una cadena de autoridades militares situadas en tres niveles:
a) Nivel estratégico: el Jefe de Estado Mayor de la Defensa.
b) Nivel operacional: el Comandante del Mando de Operaciones y los comandantes de aquellas organizaciones operativas que determine el Jefe de Estado Mayor de la Defensa para la ejecución de los planes de contingencia.
c) Nivel táctico: los comandantes de las organizaciones operativas que se generen.
3. Las autoridades citadas en el apartado anterior contarán, bajo su mando y dependencia orgánica, con los órganos de apoyo y aquellos otros que se determinarán en este real decreto y en las disposiciones que lo desarrollen, necesarios para el ejercicio de sus competencias y el cumplimiento de sus funciones.
Artículo 7. Las organizaciones operativas y sus comandantes.
1. Las organizaciones operativas podrán crearse con carácter permanente o temporal.
2. Las organizaciones operativas permanentes estarán directamente subordinadas al Jefe de Estado Mayor de la Defensa. En la ejecución de las operaciones asignadas estarán bajo el control operacional del Comandante del Mando de Operaciones, con arreglo a la doctrina militar nacional o internacional que proceda. Sus comandantes serán responsables del planeamiento, conducción y seguimiento de las operaciones que se determinen. La persona titular del Ministerio de Defensa, a propuesta del Jefe de Estado Mayor de la Defensa, creará estas organizaciones operativas permanentes y desarrollará su composición y funciones y adaptará su misión, dependencia y ámbitos de operación a los cambios del entorno operativo [negrito do autor].
3. Las organizaciones operativas que se creen con carácter temporal tendrán la estructura de mandos y fuerzas que determine el Jefe de Estado Mayor de la Defensa, con arreglo a la doctrina militar nacional o internacional que proceda.
4. Desde el momento de su nombramiento, corresponde a los comandantes de las organizaciones operativas el ejercicio de las competencias y funciones que la doctrina militar aplicable, nacional o internacional, les asigna y, en particular: a) Tomar parte, a su nivel, en el planeamiento de aquellas operaciones en las que participe. b) Ejercer el mando de las fuerzas puestas bajo su autoridad de acuerdo con lo establecido en los planes en vigor. c) Llevar a cabo la integración de las fuerzas bajo su mando. d) Ostentar, en su caso, la representación militar nacional que se determine ante los mandos aliados o multinacionales de su nivel.
(…).”
Também o IDN, no dia 05-05-2021, levou a cabo uma conferência online alusiva ao tema Reforming Defence – Concepts and Compared Experiences, com “o objetivo de discutir perspetivas analíticas sobre as reformas da Defesa e analisar comparativamente experiências de diferentes países”, em que participaram “reputados académicos nas áreas dos estudos de segurança e relações civil-militares”, a saber:
– Portugueses (a Diretora do IDN, o autor da publicação atrás referida, Nuno Severiano Teixeira e Ana Santos Pinto, ambos do IPRI-Nova, e João Rebelo, da Comissão Portuguesa do Atlântico);
– Estrangeiros (Thomas Bruneau, professor emérito do Department of National Security Affairs at the Naval Postgraduate School, Monterey – California), Anthony King (professor da Universidade de Warwick – Reino Unido), Félix Artega (oficial superior na reserva, do Exército Espanhol, e professor no Instituto Real Elcano – Madrid) e Olivier Zajec (Professor de Direito da Universidade Jean Moulin Lyon 3 – França).
Não se conhecem as eventuais conclusões deste webinar nem foram tornados públicos os contributos do mesmo para a preparação técnico-jurídica nem para os decisores políticos da reforma pretendida. Não foram dadas explicações quanto à não intervenção de militares das Forças Armadas Portuguesas no evento.
Não é correto comparar situações incomparáveis. Dos 28 Estados europeus membros da NATO e dos 27 Países da UE, são 21 os Estados que integram as duas Alianças e, destes, apenas três – Bélgica, Espanha e França, duas monarquias e uma potência nuclear – são os indicados como referência para o estudo do modelo que se pretende instituir em Portugal.
As diferenças entre os países são mais notórias quando comparados os conceitos estratégicos de defesa nacionais e os reflexos destes na organização das correspondentes forças militares. Comparar organizações militares pelo critério da subordinação hierárquica dos CEM, o que é um processo perigosamente redutor para importar modelos de organização de forças armadas, embora, para a concentração de poderes no CEMGFA seja também utilizado o argumento de que “a grande maioria dos países aliados com Forças Armadas de referência, no espaço geopolítico da Europa Ocidental e Atlântica” tem esse modelo.
Portugal não tem um conceito estratégico que justifique a alteração do modelo em vigor. No entanto, em coerência com o seu Programa – 2019-2023, o Governo enviou também ao Parlamento uma proposta de lei das Grandes Opções para 2021-2025, reiterando uma “reorganização das Forças Armadas em função do produto operacional, no sentido de privilegiar uma estrutura de forças baseada em capacidades conjuntas e assente num modelo de organização modular e flexível e uma efetiva arquitetura de comando conjunto”.
Nenhuma força conjunta ou de componente (marítima, terrestre, aérea ou cyber) poderá ter melhor desempenho sem os recursos adequados ao cumprimento das missões. Dizer-se que as críticas às pretensas alterações “são contra esta reforma”, é um erro, pois tais comentários apelam, isso sim, a um debate prévio, que inclua as Forças Armadas, preferencialmente fora da crise pandémica, numa oportunidade para se conseguir uma boa reforma. Em assuntos que envolvem as Forças Armadas, não deve haver vencedores nem vencidos.
Um processo de alterações da LDN e da LOBOFA exige o consenso, com tranquilidade e transparência de métodos, num tempo adequado e sem pressões apaixonadas, beneficiando de consultas ponderadas de especialistas, incluindo a participação, além do MDN e do EMGFA, dos ramos e do Instituto Universitário Militar, sem beliscar a coesão dos militares, um dos pilares das Forças Armadas, antecipando a discussão e a decisão nos órgãos institucionais, aliás como foi sempre prática noutros processos legislativos deste âmbito.
Não é despiciendo estar atento a um conselho de Bruno Reis, incluso na sua obra acima citada, igualmente como contributo para o “bom-sucesso” da dita reforma: “haver um amplo debate público sobre estes temas, com especialistas civis e militares, naturalmente, no que diz respeito a estes últimos, de acordo com as regras habituais – no resto da Europa e em qualquer democracia consolidada – que garantem que ninguém se arroga indevidamente o estatuto de porta-voz das Forças Armadas fora da hierarquia legalmente constituída e do respeito pela tutela democrática das mesmas (p. 10)”.
De igual modo, a CDN, nos seus Pareceres de 11-05-2021, sobre as propostas e projetos de lei elencados no n.º 2 do presente texto, antes da primeira Votação Parlamentar dos mesmos, assumia, em relação às mesmas e no referente a “consultas facultativas”, que “em sede de discussão na especialidade poderá a Comissão deliberar no sentido da audição do MDN, do CEMGFA e dos CEM da Armada, do Exército e da Força Aérea, para além de, à semelhança do sucedido no processo de revisão anterior, de antigos incumbentes dos cargos mencionados, ou outras personalidades de especial relevo ou ligação às áreas da Defesa Nacional e das Forças Armadas”. Na discussão na especialidade, foram ouvidos apenas os quatro Chefes Militares, em audiências não públicas.
As intervenções públicas do MDN sobre o assunto e o facto de o mesmo governante ter considerado a defesa da autonomia dos ramos militares, que consta das Leis Orgânicas dos mesmos, como “guerras passadas, de natureza corporativa”, bem como a desconsideração de militares da reserva e reforma, fazem recordar tempos da “peste grisalha” de má memória!
Congratulamo-nos pela vinda a público da notícia de que, em sede de discussão e votação indiciária na especialidade, a CDN incluiu a “autonomia administrativa” dos Ramos nas propostas em apreço, apesar de se manter o exercício de comando completo do CEMGFA em relação àqueles.
O défice de debate sobre alterações à LDN e à LOBOFA, observado, poderia ter sido mais compensado na Assembleia da República, onde a CDN teve a oportunidade de desenvolver mais esforços para habilitar os deputados a decidirem, com conhecimento e responsabilidade, sobre matérias tão relevantes no âmbito da Defesa Nacional e das Forças Armadas.
Num país com problemas (sociais, económicos, financeiros, sanitários…) não se compreende que se tenha gerado um “não problema” sobre a estrutura superior das Forças Armadas sem que, previamente, tivesse sido atualizado o CEDN.
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* Artigo submetido à Revista Militar para publicação em 23 de junho de 2021.
Habilitado com os Cursos de Infantaria, da Academia Militar, Geral de Comando e Estado-Maior e Superior de Comando e Direção, do Instituto de Altos Estudos Militares; possui outros Cursos de que se destacam o de Oficial de Informação Pública do Comando Aliado da Europa da OTAN (Bélgica), o Curso Militar de Direito Internacional dos Conflitos Armados, do Instituto de Direito Humanitário de Sanremo (Itália) e o Diploma de Pós-Graduação em Estudos Europeus da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Ao longo da sua carreira, prestou serviço em várias Unidades e Órgãos do Exército, nomeadamente, no Regimento de Infantaria de nº 3, em Beja, que comandou, e no Estado-Maior do Exército, onde desempenhou o cargo de Chefe da Divisão de Pessoal. Além disso, também desempenhou carg