O processo da reforma da estrutura superior das Forças Armadas (FA) promovida pelo Governo, em discussão parlamentar na data em que este texto foi escrito, merece ser abordado de duas perspetivas diferentes relativamente autónomas: a forma e o conteúdo. Comecemos pela primeira, pelo modo como o processo foi conduzido politicamente. Os dirigentes da Nação têm de estar cientes de que a legitimidade democrática subjacente ao exercício da sua autoridade não deve ser utilizada como refúgio ou escapatória para práticas autocráticas. Bem pelo contrário, numa democracia, assiste aos cidadãos o direito de escrutinarem as decisões políticas. Não é saudável que os detentores do poder consideram o escrutínio uma coisa “chata”, incorrendo no erro de pensar que a legitimidade democrática de que gozam serve para tudo.*
As reações ao projeto, nomeadamente por parte de militares na reserva e na reforma, teriam seguramente contornos diferentes se não tivesse o processo sido gerido da forma desastrada e amadora que é conhecida, criando inabilmente antagonismos indesejáveis e desnecessários.
Não só não se percebe porque é que os Chefes de Estado-Maior dos Ramos (CEM) foram excluídos do processo, como não se entende porque não lhes foram explicados os motivos da reforma. Reveste-se de contornos vexatórios pedir-lhes uma resposta a um assunto desta amplitude em menos de 24 horas.
É grave tentar justificar este tipo de comportamentos com a legitimidade democrática. Para além desta legitimidade, também existe responsabilidade e respeito democrático. Ninguém entende a razão que subjaz à forma descortês e desrespeitosa como o Ministro da Defesa Nacional (MDN) tratou os CEM dos três Ramos.
O “debate” decorreu com alguns incidentes facciosos. Duas notas, entre muitas, merecem destaque. A publicação de um pseudo estudo sobre estruturas superiores de forças armadas de vários países, onde se comparavam, entre outros, os casos da Eslovénia, da Croácia, da Alemanha e do Reino Unido, sem se explicar o que os distingue. Cabe dizer que a comparação é enviesada, selecionando convenientemente os assuntos para identificar “tendências”.
Outro caso, prende-se com as intervenções do Chefe do Estado-Maior-General da Forças Armadas (CEMGFA) e dos CEM na Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República (CDN). À boa maneira “orwelliana”, apenas a do primeiro foi tornada pública, por ser favorável à narrativa das propostas governamentais. As dos CEM não foram divulgadas, impossibilitando a opinião pública e os especialistas de conhecerem os seus argumentos.
A não audição de várias organizações pela Comissão Parlamentar de Defesa é igualmente reveladora do estado da arte sobre a matéria. O tema assume contornos cínicos quando fontes do MDN afirmam que “para uma reforma ser bem-sucedida é importante… haver um amplo debate público sobre estes temas”. É claro que se tratou de uma decisão política sem ser precedida de qualquer debate, assumindo-se que a legitimidade política torna uma perda de tempo e um desperdício ouvir intervenientes habilitados, esquecendo que a democracia não se restringe nem se esgota nos atos eleitorais.
A matéria de conteúdo é igualmente de uma imensa gravidade. Se esta reforma pretende adotar as melhores práticas, como anuncia, fazendo o que de melhor fazem os nossos parceiros e aliados, devia ter começado por fazer a reforma da defesa e não a da estrutura superior das Forças Armadas. Esta última seria integrada e uma consequência da primeira. Esta iniciativa em que o MDN está tão empenhado não conduz à criação de um “Estado-Maior de Defesa” nem de um “Chefe de Defesa”, como existe nos países considerados referências.
Tal ousadia implicava mudanças estruturais significativas no Ministério da Defesa. Tal arrojo permitiria, por exemplo, que o MDN monitorizasse a implementação das ações relativas às estratégias setoriais identificadas no conceito estratégico de defesa nacional, e que terminasse com a duplicação de ações entre o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) e a Direção-Geral de Política de Defesa Nacional, e fundir estes dois organismos. Referimo-nos, por exemplo, ao planeamento estratégico de defesa. Esta reforma reveste-se ainda da singularidade de o MDN prescindir de funções e atribuí-las ao CEMGFA.
Argumenta-se, para justificar um novo modelo de reforma, vagamente e em abstrato, como aumento da eficácia e da eficiência sem explicar como e porquê. Em que domínios se pensa aumentar a eficácia e a eficiência das FA? Que estudos foram feitos? Que poupanças vai provocar? Quantos militares vão ser libertados de funções de Estado-Maior para a componente operacional?
Convém recordar a uns e explicar a outros que a Força de Reação Imediata é única situação em que as FA se envolvem nacionalmente ao nível conjunto. O conceito “conjunto” aplica-se ao nível operacional, e com esforço ao nível tático em unidades de escalão elevado; nunca ao nível das unidades de escalão companhia e batalhão, os escalões em que Portugal destaca forças. Por isso, não passa de um exercício desajeitado destinado a audiências desinformadas afirmar que se não fizermos esta reforma arriscamo-nos a preparar as nossas FA para as guerras do passado, mas não para as guerras do futuro.
Como acontece frequentemente em muitos debates sobre coisas sérias em Portugal, também este teve o “mérito” de se consumir com questões marginais. A questão central não se prende, ao contrário do que tem dominado a “discussão”, com o reforço do comando operacional do CEMGFA, que já existia do antecedente, estando agora previsto ser reforçado, mas sim na exagerada concentração de poderes no CEMGFA noutros domínios, que não o operacional, indevidamente confundido e tratado como comando operacional. Trata-se, pois, não de comando operacional, mas de algo que se aproxima de comando completo. Referimo-nos à atribuição ao CEMGFA de poderes na área financeira, dos equipamentos e das infraestruturas. Não faz sentido concentrar numa pessoa um leque tão alargado de poderes. É perigoso e desnecessário. Como demonstraremos, não se traduz em benefícios. Abre as portas ao despotismo, sintomas já noticiáveis sem a lei ter sido ainda aprovada.
Qual a vantagem em reforçar o comando operacional do CEMGFA? Não foi explicado. Nenhuma missão deixou até hoje de ser cumprida devido às “limitações” do modelo em vigor. Apesar de não ter sido explicado, podemos concordar que possa ser útil nalgumas situações. A centralização de poder que agora se vem propor pode eventualmente melhorar, nalguns casos, a rapidez da resposta operacional. Mas apenas isso. Os aspetos positivos estão longe de superarem os negativos. Não é problemática a criação de um Estado-Maior conjunto em apoio do CEMGFA, para dirigir operações militares longe do território nacional. O que não é admissível é o aproveitamento desse desenvolvimento potencialmente benéfico para alargar o poder do CEMGFA desnecessariamente a outras áreas funcionais.
Uma avaliação do mérito da iniciativa legislativa em causa exige respostas inequívocas a algumas questões incontornáveis. Por exemplo: porque é que o Conselho Superior Militar vai deixar de ser um órgão de Estado diretamente responsável pela defesa nacional? Porque é que o Conceito Estratégico Militar, presentemente elaborado pelo Conselho de Chefes de Estado-Maior (CCEM), vai passar a ser elaborado apenas pelo CEMGFA? Qual a razão para as missões específicas das FA elaboradas com base num projeto do CCEM passarem a ser elaboradas com base num projeto do CEMGFA? Que motivos levam a que o sistema de forças elaborado com base num projeto do CCEM passe a ser responsabilidade apenas do CEMGFA? Alguém que explique de modo claro quais os benefícios em passar aquelas prerrogativas de órgãos colegiais para o poder de uma única pessoa, e como é que essa transferência de competências vai aumentar a eficácia e a eficiência do funcionamento das FA.
Esta nova abordagem vem romper com o sistema de checks and balances em vigor, com a negociação que envolve, que, apesar das vicissitudes que encerra, tem provado ser eficaz. Dada as diferenças existentes entre os Ramos das FA, não há vantagem, nem faz sentido que decisões em matéria orçamental, planeamento estratégico militar, missão das FA, dispositivo e sistema de forças não resultem de um processo colegial. A isto, acrescentam-se as leis da programação e das infraestruturas militares. Não se vislumbra a vantagem de excluir os CEM do processo de decisão em matérias como o planeamento estratégico de médio e longo prazo, ou como a estratégia genética e estrutural, as quais não requerem nem exigem respostas rápidas, ao contrário das operações militares, onde a rapidez da decisão pode ser um fator diferenciador.
Parece óbvio que a concentração do poder decisional na discricionariedade de uma única entidade aumenta o risco de erro, sobretudo se essa entidade carecer de experiência profissional, em particular operacional, que o impeça de ponderar adequadamente o aconselhamento.
Não se conhece nenhuma organização saudável em que não exista tensão na alocação de recursos e onde não existam mecanismos de negociação para a dirimir. Essa tem sido a principal função do CCEM, que se pretende agora suprimir. Ao abolir o sistema de checks and balances materializado pelas atribuições do CCEM, rompe-se com as clausulas de salvaguarda existentes, exacerba-se o corporativismo e corre-se o sério risco de transformar o cargo de CEMGFA num ajuste de contas cíclico. Não há qualquer inconveniente que o estudo e o processamento daqueles assuntos seja feito pelo Estado-Maior conjunto. Deve, aliás, sê-lo. Mas a decisão sobre essas matérias tem de ser colegial. Uma coisa é o processamento dos estudos, outra é a decisão.
A centralização das decisões de natureza orçamental, excluindo uma vez mais os CEM, criará tensões corporativas e abrira a caixa de Pandora. O mesmo se aplica à Lei de Programação Militar e à Lei de Infraestruturas Militares. A ser aprovado o diploma em causa, o primeiro teste ocorrerá já no próximo ano durante a revisão da LPM. Um pensamento maturado sobre estas matérias desaconselha vivamente a concentração da decisão numa pessoa inibindo um processo negocial genuíno. Uma das consequências desta reforma será o aumento da competição entre os Ramos das FA pelos recursos escassos.
Se a justificação para a concentração de poderes é a eficiência, então podemos aplicar o mesmo critério a outros domínios da vida pública nacional. Porque será que temos serviços de informações internos e externos diferenciados? Por algum motivo os serviços de informações são organizações distintas, e com identidade própria. Imperativos de outra natureza assim o justificam. Seguindo o raciocínio que se quer agora aplicar às FA para justificar ganhos de eficiência, podíamos ter apenas um serviço de informações e poupar uma secretaria-geral do sistema de informações da República, de utilidade muito questionável, pelo menos nos termos em que foi concebida. Poderíamos aplicar este princípio a outros órgãos da República e ao sistema de equilíbrio de poderes estabelecido na Constituição da República. Seria uma discussão longa.
Outro argumento recorrentemente utilizado para justificar esta reforma é o das melhores práticas, recorrendo ao que se faz noutros países. O que é estrangeiro é bom. Esta postura lembra-nos Fernando Pessoa quando escrevia que “provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la, pois, mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz”. Parece ser o caso de alguns analistas que vêm acenar com modelos adotados por outros países com FA de dimensão igualmente reduzida (Bélgica, Holanda, Suécia e Dinamarca). Não se podem seguir modelos sem se perceber o racional da sua construção, as realidades históricas, políticas e estratégicas que lhe estão a montante. Não choca que na Bélgica, independente há menos de 200 anos e com problemas sérios de identidade nacional, o Exército passe a ser designado por componente terrestre. Neste capítulo, a Bélgica não poderá naturalmente servir de referência.
Será que na lista dessas boas práticas esses analistas estão a pensar: em selecionar o CEMGFA através da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP), em que num dia se é brigadeiro general e no outro general (quatro estrelas), como já aconteceu na Dinamarca? Em que um civil pode concorrer ao cargo de CEMGFA? Ou transformar a Marechaussee, a equivalente holandesa da Guarda Nacional Republicana (GNR), no quarto Ramo das FA sob o comando do MDN, em vez do Ministério da Administração Interna (MAI)?
Será que estes analistas estão a pensar no reforço da Intelligencia militar, como na Holanda, “dissolvida” em Portugal? Alguém deveria ainda explicar a singularidade e as vantagens de passar a rede de adidos militares para a dependência direta e funcional da DGPDN, quando faz todo o sentido mantê-la na cadeia de comando militar trabalhando em estreita coordenação com os serviços de informações militares, ou com os seus resquícios. Esta proposta, além de não se encontrar em linha com as melhores práticas dos nossos parceiros e aliados, baseia-se numa justificação falsa.
Uma vez que o MDN insiste nas melhores práticas levadas a cabo por parceiros e aliados, não poderia deixar de lhe sugerir duas: em primeiro lugar, promover uma “Revisão Estratégica de Defesa” e com base nela elaborar um “Livro Branco de Defesa”, para sabermos às quantas andamos e para onde vamos; em segundo lugar, que os serviços do seu Ministério façam os anuários estatísticos de Defesa. Estamos em 2021, e o último feito é de 2016. Esperemos que isto não seja um indício técnico da qualidade de funcionamento do seu ministério.
Dito isto, e mais havia a dizer, tem de ficar claro que esta reforma não fará as FA darem o salto em frente. Não vai melhorar o seu output operacional, nem as suas capacidades. Depois da sua aprovação e do foguetório mediático que lhe seguirá, as fragatas continuarão encostadas sem dinheiro para a manutenção e combustível, o arsenal do Alfeite continuará com o modelo de gestão autofágico e comatoso conhecido por todos. Situações semelhantes continuarão a ocorrer nos outros Ramos. Escusa, por isso, o MDN de apresentar esta reforma como a reforma do século, porque não o é e está longe de o ser.
Para que isso acontecesse, seria necessário um investimento em tecnologia e capacidades militares. Como é hábito em Portugal, esta “reforma” não tem um custo associado. Não sabemos quanto é que vai custar aos cofres do Estado. Inferir, sem fazer este exercício, que vai melhorar a eficiência, lembra-nos o ditado popular: presunção e água benta, cada um toma a que quer. Ainda hoje não se sabe quanto custou (nem quanto está a custar) a reforma levada a cabo há 15 anos no Exército, em que muitas decisões por inexequibilidade tiveram de ser revertidas.
Levanta-se ainda ao redor desta ideia reformista outra questão incontornável. Muitos mentores desta reforma, uns de forma mais audível do que outros, argumentam que a missão das FA já não é defender o território nacional, mas sim produzir segurança longe do território nacional. Este pensamento é uma das premissas escondidas subjacente a esta reforma. Insere-se numa lógica que escapa ao tema deste artigo, que se prende com a subjugação das identidades nacionais a identidades supranacionais, em detrimento da soberania nacional. Seria interessante saber como interpretam o facto de vários países da União Europeia terem forças de defesa territorial, como, por exemplo, a Dinamarca, um quarto Ramo das FA formado por reservistas vocacionado para a defesa territorial (a Home Guard) na dependência direta do Ministro da Defesa Nacional? O facto de a defesa territorial ser nalguns países uma tarefa de menor importância, dependendo da localização geográfica do país em causa, não significa que se tenha tornado obsoleta, mesmo quando não exista uma ameaça direta ao território nacional. Apenas diminui de importância.
O que está em causa neste debate não é um confronto maniqueísta entre conservadores retrógrados e progressistas iluminados, mas sim o confronto com a mediocridade de um pensamento materializado no projeto de reforma que se encontra para aprovação na Assembleia da República. O que era importante ter sido feito, não foi. O MDN não foi capaz de tornar as FA atrativas. Mesmo com o aumento do desemprego continuam a escassear voluntários, e só não há uma debandada generalizada dos quadros permanentes, porque foram agravadas as medidas que impedem a sua saída. As FA nacionais continuam a afastar-se das suas congéneres europeias, facto que a propaganda não consegue esconder nem iludir. A exiguidade para que caminham deveria ser motivo da maior preocupação. E isso não tem a ver com esta reforma da estrutura de comando, que nem paliativo chega a ser.
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* Artigo submetido à Revista Militar para publicação em 23 de junho de 2021.
Major-general do Exército Português, na situação de reserva.
Presentemente, é investigador do Instituto Português de Relações Internacionais.