Nº 2635/2636 - Agosto/Setembro de 2021
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Os princípios e o mérito
Dr.
José Pratas

Três anos de “coabitação” com militares profissionais em tempo de guerra permitem-me um juízo crítico sobre os seus hábitos, os costumes e o modo de organização das suas vidas.

A Instituição Militar, herdeira de nobilíssimas tradições e prestígio, foi, ao longo dos séculos, um exemplo de referência das virtudes com as quais a Nação se deveria identificar. As Forças Armadas consubstanciam, de facto, o espírito de missão, de serviço, de sacrifício e dedicação que, infelizmente, não tem paralelo em muitos sectores da sociedade civil. A atitude de prontidão, o dever de lealdade, a disciplina de comportamentos, o sentido do cumprimento de objectivos, a uniformização de critérios, a normalização de condutas, a definição de competências, a subordinação à hierarquia, são apenas alguns dos princípios que robustecem a organização e perpetuam a sua glória no tempo.

A integridade destes padrões de conduta estará, porventura, algumas vezes, desvirtuada pelos homens e mulheres que, tal como noutras partes da vida nacional, hipotecam e enxovalham transversalmente o bom nome das instituições, mas a mediocridade de alguns não deve comprometer os valores fundamentais que ainda assim prevalecem. Não serão aqueles que, a coberto da usurpação do pequeno poder, da negligência, dos abusos de autoridade, da prepotência gratuita, poderão denegrir os princípios e o mérito da fundação militar.

Infelizmente, algumas vezes, o sistema pode ser perverso e, pela rigidez da sua natureza, prisioneiro de si mesmo. Pode ser o seu carrasco, se acaso sucumbir o bom senso substituído pela má prática e a acefalia dos que gerem os seus destinos, conforme a temporalidade dos interesses de ocasião. Há disso exemplos em todas as plataformas da hierarquia e em todos os ciclos da História.

Em questões do dever de observância do princípio da submissão disciplinar, há que censurar todos os comportamentos mesquinhos, subservientes e medrosos que parasitam frequentemente o conceito de obediência assumida, corajosa e responsável. Tão desprezível é o abuso do mandante como a covardia do mandado, e só a robustez do carácter e a clarividência da razão poderão impedir os efeitos perniciosos de um e de outra.

No seu quotidiano, a rudeza de algumas atitudes de caserna não condiz com outros exemplos que demonstraram como é possível ascender na carreira com notável desempenho e fazer prevalecer a elegância, a inteligência, a cordialidade e a cultura, sobre a grosseria, a boçalidade e a ignorância de uns tantos. “Oficial e Cavalheiro” não têm que ser inimigos e nem a musculatura da autoridade nem a condição militar têm de fazer estalar o verniz.

Distinguiram-se, felizmente, aqueles que, pela sua lucidez, envergadura intelectual e trato amistoso, a par do seu prestígio e mérito militares, se elevaram em lugares de destaque na sociedade, ou modestamente permaneceram anónimos, vivos apenas na memória dos que com eles privaram e os recordam com felicidade, para sempre.

De qualquer modo, as virtudes da instituição estão sempre para além dos vícios dos homens e das mulheres que a servem, ainda assim merecedores, na sua maioria, da nossa admiração colectiva.

A tropa foi muitas vezes reconhecida como uma escola de vida, de instrução, de cidadania e socialização que terá ajudado muita gente a crescer. Se aos disciplinados por natureza e àqueles que por formação paisana (favorecidos por uma educação exigente, habilitados com um grau académico ou aptidão profissional) de pouco lhes terão servido os ensinamentos básicos, cívicos, oferecidos durante o serviço militar obrigatório, há que reconhecer os benefícios colhidos por aqueles que, oriundos de famílias socialmente desfavorecidas em lugares remotos do território, durante a sua passagem pelos quartéis, vieram a adquirir hábitos de civilidade e até competências profissionais que, de outra forma, não teriam alcançado.

Durante mais de 35 anos de exercício de “medicina castrense”, pude admirar pessoalmente a ortodoxia do “convento”, sem deixar de julgar muitos dos seus “confrades” e deplorar alguns dos seus métodos. Mas foi o tempo dilatado pelo calor dos trópicos que deu para conhecer na intimidade a consistência e também as vulnerabilidades do regimento, em geral, e dos militares do seu quadro efectivo, em particular. Oficiais de carreira, na sua maioria pouco ambiciosos, de notável sobriedade no seu modo de vida espartano, remunerações não mais do que suficientes, segunda ou terceira comissão militar em África, acumulação de mobilizações para progressão na carreira, vidas familiares em fascículos, filhos a estudar longe, disponibilidade para servir, cumpridores de ordens que não se discutem.

Distantes os tempos de glória e presunção de meninos cadetes da academia, fardados de n.º 1, boné de pala a armar, namorada de braço dado, ateando invejas femininas nos cinemas ao sábado à tarde ou nos bailes de ocasião.

Em tempos de armas, quando a toleima dava lugar ao sério, comandavam Companhias ou Batalhões, com a experiência que adquiriam à medida que a guerra se alongava.

Responsáveis por toda a logística e estratégia das tropas no terreno, respondiam pelos resultados, respaldados pela sábia ajuda dos profissionais seus correligionários da classe de sargentos. Subordinados do mesmo ofício, matreiros em adiantado estado de sapiência, velhas raposas doutoradas na tarimba militar, empanturrados de comissões, fazendo pela vida, os sargentos do quadro eram figuras incontornáveis da secular estrutura militar, detendo um poder oculto e influente, que os seus comandados temiam e os senhores oficiais preferiam não ignorar. Alguns rangiam já as sequelas do reumático, refugiados em secretarias e repartições, mas muitos eram operacionais e ainda davam o corpo às balas. No exercício das funções clínicas que desempenhei no mato africano, conheci sargentos enfermeiros, com elevadíssimas competências técnicas que em ambiente de guerra prestaram relevantes cuidados de saúde, aos militares e às populações civis que deles careciam.

Nos três cenários do esforço da guerra colonial, oficiais e sargentos de carreira contracenavam com “milicianos”, para quem olhavam como um mal necessário. “Amadores”, como às vezes os reconheciam, eram estes que, em todo o caso, se incumbiam frequentemente de acções de maior risco e eram também estes que asseguravam algumas missões mais ingratas desempenhadas na quadrícula, com uma motivação e uma aptidão incomparavelmente inferiores à dos militares profissionais.

Mas, como no cavalo de Tróia, por ironia, foram os “milicianos” – sobretudo os oficiais subalternos, obrigatoriamente incorporados nas fileiras – quem indirectamente terá contribuído para o mal-estar que esteve na génese multifactorial do movimento das Forças Armadas, em 1974. Por um lado, o contágio ideológico dos movimentos estudantis da Metrópole, questionando o arrastamento da guerra, a sua legitimidade e os seus resultados e, por outro lado, a concorrência “desleal” dos milicianos que competiam através de cursos de promoção rápida com os seus camaradas do quadro que sentiam genuinamente defraudadas as suas aspirações corporativas, desestabilizando a tradicional fidelidade da “tropa” ao poder político.

Cansados de comissões no Ultramar, desgastados por uma guerra de longa duração que parecia não ter fim à vista, os militares no activo conspiravam no início da década de 1970, um encadeamento de fenómenos cujas consequências, só à luz da posteridade se tornaram inteligíveis, após o 25 de Abril de 1974.

Avaliadas com justiça e ponderadas as grandezas e misérias das suas Forças Armadas, o País tem razões para se orgulhar dos feitos e o dever de exaltar o valor dos militares que ao seu serviço contribuíram para a afirmação de soberania, garantiram a independência nacional ou lutaram pela paz no mundo, ao longo dos séculos.

Mas os tempos mudaram, a história recente já é outra e é provável que, para além das suas competências bélicas que jamais devem ser descuradas, a globalização das catástrofes humanitárias, a dimensão dos desastres naturais e o agravamento das convulsões sociais, justifiquem, no futuro, um reforço da aptidão das Forças Armadas, para um outro tipo de intervenção, convocadas para acções de vigilância e protecção civil, socorro e salvamento de populações ameaçadas por perigos ocultos cada vez mais imprevisíveis e frequentes, para os quais os governantes deverão estar mais sensibilizados e atentos.

A experiência dos militares portugueses na guerra de África foi bem um exemplo dessas competências polivalentes e da sua vocação multifacetada, para que, armados de G3, servissem os naturais no apoio sanitário, reabilitação de habitações, construção de infra-estruturas viárias, saneamento básico, educação e escolaridade, ajuda ao transporte de passageiros e mercadorias, para o que foram envolvidos meios do Exército, da Marinha e Força Aérea, no maior esforço cívico-militar jamais empreendido pelas Forças Armadas portuguesas.

Sem subestimar a dedicação e empenho dos civis que, antes da guerra, com escassos recursos locais, ofereceram notáveis cuidados sanitários nos longínquos territórios coloniais, a verdade é que os povos ultramarinos terão conhecido durante a presença das tropas portuguesas na guerra de África, um apoio ímpar às suas necessidades mais elementares, em que estiveram mobilizados todos os recursos disponíveis, nomeadamente, na assistência médica às populações. Desde a prestação de consultas médicas e tratamentos de enfermagem, evacuação e transporte de doentes no interior do mato, até à prática de actos médicos e cirúrgicos em ambiente hospitalar, os Serviços de Saúde Militar protagonizaram, durante mais de uma década, uma gigantesca operação de cuidados de saúde primários e especializados, prestados à população civil, sem precedentes.

Apesar de todos os constrangimentos vividos no terreno, a “saúde militar” terá prestado no Ultramar africano, entre 1961 e 1974, os mais relevantes serviços às comunidades locais, numa demonstração da sua capacidade organizativa, sem precedentes.

É sobre o modelo e o papel das suas Forças Armadas que o País tem de reflectir, de modo que os cidadãos e os políticos por eles eleitos decidam o que querem delas.

Os militares de carreira não são descartáveis. A sua formação e grau de prontidão custam dinheiro. A sua dignidade não pode ser comprometida por caprichos de ocasião que ponham em causa o seu bom nome e o prestígio da Instituição. Sem corporativismos bacocos, há que perpetuar a honra e a glória daqueles que no passado serviram, combateram e morreram pela Pátria.

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2022-03-09
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Dr.

José Pratas

Ex-Alferes Miliciano Médico, na Guiné – 1971/1973.

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by COM Armando Dias Correia