Uma parte significativa dos membros da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)1 fazem parte das duas organizações (21 no total). Porém, as relações entre ambas têm conhecido, ao longo dos anos, momentos de crise e de crispação, resultado, em grande parte, dos diferendos que envolvem Estados-membros que não integram, em simultâneo, as duas organizações. São diversas as áreas geográficas onde essas tensões são mais visíveis, nomeadamente no diferendo (histórico) entre a Turquia e Grécia, a que se junta a questão do Chipre (Græger, 2016) e as disputas atuais no mediterrâneo oriental, relacionadas com o acesso a exploração de recurso energéticos, que opõe a Turquia à UE (Aydıntaşbaş, Barnes-Dacey, Bianco, Lovatt & Megerisi, 2020).
Estes acontecimentos têm impedido que as duas organizações aprofundem as relações de cooperação, dada a natureza dos respetivos processos de decisão política, que seguem os princípios do intergovernamentalismo, em que as questões de segurança e defesa são decididas por unanimidade (Fiott, 2017; Ojanen, 2018). Decorrente da natureza deste processo, tornam-se difíceis não apenas a celebração de novos acordos, mas sobretudo a operacionalização de parcerias já existentes, como é o caso dos acordos de Berlim Plus (16 de dezembro de 2002), que procuram reforçar a Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD) e evitar a duplicação desnecessária de recursos entre as duas organizações ocidentais, compreendendo, genericamente, três elementos essenciais:
i. garantir o acesso da UE ao planeamento operacional da NATO;
ii. pôr à disposição da UE as capacidades comuns da Aliança Atlântica e as opções de comando europeu para as ações dirigidas pela UE; e
iii. adaptação do sistema de planeamento da defesa da NATO, para incorporar a disponibilidade de forças para as operações da UE (NATO, 2006).
Porém, excluindo a atual missão da UE na Bósnia e Herzegovina, Operação Althea, e a Operação Concórdia, a primeira missão militar da UE, que substituiu a NATO na manutenção da paz na ex-República Jugoslava da Macedónia e que constitui o primeiro projeto comum para a partilha de estruturas de Comando e Controlo, têm sido residuais as aplicações práticas desse mesmo acordo2. Tal como também foi estipulado no acordo, as reuniões formais entre os patamares políticos das duas organizações (North Atlantic Council – NAC – e Political and Security Committee – PSC), que têm sido sucessivamente canceladas e/ou adiadas, embora se registem progressos nos últimos anos, decorrentes da anexação da Crimeia por parte da Rússia, em que tem existindo um maior envolvimento ao nível formal e informal entre os órgãos das duas organizações (Græger, 2016).
Para além destes diferendos, os bloqueios na cooperação entre as organizações são também promovidos pela Áustria, que tem igualmente relações tensas com Ancara, criando obstáculos, por exemplo, para um dos principais projetos de cooperação UE-NATO, relativamente à mobilidade militar. Geograficamente, o território austríaco constitui-se como um importante ponto de trânsito de um conjunto de “corredores estratégicos”. Por questões históricas, os sucessivos governos austríacos são muito relutantes em disponibilizar as suas infraestruturas rodoviárias (e não só) para fins militares (Smith, Tomic, & Gebhard, 2017).
Reconhecendo a importância dos obstáculos criados pelas relações entre os Estados-membros das duas organizações, um dos pontos centrais da cooperação entre a NATO e a UE diz respeito à própria relação entre os Estados Unidos da América (EUA) e os europeus. Apesar da Aliança Atlântica estar associada ao processo de construção europeia, “oferecendo”, desde o final da II Guerra Mundial, aos europeus a segurança necessária em relação a ameaças externas, provindas sobretudo da ex-União Soviética e no Pacto de Varsóvia, importa sublinhar que são, aparentemente, cada vez mais visíveis as diferentes visões dos dois lados do Atlântico em relação aos desenvolvimentos da UE em matéria de segurança e de defesa.
Tal como tem sido publicamente expresso pelos líderes europeus, foram feitos mais avanços da UE no âmbito da segurança e da defesa nos últimos três anos, do que nas últimas décadas. Estes desenvolvimentos europeus foram, em grande parte, rejeitados pelas anteriores administrações norte americanas, mais visíveis em termos públicos durante o mandato de Donald Trump, mas que já tinham sido identificadas por anteriores administrações, que vêm nos mesmos uma ameaça à própria NATO e aos interesses americanos em termos europeus, em particular relacionados com os projetos e investimentos no setor da Defesa. Por essa mesma razão, Washington reagiu, em maio de 2019, negativamente3 ao lançamento da Cooperação Estruturada Permanente (CEP)4 e do Fundo Europeu de Defesa (FED)5, por impossibilitar as empresas norte americanas de participaram nos diversos projetos ao abrigo da cooperação reforçada (Harper, 2019)6.
É sobre esta relação, entre a NATO e a UE, que este ensaio se dedica, tomando como referência a aparente dicotomia entre dois conceitos que são normalmente identificadas quando se analisam os desenvolvimentos da UE no âmbito da segurança e da defesa: independência e complementaridade. A independência da UE, no sentido de contribuir para a sua “autonomia estratégica”, ou complementaridade, entendida no sentido de que os desenvolvimentos europeus caminham a par da Aliança Atlântica, tendo a montante a preocupação de que os mesmos não “belisquem” as relações transatlânticas ou retirem a centralidade da NATO da defesa europeia O argumento que defendemos é que estes dois conceitos estão interligados, na medida em que o desenvolvimento da autonomia estratégica europeia é influenciado, positiva ou negativamente, pela ligação à NATO. Dito por outras palavras, a independência europeia em termos de segurança e defesa está condicionada ao contributo, direto e indireto, que vier a ter para os objetivos da Aliança Atlântica, em razão de grande parte dos Estados-membros continuar a atribuir prioridade à NATO para garantir a sua soberania e manter uma forte ligação aos EUA.
No sentido de procurar densificar este argumento, organizamos este artigo em quatro capítulos principais, além da presente introdução e das conclusões. Assim, no primeiro capítulo, faremos um breve enquadramento histórico dos diferentes projetos europeus, desde o projeto da Comunidade Europeia de Defesa (CED), até ao Tratado de Lisboa. Esta ultima alteração (Tratados), introduziu importantes mudanças ao nível da arquitetura institucional e das estruturas que se dedicam aos assuntos de segurança e defesa europeia. No segundo capítulo, daremos conta das principais evoluções registadas pela UE a partir da última revisão operada em Lisboa, fazendo a ligação necessário à forma como os EUA viram esses progressos. No terceiro capítulo, analisaremos a forma como a UE tem procurado a autonomia estratégica, sendo o último capítulo (quarto) dedicado à forma como essa autonomia pode evoluir, decorrente dos atuais e futuros desafios estratégicos para a UE e para a NATO.
Têm sido muitos os investigadores que se têm dedicado à análise da história recente da Europa e da sua reconstrução, aspetos que são essenciais para a compreensão da evolução da segurança e da defesa europeia. Merecem destaque as obras de Tony Judt, “Pós-Guerra História da Europa desde 1945”, de Ian Kershaw (2015), “Continente Dividido. A Europa 1950” e de John Lewis Gaddis, “Guerra Fria”. Estes trabalhos sobre a compreensão das questões europeias tem sido igualmente palco para filósofos, não apenas pela dimensão ideológica que a revolução francesa e o iluminismo imprimiram às nações europeias, mas sobretudo para o despertar da «Princesa Europa», nas palavras de Rob Riemen (2016). Para esse despertar, contribuíram notáveis políticos e filósofos do projeto europeu. Sendo longa a lista, importa destacar as contribuições dos franceses Robert Schuman e Jean Monet, ao alemão Konrad Adenauer7, que além das questões de segurança e defesa, procuraram a integração europeia a partir dos aspetos económicos e financeiros.
Os primeiros desenvolvimentos europeus no âmbito da segurança e defesa remontam ao ano de 1950, altura em que o governo francês, presidido por René Pleven, propõem a criação de um Exército Europeu e de uma Comunidade Europeia de Defesa (CED), ligado às instituições políticas da Europa Unida (Fursdon, 1980, pp. 86-89). A proposta de Pleven foi apresentada a 24 de outubro de 1950, na Assembleia Nacional Francesa, tendo como objetivo principal resolver o problema do rearmamento da Alemanha Ocidental, uma vez que a criação de um exército alemão faria renascer, novamente, a desconfiança e a suspeita em relação aos objetivos dos alemães (Ruane, 2000, p. 15) (Creswell & Trachtenberg, 2003, p. 20). Para além disso, o plano francês pretendia evitar a adesão alemã à NATO, cujo rearmamento passaria a estar muito dependente dos objetivos americanos, uma vez que, com a CED, a França assumiria um maior controlo nesse mesmo processo (Kershaw, 2015, p. 35).
De acordo com o plano Pleven, o Exército Europeu e a CED ficariam ligados às instituições políticas de uma entidade supranacional europeia, sob a alçada de um único Ministro Europeu da Defesa, responsável perante uma assembleia parlamentar europeia. A criação deste exército teve, desde logo, as reticências dos EUA, do Reino Unido8 e de grande parte dos Estados escandinavos (Ruane, 2000, p. 16), que viram nessa ambição uma “ameaça” aos objetivos da NATO, criada no ano anterior (1949).
As garantias que os EUA davam em termos de defesa da Europa serviram para dividir os Estados europeus em relação aos planos de Pleven. Na assembleia consultiva do Conselho da Europa, o deputado socialista francês, André Philip, declarava então que “a Europa não pode organizar a sua defesa sem a América”. Por outro lado, Paul Reynaud, em nome dos independentes franceses, propôs a criação de um cargo de ministro da defesa europeu, sugerindo Churchill para o mesmo, dado o profundo comprometimento do líder britânico com esta ideia, recusando, no entanto, envolver o Reino Unido nesta questão. Apesar desses receios, do lado americano, Eisenhower e o seu Secretário de Estado, John Foster Dulles, tomaram partido a favor do estabelecimento da CED, vendo o Exército Europeu como a única forma de mobilizar as capacidades coletivas dos europeus, para contrabalançar a influência da União Soviética (Gaspar, 2017, p. 72). Decorrente do empenhamento americano noutras regiões, em particular no extremo asiático, a criação do Exército Europeu permitia retirar parte do seu empenhamento na Europa, uma vez que estavam criadas instituições e existiam dependências dos europeus, sobretudo económicas, em relação ao aliado atlântico.
A 12 de setembro de 1950, o Secretário de Estado Norte Americano, Dean Acheson, numa conferência em Nova Iorque, que juntou os ministros dos negócios estrangeiros dos EUA, Reino Unido e França, apresentou a intenção americana em rearmar a Alemanha, para fortalecimento da própria NATO (Kershaw, 2015, p.33) e estabelecer um exército integrado da Europa, com a participação de uma dezena de divisões alemãs. Robert Schuman e Jules Moch opuseram-se frontalmente à ideia americana, por receio que a liderança militar acabasse por ser confiada aos alemães. Os ingleses, pouco dispostos a reforçarem a sua presença militar no continente ou a participar num projeto (CED) cujo objetivo, segundo o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Antony Eden, em 1952, era “abrir caminho a uma federação europeia” (Kershaw, 2015, p. 35), secundaram imediatamente a posição norte-americana, reclamando apenas que não fosse reconstituído um estado-maior alemão (Gaspar, 2017, p. 73).
A morte de Estaline e o fim da Guerra da Coreia9 fizeram aumentar o sentimento de rejeição dos franceses em relação à CED, materializadas a 30 de agosto de 1954 pelo veto da Assembleia Nacional. Para o General Charles De Gaulle, só poderiam existir forças armadas europeias se, antes disso, a Europa se constituísse enquanto entidade política, económica, financeira, administrativa e, acima de tudo moral (Fursdon, 1980).
Durante vários anos, os projetos europeus em matéria de segurança e defesa foram bastante limitados, ou mesmo inexistentes, dadas as garantias oferecidas pelos americanos, através da NATO, de segurança do espaço europeu em relação à principal ameaça do período da Guerra Fria – a União Soviética. Fora do espaço europeu, os objetivos militares europeus foram garantidos através da União Europeia Ocidental (UEO), que, em estreita colaboração com a NATO, permitiram dar corpo às designadas missões de Petersberg10, as quais haveriam de ser mais tarde reintegradas na própria UE.
Apesar dos diversos “chapéus” que garantiram a proteção do espaço europeu, de âmbito multilateral, no período pós-Guerra Fria, assistimos a diversas iniciativas de âmbito bilateral nos domínios da segurança e defesa e que envolveram duas das principais potências da UE, França e Alemanha. Na sequência dos receios franceses relativamente ao rearmamento alemão, em 1963, Konrad Adenauer e o General de Gaulle celebraram o Tratado de Elysée11, que pretendia fomentar as relações de amizade entre os dois países, que incluía a cooperação no domínio da defesa (Eurocorps, s/d).
Anos mais tarde, em 1989, esta relação entre franceses e alemães no âmbito da defesa foi aprofundada quando, por proposta do presidente francês, François Mitterrand, e do chanceler alemão, Helmut Kohl, foi criada uma Brigada franco-alemã conjunta, composta por 5000 militares de ambos os países, com Quartel-General em Estrasburgo (França), que foi vista, na altura, como o futuro exército europeu. Ao longo dos anos, juntaram-se a esta Brigada, mais conhecida como “Eurocorps”12, contribuições de outros países, designadamente: Espanha, Luxemburgo, Bélgica, Grécia, Itália, Polónia, Romé-
nia e Turquia (Eurocorps, 2018) (Hanke, 2018).
Para além desta iniciativa entre franceses e alemães, realizada fora das comunidades europeias e do texto dos Tratados da UE, uma nova iniciativa bilateral esteve na base dos maiores desenvolvimentos europeus no âmbito da segurança e defesa, desta vez juntando, no dia 4 de dezembro de 1998, o presidente francês, Jacques Chirac, e o primeiro-ministro inglês, Tony Blair, em Saint-Malo. Da declaração saída desta minicimeira pode ler-se que a “europa precisa de ter um papel global no Placo Internacional”. Para alcançar esse desiderato a “(…) UE precisa de ter uma capacidade autónoma, suportada com forças militares credíveis, com meios de decisão para as usar, rapidamente disponíveis para projeção em crises internacionais (…)”. Para os dois líderes, só assim a UE pode ter uma “voz” em termos internacionais e cumprir os compromissos dos países europeus na NATO (Howorth, 2014, pp. 33-35).
O acordo de Saint-Malo (1998) assumiu uma importância capital para os desenvolvimentos europeus em matéria de segurança e defesa, na medida em que permitiu lançar as bases para a criação de uma Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD), renomeada de Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), a partir do Tratado Lisboa, inserida dentro da Política Externa e de Segurança Comum (PESC). Além disso, a intenção da UE de criar estruturas próprias que lhe permitissem agir de forma autónoma, reabriu um debate internos relativamente à evolução das relações transatlânticas, servindo ainda para debater o processo de integração de matérias da soberania dos Estados e para que a UE pudesse emergir como um ator militar, elementos que geraram profundas divisões entre os Estados-membros.
A consciência europeia acerca das mudanças do contexto internacional, sobretudo as que ocorreram depois do fim da Guerra Fria e da queda do muro de Berlim, a par da conflitualidade que, entretanto, surgiu na vizinhança próxima da UE, a exemplo do conflito da ex-Jugoslávia e para o qual os europeus se mostraram incapazes de lidar, levaram estes a procurarem equilíbrios internos e consensos alargados no sentido de desenvolver a capacidade da UE de atuar em termos externos.
Com a aprovação do Tratado de Maastricht, que veio formalizar a PESC da UE, e, anos mais tarde, com a instituição da PCSD, formalizada no Tratado de Nice (2001), as questões de segurança e defesa assumiram um patamar de destaque ao nível dos Tratados. Como reflexo desse interesse, importa sublinhar a criação de estruturas permanentes, designadamente do Comité Político e de Segurança (CPS)13, com a responsabilidade dos aspetos atinentes à PESC e em particular à PCSD, a constituição de um Comité Militar (European Union Military Comitee – EUMC) e um quadro de pessoal militar, organizados no Estado-Maior da UE (European Union Military Staff) (Silva, 2011, pp. 92-93). Além disso, em 2003, a UE passou a ter uma estratégia em matéria de segurança (Conselho da União Europeia, 2009) atualizada anos mais tarde (2008), no seu Relatório sobre a Execução da Estratégia Europeia de Segurança – Garantir a Segurança num Mundo em Mudança (Conselho da União Europeia, 2008).
O contexto em que essa estratégia foi aprovada foi profundamente influenciado pelas tensões que se registavam entre alguns Estados-membros, em particular da França e da Alemanha, e os EUA, em razão da falta de consenso relativamente à intervenção militar no Iraque, por questões sobretudo de legitimidade internacional (Toje, 2005). Apesar disso, desde essa altura, a UE passou a identificar os principais desafios e as regiões prioritárias para intervir de modo a garantir, autonomamente, a sua segurança.
Com a aprovação do Tratado de Lisboa, foram diversas as mudanças nos domínios da segurança e da defesa, materializada na profunda mudança da sua arquitetura institucional e na criação de um mecanismo de cooperação reforçada. Em relação à reorganização das instituições europeias, o tratado criou o Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE)14, que reúne um conjunto de estruturas, civis e militares, que se dedicam ao planeamento e à condução de operações e de missões de gestão de crises, ao nível político, estratégico e operacional. Este Serviço passou ainda a ser responsável pela identificação das ameaças ao espaço europeu e pelo permanente acompanhamento e monitorização da situação de segurança à escala global e em particular em zonas de interesse europeu. Em termos políticos, para além dos embaixadores permanentes de todos os Estados-membros, que compõem o CPS, o SEAE é liderado pelo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, identificado por regra pelo Alto Representante (AR), que é cumulativamente Vice-presidente da Comissão Europeia e principal responsável para Agência Europeia de Defesa (EDA).
As alterações institucionais promovidas pela UE permitiram, ainda, desenvolver a primeira estratégia global (2016), onde se identificam áreas geográficas de influência, por estarem na origem das ameaças e dos desafios de segurança para o espaço europeu. Esta estratégia veio atribuir maior pragmatismo e resiliência à UE, em termos internos e externos, respondendo ainda a crises e conflitos fora das suas fronteiras, nomeadamente através de Operações e Missões de Gestão de Crises (Csernatoni, 2020).
Fonte: SEAE (2020)
Figura 1 – Mapa da Operações e Missões de Gestão de Crises da UE.
Ao nível dos processos de decisão, o Tratado de Lisboa “abriu portas” à cooperação reforçada (art.º 20.º) em matéria de defesa, em três domínios principais. Se assim o desejarem, os Estados-membros podem iniciar uma cooperação estruturada, onde se comprometem a participar em programas europeus de equipamento militar e a fornecer unidades de combate para as missões realizadas no quadro da UE (art.º 42.º n.º 6). O processo é considerado bastante flexível, uma vez que não é necessário nenhum número mínimo de Estados-membros e o Conselho autoriza a cooperação estruturada permanente por maioria qualificada (art.º 46.º).
Além disso, a cooperação reforçada permite igualmente aos Estados-membros participarem em determinadas missões resultantes da PCSD, descritas no artigo 43.º do Tratado, a exemplo de missões humanitárias ou de manutenção da paz. Por último, através da EDA, é oferecido um quadro de cooperação aos Estados-membros que desejem melhorar as suas capacidades militares. Importa sublinhar, na generalidade, que os projetos no âmbito da EDA estão reservados aos Estados-membros da UE15 (Conselho da União Europeia, 2017).
Embora ainda sejam bastante limitados os resultados, a cooperação reforçada permite à UE ultrapassar parte das dificuldades relacionadas com o seu processo de decisão política, caracterizado pela necessidade de ser alcançada uma unanimidade entre os Estados-membros na generalidade das matérias relacionadas com a PCSD. No âmbito da segurança e da defesa, a natureza do processo decisório tem tido diferentes impactos, sobretudo ao nível da identificação das prioridades e ameaças. Assim, enquanto para os Estados a Sul a questão das migrações e as relações com África assumem uma importância capital, para os que estão geograficamente a Leste e a Norte a postura da Rússia domina e ocupa uma grande parte das suas preocupações (Dennison, Franke & Zerka, 2018) (Meijer & Brooks, 2021).
Também em termos geopolíticos podemos encontrar diferentes visões entre os Estados-membros, uns com uma forte inclinação para as questões marítimas (potências marítimas) e outros mais virados para as questões territoriais (potências terrestres). Todas estas questões são importantes para se entender não só a relação com a NATO e com os EUA, mas também compreender a procura por parte da UE de uma autonomia estratégica e as dificuldades encontradas ao nível interno relativamente a essa mesma ambição.
O desejo da UE em alcançar uma autonomia estratégica foi identificado pela primeira vez em 2016, na Estratégia Global da UE, estando a mesma associada à capacidade da UE de promover a paz e garantir a segurança dentro e fora das suas fronteiras. Nesse mesmo ano, no discurso que fez sobre o “Estado da União”, o então Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Junker, destacou a importância da UE em garantir a sua própria segurança coletiva, referindo que em caso de incapacidade, ninguém (externamente) o faria pela UE. Junker alertou ainda para a necessidade dos europeus criarem uma base industrial da defesa, robusta, competitiva e de vanguarda, no sentido de garantir a sua autonomia estratégica (European Comission, 2016).
O alcance da autonomia estratégica, nos termos identificados e no domínio da segurança e defesa, tem sido muito debatido, a exemplo do trabalho realizado recentemente por Helwig (2020). Csernatoni (2020) sublinha que a falta de clareza em torno do conceito da autonomia estratégica significa que o mesmo é frequentemente mal interpretado, dentro e fora da Europa. O mesmo autor refere que a autonomia estratégica é, comumente, entendida como a capacidade da UE de agir e cooperar com os parceiros, sempre que possível, sendo capaz de operar de forma independente, sempre que necessário. Embora seja normalmente ligado às questões de segurança e defesa, no contexto da Pandemia COVID 19, este conceito foi ligado à necessidade de procurar a autossuficiência europeia, em material de apoio médicos (ventiladores e equipamento de proteção), e das próprias vacinas, em relação a espaços e atores externos, em particular em relação à China (Helwing, 2020) (Lauronen, 2021) (Santander & Vlassis, 2021).
Numa alusão ao conceito, o atual AR, Josep Borrell (2020), sublinha que a autonomia estratégica não é uma “varinha mágica”, mas um processo, a longo prazo, destinado a “garantir que os europeus se responsabilizem, cada vez mais, por si próprios, no sentido de defenderem os interesses e valores europeus, num mundo cada vez mais difícil, um mundo que nos obriga a confiar em nós mesmos para garantir o nosso futuro”.
No âmbito da segurança e da defesa, quer a declarações de Junker quer as mais recentes de Borrell, a autonomia estratégica por parte da UE está ainda longe de ser consensual entre os Estados-membros, existindo, genericamente, duas perspetivas distintas e antagónicas. A primeira corrente defende a autonomia da UE, identificando como necessidade o reforço da sua capacidade de atuação em regiões de interesse estratégico, sublinhando que a Europa só começará a ser levada a sério como ator de segurança quando robustecer as suas capacidades operacionais, para salvaguardar os interesses europeus, incluindo o emprego de forças militares europeias. Para esta perspetiva, os desenvolvimentos europeus não só não colocam em causa a relação com a NATO, como servem até o reforço das suas capacidades militares, dado o compromisso dos Estados-membros com a Aliança transatlântica. A segunda corrente sublinha que uma Europa mais “musculada” pode pôr em causa a própria Aliança Atlântica, receando que o incremento de capacidades europeias e a autonomia estratégica condicionam a relação com os EUA.
Esta relação com os EUA e com a NATO, a par da identificação das ameaças ao espaço europeu, constituem, por isso, os pontos críticos da autonomia estratégica da UE. Durante a Guerra Fria, o desenvolvimento de capacidades europeias foi, por regra, visto pelas diversas administrações norte-americanas como reforço da Aliança. Ou seja, para os americanos, a existência de uma capacidade militar europeia efetiva foi considerada como benigna, desde que a mesma fosse edificada no quadro da NATO (Posen, 2006), (Bergmann & Cicarelli, 2021).
O ponto de viragem do ceticismo americano em relação ao desenvolvimento militar europeu, pelo menos em termos públicos, aconteceu durante a gestão do conflito do Iraque, momento em que vários países europeus decidiram não acompanhar os EUA na invasão ao Iraque de Sadam Hussein. Nessa altura, a administração de George W. Bush tomou consciência de que uma UE mais forte seria um parceiro menos colaborante, condicionando a política externa americana e a própria NATO (Toje, 2008, pp. 115-119) (Peterson, 2016, p. 6) (Cowles & Egan, 2016, p. 88).
Em termos europeus, a França tem sido o Estado-membro que tem procurado reforçar a autonomia estratégica europeia16. De acordo com a visão francesa, a UE tem de se tornar uma entidade estratégica autónoma, de modo a estar preparada para a inevitável retirada americana, cujas forças militares não vão permanecer para sempre no centro do continente europeu. No entanto, tal como foi sublinhado por Boniface (2016, p. 101), a natureza mais franco-francesa que franco-europeia deste projeto contribuiu para que fosse visto como visando mais substituir a hegemonia americana pela influência francesa, do que desenvolver um verdadeiro projeto europeu. Para os restantes parceiros europeus, em particular para a Alemanha, existiu sempre o receio de alguma arrogância francesa e da vontade de substituir os americanos, como garante da defesa europeia, sem, contudo, ter os meios necessários para tal (Ghez & Larrabee, 2009).
Durante largos anos, foi o Reino Unido quem liderou as resistências dentro da UE em relação à autonomia estratégica, defendendo uma visão próxima dos EUA, preferindo manter o status quo da Europa em relação a esta matéria. Quando, em 2003, foram estabelecidos os primeiros Comandos Militares da UE, o Reino Unido considerou que estes não só duplicavam os ativos da NATO, mas colocavam em perigo o papel da Aliança como “pedra angular” da segurança europeia (Duke, 2018, pp. 25-26). Estas resistências de Londres foram acompanhadas por diversos Estados-membros, para quem a arquitetura de segurança europeia deve recair na NATO e nos EUA, a exemplo de Portugal, Dinamarca, Holanda e Itália17. Para estes Estados, a autonomia europeia e uma reorientação da PCSD poderia desenvolver um sentido antiamericano e a quebra da ligação transatlântica.
As alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa, com a possibilidade dos Estados-membros passarem a ter a possibilidade de cooperarem de forma reforçada, a par da saída do Reino Unido da UE, mudaram o contexto interno europeu, aumentando a vontade política dos Estados-membros em participar em projetos industriais no âmbito da defesa, que concorrem para a autonomia estratégica europeia, a exemplo do Fundo de Defesa Europeu (FDE) e da CEP.
O caso alemão é, porventura, o mais significativo em relação a esta mudança, na medida em que a cooperação europeia em matéria de defesa foi, nos últimos anos, elevada a uma nova posição, aumentando Berlim a ambição de se tornar mais ativa e procurando desempenhar um papel na política de segurança e defesa mais proporcional ao seu poder económico. Em resultado deste maior envolvimento alemão nas questões de defesa, a UE tem reforçado, em termos políticos, a sua ambição no âmbito da Segurança e da Defesa, e que será a breve prazo expressa na “bússola estratégica” (Strategic Compass). A intenção de ser criada esta nova orientação estratégica europeia constitui uma das prioridades da presidência alemã do Conselho da UE, no segundo semestre de 2020. Depois das aparentes resistências iniciais francesas, existe atualmente um apoio generalizado entre os Estados-membros, devendo o documento final ser apresentado durante a Presidência Francesa, em 2022.
Em termos gerais, a “bússola estratégica” visa tornar as ambições da UE no domínio da segurança e defesa mais concretas, conforme delineado na Estratégia Global da UE (EUGS) 2016 e no Plano de Implementação de Segurança e Defesa (Implementation Plan on Security and Defence – IPSD18) e fornecer orientações adicionais para os níveis militar e estratégico. O documento pretende, por isso, ajudar a UE a tornar-se mais eficiente em termos internacionais, injetando no sistema da cooperação da defesa uma nova dose de direção política, que guiará o processo europeus até 2025-30, ou seja, de lhe atribuir uma common strategic culture. Além disso, conduzirá os diferentes planeamentos militares dos Estados-membros, reforçando assim anteriores iniciativas no âmbito da defesa, a exemplo do Análise Anual Coordenada da Defesa (AACD)19.
No plano da UE e dos respetivos processos de decisão, o documento assume particular importância e significado político, que deve ser interpretado como um sinal diferenciador em relação a grande parte dos documentos produzidos, até ao momento, que abordam as matérias de segurança e de defesa. Pelo facto da “bússola estratégica” surgir de uma iniciativa de um Estado-membro, com um peso muito relevante dentro da UE, pode representar uma maior consistência e pragmatismo do que vier a ser aprovado em 2022. A nova visão da Alemanha em relação a estas matérias e a convergência estratégica com Paris, a exemplo das preocupações partilhadas em relação às questões das migrações e do terrorismo (Koenig & Walter-Franke, 2017, p.5), representa um sinal do caminho que está a ser seguindo pela UE nos últimos anos, deixando antever que, no futuro, os desenvolvimentos europeus neste domínio serão bastante promissores.
O posicionamento alemão é acompanhado pelos países mais céticos em relação aos desenvolvimentos europeus nestas matérias, conforme anteriormente foi identificado, em particular da Polónia. Para esta mudança estará precisamente a maior proximidade em relação à NATO. A declaração de Varsóvia de 201620, a que se seguiu a declaração conjunta de 2018, entre o Presidente do Conselho Europeu, o Presidente da Comissão Europeia e o Secretário-geral da NATO21, relativamente ao reforço da cooperação, em diferentes áreas, entre a UE e a NATO, constitui um ponto central para o aumento da confiança entre os Estados-membros relativamente ao reforço das capacidades europeias, através da partilha de informações e de capacidades para combater ameaças comuns, designadamente a questão da segurança marítima, o combate às ameaças híbridas (incluindo as campanhas de desinformação e as ciberameaças) e os reforços das capacidades da vizinhança a Sul e a Leste do espaço europeu (Himmrich & Raynova, 2017) (NATO, 2018).
Nessa mesma declaração conjunta, a NATO identificou como “bem-vindas” todas as iniciativas de defesa por parte da UE, que servem para proteger a União, pelo que as mesmas, segundo o próprio Secretário-geral, não estão em conflito com os objetivos da Aliança Atlântica. Foram ainda referenciadas áreas de progresso, designadamente na mobilidade militar, nas ações de contra terrorismo, no reforço das capacidades conjuntas e na resiliência contra os riscos atinentes às questões Nucleares, Radiológicas, Biológicas e Químicas (NRBQ) e à promoção da participação de mulheres na agenda securitária (NATO, 2018).
Em abril deste ano, no novo encontro entre os líderes das instituições europeias, representadas pelo Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, a Presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, e o HR, Josep Borrell, e o Secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, foram reforçadas as ações de cooperação, através da adoção de medidas destinadas a aumentar a resiliência contra ameaças híbridas, que vão desde campanhas de desinformação até crises mais graves; cooperação entre a Operação “Sea Guardian” da NATO e a “Operação Sophia” da EUNAVFOR no Mediterrâneo; partilha de informações sobre ameaças cibernéticas e das melhores práticas em segurança cibernética; garantir a coerência e a complementaridade dos processos de planeamento de defesa de cada uma das organizações (burden-sharing); realização de exercícios conjuntos e esforços para apoiar as capacidades locais dos países parceiros nos setores de segurança e defesa (NATO, 2021b).
A Cimeira da NATO, do passado dia 14 de junho de 2021, teve como ponto central encetar um “novo capítulo nas relações transatlânticas”. Em declarações públicas recentes, Stoltenberg reforça a ideia de que a reunião pretende restabelecer a unidade entre a Europa e a América do Norte e, assim, preparar as duas organizações para “os desafios de hoje e de amanhã”, através de um compromisso de defesa mútua, ampliando a abordagem à segurança e adotando uma visão mais global, para salvaguardar a ordem internacional baseada em regras (NATO, 2021a). O reforço das relações entre a NATO e a UE foi também debatida no passado dia 6 de maio, aquando da reunião dos Ministros da Defesa dos 27 Estados-membros da UE, que contou com a participação do secretário-geral da NATO. Stoltenberg sublinhou a ideia da necessidade de restabelecer e reforçar esta relação, tendo identificado como ponto central a possibilidade do Canadá, da Noruega e dos EUA poderem passar a participar nos projetos de Defesa europeia, em particular os desenvolvidos no contexto da PESCO. Além disso, identificou ainda a necessidade da inclusão nos acordos de mobilidades de forças militares entre a NATO e os Estados-membros da UE, questão essa que, como vimos, tem levantado inúmeras reticências por parte dos Estados-membros, decorrentes das relações mais tensas de alguns Estados europeus com a Turquia.
A proximidade entre as duas organizações é ainda visível quando analisamos as narrativas das instituições europeias e da NATO. A defesa conjunta dos valores e princípios da democracia, dos direitos humanos e das questões de género, através do reforço da participação das mulheres nas missões e operações de gestão de crises, tem sido um importante sinal desse alinhamento, servindo quer para a identificação de um espaço comum, baseado nos valores e nos princípios, quer para identificar os que não partilham os mesmos, ou seja, os outros. Este ponto é relevante nos processos de construção das identidades e dos processos de identificação das ameaças e da relação com atores externos. Importa neste âmbito destacar o documento “NATO 2030” (NATO, 2020) que identifica, de forma bastante vincada, esta questão dos valores, usando-a como forma de fazer a diferenciação dos Estados e das instituições ocidentais em relação ao “adversários sistémicos”: Rússia e China22.
Em termos mais práticos, apesar das diferenças em relação aos objetivos, aos interesses e a outros espaços geográficos e atores, situação que se coloca inclusivamente ao nível dos próprios estados da UE, existem espaços geográficos cuja atuação conjunta serve para aumentar o impacto das duas organizações. A região dos Balcãs tem sido um “tubo de ensaio” da relação entre a NATO e a UE. Importa sublinhar que a aplicação dos acordos de Berlim Plus, para a partilha de estruturas de comando e controlo entre as duas organizações, foram postos em prática, pela primeira vez, na “Operação Concórdia”, a primeira missão militar europeia, que substituiu a NATO na missão de manutenção da paz na ex-República Jugoslava da Macedónia, de 31 de março a 15 de dezembro de 2003.
Os processos de integração dos países dos Balcãs Ocidentais na Aliança Atlântica e a perspetiva da sua integração na UE têm servido não só para acomodar grande parte dos diferendos entre os países da região, mas sobretudo para mudar a sua própria organização interna, tornando-os mais resilientes em relação a outros atores externos que atuam nos diferentes Estados. Vários fatores contribuíram para construir confiança na região: o desarmamento, os laços com a NATO, incluindo a Sérvia que assinou um acordo de parceria, e o objetivo comum de integração europeia.
O caso da Sérvia, um Estado muito próximo da Rússia, constitui um bom exemplo da capacidade de atração conjunta. Belgrado recusou, recentemente, atribuir um estatuto diplomático diferente à base naval russa instalada em Nis, uma base que tem sido apontada como um dos radares dos serviços de informações de Moscovo, mas que é oficialmente um centro de resgate de catástrofes de proteção civil (Euractiv, 2011), depois das críticas dos EUA e da UE (Stojanovic, 2017). Belgrado também cancelou a participação de forças militares sérvias em exercícios na Bielorrússia, no verão de 2020 (Stojanovic, 2020).
No momento em que os EUA estão mais virados para a Ásia-Pacífico e para a China, arrastando invariavelmente a Aliança Atlântica para esta região, incluindo o reforço da cooperação com os países da Ásia-Pacífico, a exemplo da India, Coreia do Sul, Japão e Austrália, a UE terá outro tipo de responsabilidades na estabilização da sua vizinhança próxima, em particular em África e no Médio Oriente. A retração por parte dos EUA e da NATO desta última região deve ser entendida como um sinal dessa mesma tendência, cabendo à UE procurar preencher o vazio de poder entretanto criado e que tem sido disputado por outros atores, em particular da Rússia, que se procura afirmar cada vez mais nesta região. É com base nesta complementaridade que os europeus procuram convencer a administração norte americana a apoiar abertamente o objetivo da autonomia estratégica da europeia como a única forma de ter uma divisão europeia eficaz dos encargos e mais responsabilidade na estabilização da sua vizinhança.
Importa, no entanto, sublinhar que existem ainda desafios, ao nível político, extremamente complexos entre as duas organizações, sobretudo no que concerne às relações muito tensas entre os países que não pertencem a ambas as organizações, e que apenas uma alteração dos respetivos processos de decisão pode ajudar a ultrapassar. O alargamento dos mecanismos de cooperação reforçada da UE para incluir a NATO poderá ser uma das opções estratégicas.
Um outro ponto crucial diz respeito à identificação partilhada das ameaças por parte das duas organizações. Dado tratarem-se de duas comunidades de segurança, de natureza distinta, as ameaças assumem um aspeto crucial, não apenas nas questões de coesão interna, mas também na forma como cada uma das comunidades se relacionam em termos externos e, ainda, como identificam e se comportam perante outros atores e desafios securitários. Um possível alinhamento entre o conteúdo que será apresentada a Bússola Estratégica (Strategic Compass), ao nível das ameaças, e o novo conceito estratégico da NATO, que se encontra em processo de revisão, deixará certamente indicações relativamente a esta proximidade, ou não, entre a NATO e a UE.
Em jeito de conclusão e retomando a discussão em torno da questão (recorrente) da independência da UE em relação à NATO, e aos EUA, ou da complementaridade que os desenvolvimentos europeus procuram ter, podemos concluir que os dois termos se auto influenciam, decorrentes da credibilidade que uma parte significativa dos Estados-membros europeus atribui às capacidades da NATO, para garantir a sua soberania no âmbito da defesa. Ou seja, para ser efetiva, a autonomia estratégica europeia terá que ser acompanhada pelo reforço da proximidade e do alinhamento estratégico com os Aliados Transatlânticos. Caso contrário, e apesar das possibilidades oferecidas pela cooperação reforçada, no essencial, as matérias relacionadas com a PCSD continuam a estar profundamente dependentes do acordo, unânime, por parte dos Estados-membros.
Por outro lado, os maiores desenvolvimentos europeus contribuem para reforçar as capacidades da própria NATO, existindo assim uma complementaridade, através da partilha de capacidades e de áreas geográficas. Se, no primeiro caso, importa manter sincronizados os respetivos ciclos de planeamento militar, no segundo, a partilha de espaços de ação e de influência são cada vez mais uma inevitabilidade, tendo em conta as mudanças das prioridades americanas, mais direcionadas para a China e para a região da Ásia-Pacífico. Tal como durante a Guerra da Coreia, também aqui os EUA precisam de reforçar as suas alianças não apenas nesta região, mas também com os Estados europeus e com a UE, para que os vazios de poder entretanto criados pelo retraimento americano, a exemplo do que está a ocorrer no Médio Oriente, sejam preenchidos pelos aliados europeus, usando o fórum da Aliança, incluindo a partilha de estruturas, para a sua efetiva concretização.
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1 Por questão de maior identificação nacional e internacional, usaremos ao longo do texto o termo NATO (North Atlantic Treaty Organization).
2 Em termos concretos, todas as discussões formais sobre missões em que a UE e a NATO trabalham em conjunto, a exemplo do Afeganistão, Kosovo ou Somália, estão oficialmente bloqueadas (Biermann, 2015). Porém, o impasse Turquia-Chipre serve, muitas vezes, como uma “cobertura” para os interesses nacionais e “esconde” outras reservas sobre a compatibilidade estratégica dos dois órgãos (Shevchuk, 2020).
3 Nas duas cartas enviadas para as instituições europeias, a 1 de maio e a 16 de maio de 2019, o Governo americano refere que os projetos no âmbito da CED e do FED estão a danificar as relações de cooperação transatlânticas e a impedir o acesso dos EUA ao mercado de Defesa europeu (Fiott, 2019).
4 Identificada na literatura anglo-saxónica por Permanent Structured Cooperation (PESCO). Vide em https://eda.europa.eu/what-we-do/EU-defence-initiatives/permanent-structured-cooperation-(PESCO).
6 Situação que, no caso do projeto europeu da CEP dedicado à mobilidade militar, foi alterada na última Cimeira UE-EUA, tendo o comunicado conjunto, no seu ponto 36, identificado como uma medida de reforço das relações UE-EUA, apesar de não ter sido referida qualquer data para a concretização da entrada americana nesse projeto (Conselho Europeu, 2021).
7 Sobre as figuras mais influentes da construção europeia recomenda-se a leitura do “Dicionário das Grande Figuras Europeias”, sob a coordenação de Isabel Baltazar e Alice Cunha (2019), e que reúne as 85 personalidade que mais contribuíram para a evolução da ideia de Europa ao longo do século XX, sobretudo durante a primeira metade.
8 Importa referir que o Reino Unido sempre se manteve à margem das questões europeias, apoiando alguns dos desenvolvimentos europeus, em particular no domínio económico, e a própria construção europeia, no entanto considerando com muitas reticências a sua integração. No âmbito da segurança e da defesa, foi sempre um dos Estados-membros que mais se opôs e bloqueou os desenvolvimentos da UE, incluindo a CED (Ruane, 2000).
9 O início da Guerra da Coreia constitui um importante marco para os desenvolvimentos europeus e em geral de todos os Estados que compunham a NATO. Grande parte dos Estados do Leste Europeu, em particular a Alemanha Ocidental, recearam que a Rússia de Estaline fizesse a ocupação, tal como na Coreia. A perceção do desequilíbrio de forças entre a União Soviética e a NATO, levou a que as questões de segurança e defesa fossem elevadas a um novo patamar, permitindo assim desbloquear grande parte dos bloqueios políticos em relação ao rearmamento alemão e ao aumento das despesas militares. Fursdon (1980, p. 71), refere que nessa altura existia um profundo desequilíbrio entre as forças da NATO e da União Soviética, contando a primeira com 12 divisões e cerca de 1000 aeronaves em oposição a 21 divisões soviéticas e mais de 6000 aeronaves. Em reação à Guerra da Coreia, a maior parte dos Estados ocidentais assumiram o compromisso de aumentar as suas despesas militares, incluindo Portugal.
10Estas missões foram instituídas pela Declaração de Petersberg, consignadas na declaração de Petersberg de 19 de junho de 1992, adotada na sequência do conselho ministerial da UEO. Nos termos desta declaração, os países membros decidem colocar à disposição da UE unidades militares provenientes dos diversos ramos das suas forças convencionais. A partir de então, ficaram abrangidas: as missões humanitárias ou de evacuação dos cidadãos nacionais; as missões de prevenção de conflitos e as missões de manutenção da paz; as missões de forças de combate para a gestão das crises, incluindo operações de restabelecimento da paz; as ações conjuntas em matéria de desarmamento; as missões de aconselhamento e assistência em matéria militar; e as operações de estabilização no termo dos conflitos (Western European Union Council of Ministers, 1992).
13PSC – Political and Security Committee.
15Na sequência da última cimeira UE-EUA, do passado dia 15 de junho de 2021, a UE fez o convite para que os EUA integrem o projeto PESCO dedicado à mobilidade militar. Esta participação representa uma importante mudança na cooperação no âmbito da Defesa entre americanos e europeus, apesar de ainda não terem sido disponibilizadas informações detalhadas acerca da forma como esta cooperação vai ser concretizada. Esta cimeira acontece num momento em que a UE e os EUA procuram cooperar em diversas áreas, para melhor responderem aos desafios, riscos e ameaças que ambos os atores enfrentam (European Council, 2021).
16Depois das declarações do presidente norte americano, que publicamente referiu que a NATO estava obsoleta (Reuters, 2017), em 2019, o presidente francês, numa entrevista ao jornal britânico “The Economist”, referiu que a NATO se encontrava em morte cerebral, tendo em conta o retraimento americano na Europa alertando ainda para o facto dos europeus não poderem depender da América, para defender os aliados da NATO (The Economist, 2019).
17O ceticismo italiano ficou expresso durante a proposta apresentado no Plano Pleven, defendendo o governo italiano da altura, que o estabelecimento de uma comunidade europeia, politicamente organizada, incluindo um Ministro da Defesa Europeu, com um orçamento comum, levaria muito tempo a tornar-se uma realidade, preferindo uma solução alinhada com a NATO, advogando na altura que a solução para a questão do rearmamento alemão teria que ser resolvida no quadro da Aliança Atlântica (Fursdon, 1980, p. 93).
19Coordinated Annual Review on Defence (CARD). Vide em: https://eda.europa.eu/what-we-do/EU-defence-initiatives/coordinated-annual-review-on-defence-(card).
20Vide em: https://www.consilium.europa.eu/pt/meetings/international-summit/2016/07/08-09/.
21Vide em: https://otan.missaoportugal.mne.gov.pt/pt/noticias/declaracao-conjunta-relativa-a-ooperacao-nato-ue-10-de-julho-2018.
22Para uma leitura mais detalhada deste tema, importa ver, entre outros, o artigo “NATO 2030”: A sobrevivência numa nova era” (Cruz, 2021). Retirado de https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/5028/5/0%20PT-vol12-n1-art02.pdf.
Mestre em Direito e Segurança pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (UNL) (2013). Atualmente, desempenha as funções de docente na Área de Estudo das Crises e Conflitos Armados do Instituto Universitário Militar (IUM).