Nº 2637 - Outubro de 2021
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Crónicas Bibliográficas

 

O Contra-almirante Fernando David e Silva é engenheiro maquinista naval reformado e doutor em História Contemporânea pela Faculdade de Letras de Lisboa. Escreveu artigos e proferiu conferências nas áreas de engenharia naval e da história militar. Foi autor de diversas obras e monografias e recebeu diversos prémios, entre os quais se destacam os que lhe foram atribuídos pela Comissão Portuguesa de História Militar, Academia de Marinha, Clube Militar Naval e Revista da Armada. É investigador de história e membro da Academia de Marinha.

Militar ativo, dotado de grande capacidade de trabalho, robusta personalidade, relacionamento cordial e sentido de humor, apresenta-nos agora a História da Liga Naval Portuguesa, que corresponde à sua tese de doutoramento, defendida na Faculdade de Letras de Lisboa, no ano de 2020. A Liga Naval, criada em 1900 e inspirada nas Ligas Navais inglesa e alemã, desenvolveu as suas funções durante quase quatro décadas, atravessando os regimes políticos da Monarquia, República, Ditadura e Estado Novo. Fundada por iniciativa de oficiais da Armada, tinha como propósito promover o “ressurgimento marítimo” do nosso país, nos domínios das atividades comerciais e recreativas, das pescas e da Marinha de Guerra, tendo adotado a divisa “O Futuro de Portugal está no Mar”.

Trata-se de uma obra fundamental para o estudo da nossa história recente, relatando a forma como foi vivida a redescoberta da importância do poder marítimo, nas primeiras décadas do século XX, num Estado que detinha um império colonial significativo, que se estendia até ao Extremo-Oriente e com interesses particulares no Brasil. Mas com as precariedades descritas no Prefácio pelo professor João Freire:

Num país sem marinha mercante, com uma pesca rudimentar, frota militar a necessitar de urgente renovação, farolagem insuficiente, portos mal apetrechados, construção naval escassa e antiquada, e pesquisa hidro-oceanográfica incipiente”.

Passamos agora a percorrer a estrutura deste livro do Contra-almirante Fernando David e Silva:

– Sob o ponto de vista espacial, os relatos das atividades da Liga Naval, ocorrem essencialmente na região de Lisboa, embora cobrindo também eventos acontecidos noutros locais e ainda fazendo referência às Ligas Navais de outras potências;

– No domínio temporal a obra cobre, essencialmente, o período de 1900 a 1939, ano em que a Liga Naval se viu forçada a suspender o exercício das suas funções, até que em 2009 um grupo de personalidades ligadas às operações navais e marítimas decidiram fundar a Confraria Marítima de Portugal, com propósitos semelhantes;

– Quanto à escrita, o autor utiliza uma cuidada linguagem académica, quer na descrição das atividades da Liga quer quando se pronuncia sobre os contornos políticos e sociais daquela conturbada época.

 

Congresso Internacional de 1904

 

David e Silva dividiu o seu livro em vários capítulos, que se distinguem pela exposição da estrutura organizativa, referência aos membros e ações da Liga Naval e aos diversos contextos históricos e lugares onde ocorreram os acontecimentos:

– No primeiro capítulo “O movimento das ligas navais e a criação da Liga Naval Portuguesa”, para além de uma introdutória descrição do associativismo na Marinha no século XIX, relata as circunstâncias em que foi criada a Liga, os meandros da competição germano-britânica pelo domínio dos mares, a supremacia naval inglesa e a Navy League, o nacionalismo e colonialismo da Liga Naval Alemã (a Deutscher Flottenverein), a fundação da Lega Navale Italiana, da Liga Marítima Española, da União Naval Russa, da Navy League of the United States e da Liga Naval Brasileira. Descreve ainda o período de ouro da Liga Naval Portuguesa que culminou na organização do Congresso Marítimo de 1903, do Congresso Internacional de Lisboa de 1904 e do Congresso Nacional de Pescarias de 1904.

Palácio Calhariz-Palmela

 

– O Capítulo II “Organização, identidade e ação da Liga Naval Portuguesa”, descreve a rede geográfica e social da associação, as suas sedes, na rua Garrett primeiro e depois no palácio Calhariz-Palmela, as conferências e exposições que ali ocorreram, o debate político e cultural, os símbolos e divisa, o movimento editorial e as principais áreas de atividade.

– A terceira parte “Entre as crises e a República: a procura de novos rumos”, aborda a questão da insubordinação nos cruzadores D. Carlos I e Vasco da Gama em 1906, o plano de rearmamento naval do ministro da Marinha Aires de Ornelas (1906-1908), o Congresso Nacional de 1910 e as teses aí debatidas, etc.

– O Capítulo IV “A deriva política da Liga Naval”, relata o choque que a implantação da República acarretou para a associação, sendo certo que os republicanos já vinham encarando com alguma desconfiança as incursões da Liga nos terrenos da política partidária, porquanto os seus dirigentes eram maioritariamente monárquicos. Analisa ainda o Programa Naval de 1912, as aspirações da Armada Republicana, as dificuldades originadas pelo corte do subsídio governamental que era concedido à Liga, as Conferências de 1915 no palácio Calhariz, que, entre outros temas, tratam da Questão Ibérica e dão voz ao Integralismo Lusitano, a posição da Liga Naval em relação à Grande Guerra e à República Nova, etc.

– Na parte V “A propaganda ao programa naval da Ditadura: um breve renascimento”, é descrito o Programa Naval de 1930, “ressurgimento marítimo” que ficou conhecido pelo nome do ministro Almirante Magalhães Correia. O Conselho Geral da Liga reuniu em 21 de maio de 1930, após um prolongado espaço temporal sem encontros formais, encontrando-se já doente o diligente Capitão-tenente António Pereira de Matos, seu secretário-perpétuo, que faleceu em 3 de julho. Como afirma o autor a página 307, “o ano de 1932 marcou o início do declínio irreversível do primeiro período de vida da Liga Naval. Alguns sócios abandonaram a Liga, outros deixaram de pagar as suas quotas, restando então apenas duas ou três dezenas de associados”.

– No último Capítulo, intitulado “A Liga Naval Portuguesa e as suas congéneres na atualidade”, David e Silva elabora sobre a fundação e características das Ligas Navais da Argentina, Brasil, Chile, Espanha e Uruguai e ainda sobre a Federação Internacional de Ligas e Associações Marítimas e Navais.

Redigida numa linguagem académica, mas a todos acessível, mesmo quando trata de questões técnicas, assumindo os sucessos da Liga Naval, mas também algumas das suas iniciativas menos sucedidas e não esquecendo o esforço e os nomes de fundadores e membros dos Conselhos e Juntas Locais, embora destacando o entusiasmo de António Pereira de Matos, seu secretário-perpétuo, que se distinguiu como um original pensador do Poder Marítimo de Portugal, nas primeiras décadas do século XX.

Finalmente, não resistimos à tentação de transcrever um excerto da Conclusão, mais propriamente o penúltimo parágrafo deste livro, e que julgamos ser um excelente resumo de toda a obra:

Como nota final sublinha-se a originalidade do processo de criação da Liga Naval Portuguesa, bem como a ambição dos propósitos e o sucesso de algumas das suas ações de representação dos interesses ligados ao Mar, visando a realização de mudanças em múltiplas áreas “das quatro marinhas”, de guerra, comércio, pescas e recreio, no sentido da sua valorização no todo nacional, através da modernização técnica, económica e social”.

Criteriosamente apresentado, num volume de 447 páginas, com capa reproduzida do Boletim Marítimo da Liga, publicado em janeiro de 1905, agregando inúmeras fotografias, fruto de uma aturada pesquisa e comprovando os conhecimentos especializados do autor, fica esta obra à disposição dos leitores interessados, constituindo um valioso contributo para a História do Poder Marítimo em Portugal.

A Revista Militar agradece a oferta do livro A História da Liga Naval Portuguesa (1900-2020) e felicita a Confraria Marítima-Liga Naval Portuguesa que o publicou e o autor, Contra-almirante Fernando David e Silva, que o escreveu.

 

Major-general Manuel de Campos Almeida

Vogal da Direção da Revista Militar

 

Major-general
Manuel António Lourenço de Campos Almeida
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