Este tema sobre a tropa a cavalo faz ressurgir na memória de um oficial de Cavalaria nomes – Cuamato, Macontene, Chaimite, entre outros –, associados a páginas gloriosas da história de Portugal, escritas por soldados e onde esta Arma foi sempre decisiva na sorte do combate.
A Cavalaria, como detentora do poder de choque dos exércitos e no decorrer dos séculos, teve uma importante intervenção em vários conflitos, principalmente na sua utilização em ações de exploração do sucesso ou de contra-ataque. Com o decorrer dos tempos, passou por várias fases de mudança no respeitante aos meios atribuídos e, consequentemente, na doutrina de emprego. Nas campanhas de África 1961-1974, as suas tropas vocacionadas e preparadas para o combate motorizado viram-se, de um momento para o outro, transformadas para atuarem como Infantaria. A característica eclética dos seus quadros permitiu uma adaptação rápida aos novos desafios. Mesmo assim, no início do combate à insurreição armada em Angola, Guiné e Moçambique, constituíram-se alguns esquadrões para missões específicas, com base em viaturas blindadas ligeiras.
Nos anos anteriores à eclosão do conflito, a doutrina vigente no nosso Exército, orientada para a guerra clássica, era a da OTAN e, principalmente as armas de Artilharia e Cavalaria tiveram que se adaptar a novos métodos e técnicas para combater a guerrilha.
O Centro de Estudos Gaspar Frutuoso do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores teve a iniciativa de promover várias palestras que trouxessem à memória a guerra colonial 1961-1974, na passagem dos 50 anos desse acontecimento, convidando cidadãos que prestaram serviço militar em África a exporem as suas experiências, vivências e sentimentos que, com o tempo, se foram conciliando. No fundo, folhas amarrotadas na memória dos intervenientes pelos muitos anos que passaram e ficaram indeléveis nos sentimentos de quem as viveu, e que também ajudaram a apagar uma furtiva saudade.
Por ter comandado um esquadrão a cavalo, fui dos escolhidos para dissertar sobre este tema, certamente interessante e até desconhecido de alguns quadros do Exército, pois, para muitos, a ação do cavalo na guerra era coisa do passado. Esta experiência obteve resultados muito positivos, lamentando-se que a sua aplicação não tenha sido concretizada mais cedo.
Apesar da motorização/mecanização, a Cavalaria manteve sempre uma ligação tradicional ao cavalo. Para os oficiais do quadro permanente, essa formação iniciava-se na Academia Militar, continuando no tirocínio para os que ingressavam na Arma. Após a promoção a oficial subalterno, era possível requisitar uma montada de desporto, o que era praticamente assumido pela quase totalidade dos visados.
Entre dezenas de capitães de Cavalaria, somente três tiveram a oportunidade de comandar tropa a cavalo e eu fui um deles (Agosto/1973-Julho/1974). É dessa experiência e com o título “Ação a cavalo em África” que passarei a dar o meu testemunho, ao qual quis associar elementos colhidos junto dos outros dois meus camaradas. Ao relatar as suas vivências, naturalmente diferentes, bem como também outras obtidas em pesquisas de documentos, procuro difundir a maioria da informação disponível.
Figura 1 – Um pequeno alto no decorrer de uma operação.
Esta experiência de tropa a cavalo teve lugar entre 1970-1974 e articula-se em três fases: a de iniciação, a de exploração das suas potencialidades e a de consolidação. Cinco anos constituem um período demasiado curto para ser avaliada comparativamente com a outra, de tipo dito normal de forças que atuavam correntemente nos três teatros de operações. A dificuldade na consulta, por falta de documentação e de arquivos respeitantes a esta temática, não torna possível fazer qualquer juízo mais sustentado, para além de meras considerações pessoais.
Acresce o fato dos esquadrões a cavalo serem designados como forças de intervenção, ficando agregados a uma unidade de escalão superior, de reforço ou em apoio. Os resultados obtidos revertiam diretamente para essa unidade, diminuindo um pouco a importância da atuação dos esquadrões, mas sem os fazerem passar despercebidos, como mais adiante de verá.
A resistência por parte dos decisores em avançar com propostas de criação de subunidades a cavalo atrasou uma experiência que poderia ser muito mais promissora.
Não sei se terá havido conhecimento, por parte da hierarquia e dos estados-maiores, da documentação elaborada sobre tropa a cavalo nas campanhas de África nos finais do século XIX. Salvaguardando a evolução dos meios materiais utilizados nesses conflitos, a leitura por quem fez as campanhas de 1961-1974 transporta-os para a sua realidade, pois a atuação, a doutrina de emprego e a gestão dos recursos em pouco ou nada se alteraram e, quando muito, apenas tiveram que fazer pequenas adaptações.
Tive a oportunidade de consultar essa documentação, feita há quase um século1, onde estão insertos os relatórios diários das campanhas, se registam as dificuldades sobre os recursos humanos e se descrevem os estudos realizados, bem como a doutrina produzida. A sua utilidade no contributo para melhores decisões sobre o emprego de tropa a cavalo em algumas situações vividas nas campanhas de 1961-1974 está nela bem patente. Isto porque o terreno era o mesmo e o modo de execução das missões não muito diferenciado. As operações estavam ainda mais facilitadas, pela evolução do armamento e a existência de meios de comunicação via rádio.
Por uma razão histórica e de melhor conhecimento sobre as questões da guerra (neste caso, sobre a Cavalaria), penso ser importante para os mais interessados na temática a leitura do “Capítulo III – Administração e Organização Militar”, do livro Moçambique, 1896-1898 (Volume II).
Não querendo retirar o interesse pela sua leitura, direi que, em termos genéricos, naquelas páginas são bem retratados os pensamentos sobre o modo de fazer a guerra. O seu autor, Mouzinho de Albuquerque, define regras e dá perspetivas para a melhoria da eficiência na condução dos assuntos inerentes ao pessoal e ao material. Chegou mesmo a especificar como devia ser executado o serviço militar em África, analisando as experiências de outros exércitos, nomeadamente o dos ingleses, tendo em consideração a existência de uma carreira militar em Portugal e outra em África.
Julgo também ter algum interesse, para quem quiser obter mais informação sobre tropa a cavalo, aceder ao site www.fuerzamildon.com/articulos/dragones.php, de um cidadão espanhol que disserta sobre este assunto (pesquisar em “Dragões de Angola/Facebook” ou “Asas ao Peito Boinas Verdes”).
Também John P. Cann, no seu livro Contrainsurreição em África – O modo português de fazer a guerra, faz referência às unidades montadas.
O cavalo é um elemento que desde sempre fez parte do imaginário dos povos. Foi utilizado no trabalho, nas pelejas, e participou nas conquistas, não menosprezando as sempre agradáveis atividades de lazer. Outras espécies animais também serviram o homem na perspetiva de vencer um combate, através da surpresa criada ou do poder de choque que transmitem, como são exemplo os elefantes de Aníbal de Cartago.
A partir do século XV a importância do cavalo justificava a atenção de quem reinava ou geria os assuntos do Reino, tal era a sua utilidade, como refere Ferrand d´Almeida no seu artigo “Recordações de um Dragão”2.
Também os Cadernos Coloniais “Ocupação dos Dembos 1615-1913” e “O Massacre do Cunene” registam não só essa utilidade como ainda a constituição, no século XIX, de esquadrões a cavalo, de que é exemplo o Esquadrão do Huíla3.
Uma curiosidade mencionada era a proibição do transporte de éguas para Angola4, por razões técnicas, pois a sua junção, em operações, aos cavalos era contraproducente para o necessário silêncio nos deslocamentos. Esta situação manteve-se por muitos anos, uma vez que os esquadrões constituídos entre 1969 e 1974 só tinham cavalos.
Aquando do litígio conhecido por “Mapa Cor-de-Rosa”, em que Portugal teve de enfrentar, em África, forças nativas rebeldes apoiadas pela Inglaterra e pela Alemanha, a tropa a cavalo teve um papel importante, quer em Angola quer em Moçambique, mesmo considerando já ter sido iniciado o processo de motorização dos exércitos.
No século XX e com a motorização em pleno, os alemães e os russos empregaram unidades a cavalo na II Guerra Mundial (as tropas alpinas alemãs ainda utilizam muares para o transporte de material), o mesmo fizeram os ingleses na Birmânia e na Índia, bem como os americanos nas Filipinas e na fronteira com o México, em 1941.
A Companhia de Polícia Militar 287, responsável pelo Checkpoint Charlie, junto ao Muro de Berlim, passou a ser montada para aumentar a sua eficácia. Os franceses também terão utilizado o cavalo no Chade. Em fins dos anos 60 (século XX), corriam notícias que os americanos iriam empregar cavalos no Vietname. Em 2001, o 5.º Grupo de Operações Especiais dos Estados Unidos atuou no Afeganistão com cavalos.
Outros países que não têm tido conflitos mantêm unidades a cavalo, como é o caso da República de África do Sul. A Rodésia usou-as durante vários anos.
Curiosamente, um país – a Suíça – que é peculiar em relação às suas forças armadas, nos exercícios de mobilização e treino apresenta unidades a cavalo e em bicicleta.
Figura 2 – Perante novos equipamentos, o cavalo não perdeu atualidade, embora estes meios aéreos em muito tenham contribuído para o seu apoio, principalmente em operações de reabastecimento de combatentes e solípedes.
Após a primeira experiência em Angola (1968), deu-se início em Vila Pery, em Moçambique, à preparação de um esquadrão a cavalo, que foi considerado pronto em Abril de 1974. Por motivo da alteração da situação política portuguesa, já não entrou em operações.
O Grupo de Cavalaria n.º 1 (GCav1), sediado em Silva Porto (Angola), passou à história como sendo a unidade-mãe dos esquadrões a cavalo. O seu quadro orgânico comportava o Esquadrão de Comando e Serviço e três de Reconhecimento, para além do Centro de Instrução de Tropa a Cavalo. Pertencia, ainda, administrativamente ao GCav1, mas não dependia dele sob o ponto de vista operacional, por constituir reserva da Zona Militar do Leste, um esquadrão a cavalo. Para completar o dispositivo da sua área de responsabilidade, o GCav1 era reforçado por mais quatro subunidades de escalão companhia, em Nharea, General Machado, Mutumbo e Munhango.
Conjuntamente com o batalhão aquartelado na cidade do Luso, tinha como missão, dentro de outras tarefas, manter utilizável a linha de caminho-de-ferro de Benguela, procurando impedir a sua destruição pelos movimentos independentistas.
Essa linha era muito importante para a Rodésia (hoje, Zâmbia), pois possibilitava o escoamento e receção de produtos através dos portos da costa angolana.
Como unidade da guarnição normal, o GCav1 integrava maioritariamente pessoal natural de Angola. Somente o comandante, 2.º comandante, oficial de operações, comandantes de esquadrão e um ou outro oficial e poucos sargentos eram originários de Portugal Continental. Para praças recorreu-se, em maior número, aos Cuanhamas e Cuamatos, por já estarem habituados a lidar com cavalos.
ORGANIZAÇÃO DO ESQUADRÃO A CAVALO
O primeiro esquadrão a cavalo, comandado pelo capitão Moreira Dias, foi constituído tendo por base a Companhia de Cavalaria n.º 2635 (CCav2635) reforçada em pessoal pelo GCav1. A sua adaptação foi determinada pela experiência obtida por um pelotão a cavalo em 1968 e com a finalidade de obter uma maior capacidade de resposta no terreno.
Assim, já o 2.º esquadrão a cavalo passou a ser composto por um comando e três pelotões (na organização apeada eram quatro), com um efetivo da ordem de 180 homens e 150 cavalos. Cada pelotão era constituído por três secções, com um total de 45 a 48 homens.
O acréscimo de pessoal, relativamente ao de um pelotão apeado, justificava-se pela necessidade de ter mais cinco elementos por secção, para garantir a guarda dos cavalos quando o esquadrão atuava apeado, articulado em grupos de combate e utilizando a tática dos «comandos».
Normalmente, o esquadrão atuava apenas com dois pelotões e secção do comando, que integrava um radiotelegrafista, dois enfermeiros, um apontador de morteiro 60 mm e dois ou três homens, que conduziam dois ou três cavalos de reserva para uma eventual substituição, como mais à frente se verá.
Figura 3 – Transporte mais usado pelo Esquadrão na sua deslocação para intervenções na Zona Militar Leste.
A aplicação dos meios humanos e materiais nas intervenções militares decorre de acordo com técnicas e táticas, em função do objetivo que se pretende atingir.
Não fosse o empenho de quem comandou o GCav1, como também de outros oficiais da Arma que, desempenhando outras funções operacionais em Angola, tiveram a visão da sua aplicabilidade e utilidade, certamente esta realidade nunca teria acontecido. Mais tarde, o tenente-coronel Ferrand d´Almeida teve a mesma perceção.
Se não tivéssemos em consideração os relatos desapaixonados de lutas travadas nas estepes, conjugando o estudo criterioso do terreno com a exploração das características da tropa a cavalo, certamente que a história das suas unidades, no século XX, seria diferente.
Por isto, passarei a fazer uma breve referência às campanhas em África no final do século XIX. As alegações negativistas foram muitas. Desde o cavalo ser um alvo com uma grande silhueta e, portanto, incapaz de se abrigar quando submetido ao fogo inimigo, bem como questões sanitárias, de reabastecimento e de instrução, levariam, no pensamento dos opositores, a ser pouco compensadora a sua utilização. Quem assim pensou ou decidiu devia ter lido, de entre outros: António Ennes, A guerra de África 1895; Mouzinho de Albuquerque, Livro das Campanhas; Mouzinho de Albuquerque, Moçambique 1890-1896; em que a defesa da existência deste tipo de forças é notória.
Mais recentemente, e já no século XX, também se manteve esta linha de pensamento. A título elucidativo, transcreve-se o que o Comandante-Chefe das Forças Armadas em Angola apresentou ao Ministro da Defesa em Janeiro de 1971, aquando da visita a Angola:
[…] A organização, instrução e manutenção de unidades a cavalo têm acarretado à RMA uma quantidade enorme de problemas, alguns dos quais de muito difícil solução.
O cavalo é um animal sensível, frágil, vulnerável e indiscreto. Necessita de pessoal que o saiba tratar, trabalhar e utilizar para que se possa tirar desse belo animal o melhor rendimento. A sua fragilidade e sensibilidade implicam a existência de infra-estruturas apropriadas – cavalariças e enfermaria – um serviço veterinário eficiente e uma alimentação racional e apropriada ao trabalho que se lhe exige e que é bastante dispendioso.
O ensino e treino necessitam de especialistas que hoje já não se encontram com facilidade no Exército.
O emprego de tropa a cavalo requer a existência de bons quadros de cavalaria que também não são fáceis de descobrir nos postos de sargento, alferes e capitão.
A curta experiência que até agora colhemos do emprego das tropas a cavalo leva-nos a afirmar que são unidades esplêndidas em largas áreas, a fim de contactarem populações em zonas pacíficas ou de subversão pouco activa, para se deslocarem rapidamente para locais situados num raio de 50 a 60 km e para patrulharem de dia os bairros suburbanos das cidades mais populosas.
Por enquanto não temos dados seguros que nos permitam avaliar da sua eficácia em zonas de subversão activa, infestadas por grupos bem treinados e aguerridos.
Para formar os esquadrões a cavalo, a RMA teve de dar, como contrapartida, duas companhias de caçadores de reforço.
O sistema de contrapartidas definido assentou no princípio de os esquadrões a cavalo serem constituídos com pessoal vindo da Metrópole. Por facilidade de instrução e permanência nas fileiras, chegou-se à conclusão que era preferível organizar essas Unidades com pessoal de recrutamento da província.
Por isso, no 1.º semestre de 1971, não serão rendidas as CCaç2481 e 2488 como contrapartida do 1.º e 2.º esquadrão já formados.
A RMA não considera oportuno organizar o 3.º Esq. que estava previsto para 1971 enquanto não se adquire maior experiência, no emprego operacional dessas unidades.
Por todas as razões expostas dou o meu pleno acordo à proposta da RMA tanto mais que a evolução da situação não nos permite prescindir das CCaç exigidas em contrapartida […]
Esta posição em nada abonou a favor da tropa a cavalo, mas a empresa continuou em frente, principalmente em 1971 e 1972, e, até mesmo depois de 25 de Abril de 1974, o 2.º esquadrão a cavalo (o único já existente) manteve a atividade. O seu emprego em áreas por vezes inacessíveis a quaisquer outros meios levou a uma maior rapidez na atuação, com surpresa e conseguindo muito bons resultados operacionais.
Os rios são bem exemplo disso e, para ultrapassar estes obstáculos, algumas vezes foi necessária a construção de jangadas.
Figura 4 – Uma fase da construção de uma jangada.
Na Zona Militar Centro, escalão superior do GCav1, foi elaborada uma norma de execução permanente (NEP), em Março de 1971, sobre o emprego da tropa a cavalo no Sector do Bié, que atribui as seguintes missões:
VI – Missões Principais
a. Exploração do sucesso – Acções de perseguição e batida nas possíveis áreas de refúgio dos elementos In após terem sido desbaratados por acções de forças apeadas.
b. Pesquisa de informações – Reconhecimento, armado ou não, de zonas subvertidas para captura de elementos In ou de populações refugiadas na mata, bem como a detecção de zonas de infiltração ou passagem de GR/IN ou de ACAMP/IN.
c. Flanqueamento – Patrulhamento dos compartimentos de terrenos contíguos à ZA onde operam outras unidades e durante o decurso das mesmas, por forma a dificultar a dispersão dos elementos In.
d. Patrulhamento – Acções de controlo das populações; de desarticulação do dispositivo In; de vigilância de áreas de acesso difícil a viaturas e outros.
e. Apoio imediato – Como força de intervenção rápida em apoio a Unidades empenhadas ou para exploração oportuna de Info ou ainda no controle de zonas subitamente afectadas.
Para dar uma noção do tipo de intervenção que se podia realizar, transcreve-se:
Um esquadrão chegou a percorrer 800 km durante um mês, tendo reabastecido e descansado de 1 a 3 dias após 4 ou 5 dias seguidos de actuação através de extensas zonas de mato.
Noutra operação em que foi necessário bater uma vasta região compreendida entre os rios Luando e Cambo, no extremo norte do distrito do Bié, totalmente inacessível a viaturas, um esquadrão actuou aí durante 7 dias sem ter recebido qualquer reabastecimento para homem ou para os cavalos, o que até por meios aéreos teria sido difícil devido às intensas chuvas e permanente nebulosidade. Valeram-nos os abastecimentos para os cavalos, como milho e massango, encontrados em acampamentos inimigos abandonados, para suprir a limitada dotação de ração transportada por cada cavalo5.
Esta descrição diz respeito à operação “Alvorada”, que decorreu sob o comando do capitão Moreira Dias.
Penso estarem aqui bem patentes algumas das capacidades de um esquadrão a cavalo. Estas possibilidades permitiram elencar mais as seguintes missões:
– Vigilância e interdição de fronteiras;
– Interceção e perseguição de grupos inimigos infiltrados e em trânsito entre as fronteiras e na área de atuação da guerrilha, por vezes em missões de reabastecimento ou escolta de populações coagidas a abandonar os seus povoados;
– Vigilância de áreas interditas à fixação de populações que o inimigo aliciava ou forçava a dar-lhes apoio logístico;
– Vigilância de áreas dificilmente acessíveis a viaturas ou tropas apeadas, por mal servidas de vias de comunicação;
– Batidas em áreas indiciadas como de fixação temporária de grupos inimigos;
– Exploração de sucesso em perseguição de guerrilheiros afugentados ou localizados por outras forças;
– Outras missões inerentes a este tipo de guerra e, para seu cumprimento, não poderia ser mais eficientemente desempenhada por quaisquer outras forças, mesmo que dispusessem do «luxo» de ter meios aéreos, como helicópteros, em quantidade suficiente e em permanência.
Neste último item aponta-se para a eficácia da tropa a cavalo, pois, tendo um meio de transporte que leva o combatente a longas distâncias e por áreas inacessíveis, pode, ainda e em caso de necessidade, atuar como tropa de Infantaria.
As imagens abaixo poderão dar uma ideia da aplicabilidade e eficácia da tropa a cavalo, tendo em consideração a extensão da zona de ação.
Figura 5 – Área de atuação dos esquadrões a cavalo.
Agora, será interessante analisar a capacidade de cumprimento das missões, comparativamente com outras forças.
Assim, em relação a:
1 – Forças apeadas
A tropa a cavalo percorria 50 km, em média, por dia. Muito superior às forças apeadas, o que lhes possibilitava um maior raio de ação, capacidade de manobra e dava vantagem na perseguição e atuação com surpresa.
Considerava-se, então, que a volumetria do cavaleiro e cavalo, era uma vulnerabilidade.
Será interessante transcrever, a este propósito, um extrato dos relatos sobre as lutas travadas em África, no final do século XIX, entre forças comandadas pelo capitão Luís Pinto de Almeida e as tribos rebeldes:
O primeiro-oficial a tombar, depois da morte da sua montada, foi o capitão Pinto de Almeida, com uma bala que lhe entrou pela boca e saiu pela nuca, rapidamente foram mortos quase todos os oficiais e sargentos. Ocultos em cima das árvores, atiradores especiais, que mais tarde se soube serem alemães, alvejavam e abatiam os oficiais que se distinguiam bem em virtude de o reluzir das suas espadas6.
Sendo outros os tempos, os meios e as táticas de combate, esta vulnerabilidade, comparada com a capacidade de atuação de surpresa, a imprevisibilidade da escolha do itinerário para alcançar o objetivo da operação, a dispersão (entre cada conjunto cavaleiro e cavalo a distância, que variava entre os 15 e os 50 metros, dependente do terreno) e a capacidade rápida de envolvimento à carga, era minimizada por estas possibilidades e o efeito psicológico criado sobre o inimigo.
Figura 6 – Progressão em coluna na Chana.
Figura 7 – Uma Secção em reação à ação do inimigo.
Acresce que a particularidade de o cavaleiro ter atribuída uma pistola e uma espingarda G3 fazia aumentar o poder de fogo, majorando aquela situação.
Como curiosidade, refiro que na minha última operação (Junho de 1974) no eixo Luso-Henrique Carvalho, o esquadrão foi armado com G3 de coronha retrátil, que se mostrou mais adaptada para este tipo de forças.
No decorrer das operações, a altura do capim e a vegetação arbustiva contribuíam para tornar menos visível, ao atirador inimigo, a silhueta já de si fugidia do cavalo em andamento rápido. Também o cavaleiro, pelo comandamento que possuía por estar montado, detetava com relativa facilidade o inimigo, especialmente quando este tentava a salvação na fuga.
Figura 8 – Em progressão com uma boa camuflagem.
2 – Forças autotransportadas
Estas forças estavam restritas aos itinerários e perdiam, por isso, o efeito de surpresa. Eram mais vulneráveis às minas e emboscadas, sem grande capacidade de manobra e com custos muito superiores em termos de aquisição e manutenção das viaturas. Pelo contrário, o ataque por surpresa da tropa a cavalo, em todo o terreno, evitando as vias de comunicação, comportava menos risco quanto à ameaça das minas e exposição a alguma flagelação.
Julgo ser interessante referir que pelo custo de uma viatura Berliet (com capacidade para o transporte de 28 militares ou quatro toneladas de material, muito sujeita a longos períodos de inoperatividade devido ao efeito das minas), podia adquirir-se, com incomparável vantagem por ter uma menor probabilidade de destruição, um pelotão a cavalo (48 solípedes)7.
3 – Forças helitransportadas
Facilmente se posicionavam na zona pretendida, com um efeito de surpresa e capacidade física para o combate semelhantes ao da tropa a cavalo. Porém, as possibilidades de deteção e perseguição em trilhos inimigos, especialmente em zonas arborizadas ou de floresta pouco densa, eram muito superiores para a tropa a cavalo. Um outro fator importante e talvez pouco equacionado era o custo do conjunto cavaleiro e cavalo relativamente à utilização do helicóptero (custo + manutenção + utilização + tripulação), em que o custo daquele era muito inferior a este.
O emprego da tropa a cavalo exigia uma criteriosa ponderação, em virtude das limitações e condicionamentos existentes, nomeadamente nas áreas do apoio logístico, remonta, assistência sanitária, seleção e eficiente instrução do pessoal.
Para além destes constrangimentos, há que ter em conta o tipo de terreno onde se aplicavam essas forças. Na minha comissão anterior (1970/72), também em Angola, em Zemba, estive durante o primeiro ano na zona dos Dembos, onde era impossível utilizar tropa a cavalo, pois era muito montanhosa, com uma vegetação muito densa e recortada por várias linhas de água. Outras regiões de Angola, como por exemplo a Serra de Camba, Nambuangongo, Dembos, Zala e áreas pantanosas, identicamente constituíam obstáculo para o seu uso. Relativamente aos rios e desde que as margens fossem de fácil acesso era possível, com a improvisação de uma jangada para o material ou outros recursos, fazer a transposição.
A questão do reabastecimento de água para homens e cavalos, mesmo em anteriores campanhas no sul de Angola8, constituía uma das maiores preocupações dos comandantes. Se em certas zonas e conforme a época do ano (seca ou das chuvas) existiam cursos de água onde se podia captá-la, havia outras, nomeadamente em planícies, que devido à inexistência de linha de água isso se tornava impossível.
Como curiosidade, vou contar uma experiência que tive para obviar este problema. No início das operações e logo que possível, o pessoal nativo (praças), conhecedor da natureza, retirava do terreno uma espécie de tubérculo escamoso, que no interior era semelhante à romã. Cada elemento recolhia umas tantas peças e quando tinha sede cortava uma delas e chupava o seu interior. Passado algum tempo a sede desaparecia.
As questões sanitárias são muito relevantes neste tipo de força, não só para o homem, mas também para o cavalo, constituindo uma limitação a deficiente capacidade física de qualquer um deles. Nesse sentido e para a higiene oral utilizava-se um expediente. De um certo arbusto conhecido do pessoal autóctone cortavam-se uns galhos, cuja espessura não excedia 1 cm e em pequenas peças à volta de 5 cm de comprimento. Retirada a casca, colocava-se na boca, após a refeição, durante algum tempo. O efeito era espantoso. Os dentes ficavam brancos e tinha-se a sensação de não haver restos de comida na boca.
Estas questões foram de facto muito sentidas nas campanhas de África no final do século XIX e início do século XX9, mas também, de uma forma não tão acentuada, na guerra colonial entre 1969-1974, período em que se materializou a utilização da tropa a cavalo, e o perigo de surgir uma epidemia era um ponto comum.
Para evitar esse condicionamento, faziam-se inspeções veterinárias e o cuidadoso acompanhamento diário. Após qualquer operação e a título de exemplo, refere-se que os cavalos iam ao banho descarracida. Também lhes era administrado um suplemento alimentar vitamínico e de sais minerais. Uma outra tarefa/preocupação era a verificação do estado dos cascos. Como os cavalos transitavam em terrenos arenosos, periodicamente os cascos eram grosados e cortados para manter os aprumos, sob pena de inutilização das montadas. Durante a época das chuvas, em que os cascos ficavam mais fracos, usava-se o sulfato de cobre para os untar e evitar o excesso de humidade.
As assentaduras eram uma outra grande preocupação, porque, enquanto não fossem saradas, os solípedes não podiam ser montados. A assentadura resultava do contacto da sela e da manta com o dorso do cavalo, e era provocada pela má colocação da manta ou do esforço despendido durante uma operação. Este problema já fora relatado, com apreensão, nas campanhas de Mouzinho de Albuquerque10.
Uma grave limitação que muitas vezes aconteceu no transporte de cavalos nas campanhas de Mouzinho de Albuquerque e que, felizmente, no período de 1969-1974 não se registou, foi a chamada horse-sickness11, uma espécie de enjoo que dizima os solípedes.
Também não podem esquecer-se os aspetos relacionados com a alimentação. O cavalo, cuja volumetria transmite robustez, possui um estômago frágil, obrigando a grandes cuidados com a sua alimentação. A ração fornecida, podendo variar em quantidade e variedade, é sempre constituída à base de milho, aveia, fava e alfarroba, com eventual adição de vitaminas e sais.
Segundo relata Manuel Ferreira no Caderno Colonial n.º 6812, a questão da alimentação ainda implica, por razões práticas e para que todos os solípedes consumam rações idênticas, que a remonta seja realizada em países com clima semelhante àquele onde iriam a atuar.
V – Remonta, Ensino e Instrução de Tiro
Sendo o cavalo o “ator principal”, importa trazer ao conhecimento as opiniões e experiências vividas há um século, bem como fazer algumas considerações quanto às remontas efetuadas no âmbito da guerra colonial, no período de 1969-1974. Penso que os elementos mais antigos colhidos, reportando-se a Moçambique, não perdem validade se os transmutarmos para Angola, pois os argumentos e os fatos expressos mantêm idêntica pertinência.
Assim, António Ennes, governador-geral de Moçambique13, em face das descrições dos fatos que lhe eram apresentados e decisões decorrentes, na perspetiva da reorganização das forças naquele território e tendo dificuldades na obtenção de meios de transporte para os cavalos, acabou por fazer a remonta em mercados precários.
Também só nesses mercados poderia comprar 150 a 180 solípedes de que havia de precisar o esquadrão de cavalaria, que a metrópole tencionava mandar para Lourenço Marques quando parasse a estação das chuvas14.
Quanto aos meios de transporte, escreve:
O único processo explícito para adquirir seria certamente comprá-los aos estrangeiros da vizinhança, pois era impossível fabricá-los na província, e porque, se os encomendasse a Lisboa teria que esperar que meia dúzia de repartições e outras tantas comissões especiais dissessem acerca da encomenda douto despacho, os quais possivelmente conduziriam todos que não convinha fornecer o que se pedia15.
Para melhor nos apercebermos das dificuldades surgidas para dar solução ao problema, transcreve-se:
Em 1891 tinha-se pago, só pelas passagens das alimárias que a artilharia e o Estado-Maior levaram consigo, muito mais do que elas valiam, e a horse-sickness dizimara-as ainda antes de terem tido algum préstimo, salvando-se apenas as que haviam sido transportadas apressadamente de Lourenço Marques para Moçambique, aconselhado por esta experiência propus que antes se comprasse na África o gado necessário para a cavalaria que lá fosse servir…
Nesta conformidade, António Ennes nomeia uma comissão de remonta que se desloca à Colónia de Natal, e de Durban terão sido enviados os solípedes comprados, por ser o porto mais perto de Moçambique, tornando menos onerosa a aquisição16.
Não a pedi, mas aceitei-a de boamente quando o senhor ministro da guerra me a ofereceu. Aceitei, todavia, um só esquadrão, em vez de dois, e propus que para esse se fizesse a remonta em África – no Transval ou nas colonias britânicas – não só para poupar despesas de transporte, mas também por ter provado a experiencia de 1891 que os solípedes europeus não resistem ao clima de Lourenço Marques17.
Estas referências são importantes para se poder justificar as aquisições de cavalos em África ou em países com características climatéricas semelhantes, por exemplo a Argentina, devido a razões que referirei mais à frente.
Assim, no período de 1969-1970, foram realizadas quatro remontas (A, B, C e D) na África do Sul, para cavalos de médio porte, não ferrados e perfeitamente adaptados ao terreno e ao clima. Quanto à alimentação não surgiram problemas de maior e não houve dificuldades no seu desbaste e ensino, dada a experiência equestre do capitão Vasco Ramires. Mais tarde são feitas mais duas remontas (E e F) mas, desta vez, 225 solípedes argentinos18. Estes cavalos eram mais fortes e corpulentos, porquanto da experiência com os cavalos sul-africanos ressaltou que o esforço a despender no transporte do cavaleiro, cujo peso do cavaleiro era variável, para além do armamento, os arreios, rações de combate para o militar e a destinada ao cavalo (20/30 kg), se tivermos em consideração que um solípede pode transportar até ¼ do seu peso, o total podia ultrapassar as suas capacidades. Todavia, apresentaram alguns problemas com a alimentação e teve que se fazer um desbaste, para os aperfeiçoar, no Centro de Instrução de Tropa a Cavalo.
Figura 9 – Transporte de uma remonta argentina.
Como já referido, a CCav2635 foi a primeira a ser reconvertida num esquadrão a cavalo. Após o seu pessoal ter ficado apto a montar à vontade e aprendido a condução do cavalo, passou-se à adaptação deste ao tiro. Numa primeira fase eram efetuados disparos no período da data de água (os cavalos eram levados para os bebedouros após o respetivo toque de clarim) e, também na distribuição da ração. Numa segunda fase e já com os cavaleiros montados, efetuavam-se disparos e rebentavam-se pequenos petardos. A última fase consistia no tiro a cavalo, com a G3 em bandoleira ou, então, com a pistola.
É sempre importante procurar encontrar testemunhos antigos que nos possam ajudar a compreender a nossa realidade e a retirar ensinamentos úteis. Se a intenção é relatar a experiência da tropa a cavalo no período de 1969-1974, os relatos que se seguem são de fato elucidativos quanto ao assunto deste capítulo.
[…] do Major Wissmann e dos oficiais que estavam às suas ordens: é certo que os ingleses preferem a todas para a guerra de África, as tropas montadas […]19
Também se retira de um relatório do grande oficial de Cavalaria que foi Mouzinho de Albuquerque:
4.º Cavalaria – cada vez se mostra mais quanto é indispensável o emprego desta arma. Sem a cavalaria nem a vitória de Macontene teria sido decisiva como foi, e nem Maguiguana teria sido agarrado. Entre o Bilene e a fronteira do Transval só poderia operar forças a pé quando trouxessem consigo água para dois ou três dias, o que só por si representaria um obstáculo quási insuperável. As forças devem remontar aqui por ser o cavalo de África como o da Índia muito mais resistente que o Peninsular. Os selins da nossa cavalaria embora pesados e grandes demais, são preferíveis aos selins semimilitares por serem mais bem feitos20.
Entrando numa descrição mais pormenorizada sobre as características de aplicação da tropa a cavalo, e assim dar uma imagem mais abrangente, referiremos os seguintes seis pontos:
1 – Efeito psicológico
Se tivermos em consideração a volumetria do conjunto cavaleiro e cavalo aparelhado com os apetrechos necessários para a operação (podia atingir os 150 kg), o que já por si representa algum efeito de massa, certamente que o pelotão (48 parelhas) e por maioria de razão o esquadrão (-) (dois pelotões) causarão, aos elementos apeados inimigos, sério desconforto. Mesmo em formação (coluna, cunha ou linha), o que obrigava sempre à dispersão, quer a nível de pelotão quer a nível de esquadrão e consoante o andamento imposto, provocava uma reação, no mínimo de respeito. Uma carga efetuada por um esquadrão supera em muito o poder ofensivo da tropa normal (apeada), transmitindo um efeito aterrorizante sobre quem é perseguido.
Figura 10 – Perseguição e captura de um guerrilheiro
(corresponde à mancha branca do 1.º cavalo).
2 – Mobilidade e rapidez de reação
Uma força a galope e a técnica da mudança de frente foram manobras decisivas, quer na perseguição quer na reação a ações inimigas. Este modelo de atuação, aproveitando a capacidade de mobilidade, levou a que grupos inimigos infiltrados fossem empurrados para locais onde se viriam a posicionar tropas paraquedistas (pertencentes à Força Aérea – ver site www.asasaopeitoboinasverdes) ou de comandos, na sequência de comunicação oportuna por equipamentos rádio que permitiam a interligação entre meios aéreos e terrestres. Também era possível perseguir grupos inimigos que tivessem fugido à ação daquelas forças.
3 – Efeito de surpresa
O silêncio nos deslocamentos era uma realidade. Mesmo que, eventualmente, se produzisse algum som, este seria facilmente confundido com o ruído de qualquer animal. O facto de a distância entre as parelhas (cavaleiro e cavalo) ser de 15 a 50 m levava a que não se falasse, utilizando-se sinais gestuais para comunicar. Após a entrada do esquadrão na mata, o grau de surpresa resultante da sua aparição inesperada era superior ao provocado pelas forças helitransportadas.
4 – Capacidade de percorrer grandes extensões de terreno
As operações no terreno duravam cerca de cinco dias, percorrendo-se diariamente, em média, 50 km, o que perfaz uma distância consideravelmente afastada de qualquer aquartelamento. Esta extensão ultrapassava, em muito, as possibilidades da tropa apeada, com a vantagem adicional de as unidades a cavalo poderem penetrar em zonas inacessíveis àquele tipo de força.
5 – Capacidade acrescida de observação
A tropa a cavalo tem o seu campo de visão ampliado relativamente ao de uma força apeada, devido a o combatente estar montado no solípede e poder observar a cerca de dois metros de altura. Isto permitia detetar, a uma distância muito considerável, movimentos no capim ou em mata rala. E se por um lado a parelha constitui um alvo mais visível, por outro ganha maior vantagem através deste acréscimo da capacidade de observação.
6 – Possibilidade de atuação como tropa apeada
Face a uma situação inopinada, para captura de elemento(s) adverso(s) ou por informação objetiva de quartel inimigo, podia-se atuar apeado. Para isso, posicionavam-se os cavalos com a respetiva guarda (cerca de 1/3 dos militares do pelotão) em zona protegida do terreno, e o restante da força era articulada em grupos de combate.
O período em que se empregaram unidades a cavalo (1969-1974) foi relativamente curto, cerca de metade da duração da guerra colonial, mas não deixou de provocar vários incidentes, dos quais resultaram baixas.
Dos registos consultados21 obtivemos os seguintes dados (Julho de 1973):
Cavalos Mortos:
– Ação de fogo inimigo 7
– Armadilhas (cova de lobo à entrada de lavras) 1
– Mordidela de cobras 3
– Envenenamento por erva 1
– Incêndio em cavalariças 43
– Ataque de abelhas selvagens 2
– Fuga para o mato e dificuldade de recuperação 1
Cavalos Feridos:
– Ação de fogo inimigo 7
Homens Feridos:
– Acidente com viatura (24) 1
Estes dados foram referidos pelo tenente-coronel Ferrand d’Almeida, por altura da sua saída do GCav1. Na continuação da atividade a cavalo registaram-se mais dois abates: um por mordidela de cobra e outro por envenenamento com erva.
O envenenamento acontecia quando, ao amanhecer e antes de continuar uma operação, por falta de água na área deixavam-se os cavalos comerem o capim molhado pelo cacimbo noturno, pois era uma maneira de se hidratar o organismo do animal. Acontecia que eram ingeridas ervas venenosas misturadas com o capim, o que provocava o envenenamento do sangue e o cavalo inchava. Não conseguindo por si só expelir os gases, esta situação levava à interrupção da atividade para se fazer uma punção no ventre do solípede, procurando-se, assim, atenuar os seus efeitos, mas, muitas vezes, acabava-se por abater o animal.
Na progressão no mato, a folhagem caída não permitia ver qualquer objeto estranho e era sempre possível calcar algo. Quando um cavalo pisava uma cobra, esta naturalmente reagia. O único indício que se tinha era um barulho que quebrava o silêncio na deslocação do esquadrão, provocado pela fuga da cobra revolvendo a folhagem. Após a identificação deste barulho, e não se sabendo qual a montada mordida, observava-se o andamento de todos os cavalos e aquele que se atrasava era o atingido, pois o sangue já estava envenenado, diminuindo as suas capacidades. Pouco tempo depois tinha que ser abatido!
A quantificação dos resultados operacionais obtidos pelos “Dragões”, no dizer do tenente-coronel Ferrand d´Almeida22, não era relevante para a caraterização do GCav1:
[…] julgo ser de pouco interesse enumerar os dados estatísticos, pois numa guerra subversiva esses dados por vezes são poucos significativos quanto à qualidade da eficácia das tropas que os obtiveram.
Todavia, penso ser importante mencionar o papel de relevo que teve o 2.º Esquadrão a cavalo, comandado pelo capitão Luís Banazol, no período de grande actividade operacional (ver mais à frente referências às operações EOLO e EXULTAR) e que para complementar se juntam as fotos seguintes como resultado das mesmas.
Figura 11 – Mais uma operação com êxito.
Figura 12 – Armamento apreendido numa das várias operações.
Neste caso concreto, a aplicação de esquadrões a cavalo no leste de Angola e no conjunto das operações, com vista a neutralizar a concretização da rota “Agostinho Neto” para atingir a I Região Militar (MPLA) onde permanecia uma bolsa cercada por elementos da FLNA, teve um efeito dissuasor de grande impacto e da maior importância, contribuindo significativamente para contrariar a vontade das forças adversas.
Figura 13 – A fronteira étnica ultrapassava a fronteira física.
Figura 14 – Regiões político-militares do MPLA.
Figura 15 – Áreas de implantação dos movimentos.
Figura 16 – Localização das bases dos movimentos.
Figura 17 – Rota Agostinho Neto.
Há um ditado popular que tem aqui particular aplicação: “Não se deve ser juiz em causa própria”.
De facto, os relatos trazidos a estas páginas resultaram do que li, da minha experiência pessoal e daqueles que tiveram a sorte, numa época de motorização do Exército, de comandar tropa a cavalo.
Penso que consegui ser isento e não ter sido levado por excesso de entusiasmo ou vaidade.
Mais uma vez faço referência à cooperação, muito estreita, entre os paraquedistas e a tropa a cavalo, bem relatada no site daqueles e a confirmar alguns dos aspetos expostos.
Para melhor comprovar todo o esforço despendido, transcrevem-se partes de relatórios elaborados pelos comandos que receberam esquadrões a cavalo atribuídos em reforço.
Do relatório de operação EOLO, realizada na Zona Militar do Leste entre 8 de Agosto e 1 de Setembro de 1971, extrai-se:
a – Só uma testemunha ocular pode avaliar o esforço tremendo a que o pessoal e cavalos são sujeitos numa operação deste género. O calor, a sede, o perigo e tensões constantes, aliados ao cansaço que representa cavalgar cerca de 560 km por anharas infinitas, as constantes solicitações dos animais, o transporte e consumo de elevado número de rações (para 4 ou 5 dias) são factores que só uma tropa profundamente disciplinada e mentalizada pode suportar com o estoicismo de que constitui este Esquadrão
de Reconhecimento a Cavalo o que muito dignifica a arma de Cavalaria. O entusiasmo e o sentimento de missão que animaram estes cavaleiros durante todo o percurso, são o reflexo de um espírito de corpo a que por certo não é estranho o facto de quase todos – praças, sargentos e oficiais – serem naturais da Província. No aspecto sanitário todos os elementos apresentaram no fim excelentes condições físicas.
b – Na generalidade, era bom o aspecto dos cavalos no final da operação, embora denotassem uma diminuição progressiva de peso, que nalguns atingiu cerca de 50 quilos. Contudo, a sua resistência física não ficou sensivelmente diminuída o que constituí até uma certa surpresa para os cavaleiros que, por vezes, os tiveram que refrear nalgumas cargas efectuadas.
Do relatório da operação EXULTAR, realizado em Fevereiro de 1972, entre os rios Bala e Cuvelai, com a duração de 30 dias, destaca-se:
2. Destinou-se a dar mais um golpe no dispositivo inimigo na área do sector 6 da zona C da III RPM do IN, já desarticulado por golpes sucessivos que vem sofrendo desde há longa data.
3. Foi bem planeada e conduzida pelo comandante do Subsector SIP e levou a resultados apreciáveis tanto materiais como psicológicos provocando apresentações no vizinho Subsector de Canzamba.
4. Foi uma prova dura para as tropas a cavalo, que permaneceram no mato trinta e quatro dias sucessivos, vindo a demonstrar a utilidade prática e a eficiência deste tipo de tropa em operações em áreas com as características desta, dada a sua aptidão para bater zonas extensas, a sua apreciável mobilidade táctica e a faculdade de seguir rapidamente rastos deixados pelo IN, conduzindo, pelo relativo silêncio da sua progressão, à obtenção da surpresa.
E, para terminar, transcrevem-se algumas impressões de forças opositoras que Ferrand d´Almeida regista no seu testemunho23 e que dizem respeito ao período em que atuaram os esquadrões a cavalo:
Porém, se tomarmos como conselho um lema de uma das nossas unidades de Cavalaria – PERGUNTAI AO INIMIGO QUEM SOMOS –, devolvemos-lhe também a palavra, transcrevendo parte de uma carta apreendida junto à fronteira com a Zâmbia. Sem alteração da gramática, muito especial em que estava escrito, dizia o seguinte:
“CHIFUMAGE – SECTOR 2”
1-9-71
Hoje escrevemos esta carta ao Comandante IKO.
Em primeiro lugar saudações e cumprimentos.
Sim, todos nós estamos aqui a dormir, afinal nós viemos de CASSAMBA para aqui para nos juntarmos aos camaradas e você sozinho? Verdade? Um dia tu vais morrer à toa.
Mas não fomos nós que falamos com o Agostinho para irmos junto contigo lutar com os brancos, não. Mas agora vemos que todas as pessoas já foram liquidadas. Já perdeu a guerra, pronto deixa lá.
Nós estamos a lutar com os brancos, mas hoje veio a guerra com os cavalos, mataram muitos aqui no Chifumage e no Luena, ficamos nós cinco aqui, esperando aqui para eu mandar primeiro ao subsector do Kakeya, aquele Kakeya quando vier, vem-nos dizer para fugir. Quando nos assustarmos iremos para lá.
Primeiro dizemos-te aquele assunto que tu falaste, ninguém mais aqui quer teimar com os cavaleiros, nenhum camarada tem corrida para correr com o cavalo e fazer-lhe fogo. Aqui os cavalos estão a lutar com os camaradas, ninguém consegue matar um.
Aqui nas chanas, mesmo que mandem camaradas para lutar com os cavalos, não vão conseguir. As pessoas quando estão nas subidas e fazem fogo contra eles são difíceis e há muitos dos nosso que morrem.
Não sabemos quando vêm aqui ao sector com o presidente, se calhar quando vierem vão-nos fazer fugir, não sabemos, mas lembramo-nos que ainda estamos com vida, vamo-nos embora.
Depressa, manda os camaradas para levarem o material, nós estamos para sair daqui, agora estamos cansados de mortes, estamos muito liquidados.
Se tu demorares mais do que um mês, vamos deixar aqui todo o material e vamo-nos embora porque vocês já perderam a guerra24.
Embora o desfecho das campanhas de África 1961-1974 não seguisse esse rumo e apesar da muita resistência ao levantamento das unidades a cavalo, julga-se que fica bem demonstrada a eficácia da sua tropa, pela confirmação dos resultados obtidos.
As imagens números 02, 05, 06, 13 a 17 foram extraídas dos cadernos A Guerra Colonial, publicados pelo jornal Diário de Notícias. As imagens números 03, 07, 09 a 12 foram extraídas da página de Dragões de Angola/Facebook.
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* Artigo publicado na Revista Insulana n.º 71 (2015).
1 ENNES, António, A Guerra de África em 1895, Prefácio, 1944; ALBUQUERQUE, Mouzinho de, Moçambique,1896-1898, volume II, Biblioteca Colonial Portuguesa, lV Divisão de Publicações e Biblioteca, Agência Geral das Colónias, 1934; ALBUQUERQUE, Mouzinho de, Livro das Campanhas, volume I, Biblioteca Colonial Portuguesa, Divisão de Publicações e Biblioteca, Agência Geral das Colónias, 1935.
2 ALMEIDA, António Ferrand de, “Recordações de um Dragão”, in Revista Militar n.º 10/11 – OUTUBRO-NOVEMBRO, 1985, pp. 690 a 692.
3 Cadernos Coloniais, Edições Cosmos, Rua das Gáveas, 115, Lisboa, n.ºs 61 e 68.
4 Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, 1961-1974, 6.º volume, tomo II, Angola – Livro 2. EME, Lisboa, 2006, pp. 323 e 324.
5 Almeida, António Ferrand de, “Recordações de um Dragão”, in Revista Militar, n.º 10/11 – Out.-Nov., 1985, p. 699 (nota de rodapé).
6 CONTREIRAS JÚNIOR, Manuel Francisco, “O Massacre do Cunene”, in Caderno Colonial, n.º 44, Edições Cosmos, Lisboa, 1937, p. 31.
7 ALMEIDA, António Ferrand de, “Recordações de um Dragão”, in Revista Militar, n.º 10 – Out.-Nov., 1985, p. 701.
8 GUARDADO, A. A. da Silva, “O Massacre dos Dragões do Conde de Almoster”, in Caderno Colonial, n.º 34, Edições Cosmos, Lisboa, 1939.
9 Ibidem.
10ALBUQUERQUE, Mouzinho de, Livro das Campanhas, volume I, Biblioteca Colonial Portuguesa V, Divisão de Publicações e Biblioteca, Agência Geral das Colónias, 1935, p. 114.
11Ibidem.
12FERREIRA, Manuel, “Martins Lima”, in Caderno Colonial, n.º 68, Edições Cosmos, Lisboa, 1940, p. 18. Neste Caderno é referida a aquisição de cavalos para as tropas em Angola nas campanhas de 1895, na Argentina, Chile, Egito França, Inglaterra e Turquia. Refere ainda, a páginas 20, o transporte da Argentina, nas devidas condições, de 130 cavalos e 200 muares no navio inglês «Ilyades».
13ENNES, António, A Guerra de África em 1895, Prefácio, 1944.
14Ibidem, p. 100.
15Ibidem.
16Ibidem, p. 101.
17Ibidem, p. 27.
18Ibidem, p. 692 (nota de rodapé).
19ALBUQUERQUE, Mouzinho de, Livro das Campanhas, volume I, Biblioteca Colonial Portuguesa, Divisão de Publicações e Biblioteca, Agencia Geral das Colónias, 1935, p. 170.
20Ibidem, p. 361.
21ALMEIDA, António Ferrand de, “Recordações de um Dragão”, in Revista Militar, n.º 10/11 – Out.-Nov., 1985, pp. 709 e seguintes.
22Ibidem, p. 717.
23Ibidem, p. 714.
24Ibidem, pp. 717 a 719.
Aposentado. Ex-oficial da Arma de Cavalaria.